quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Recomendação de Texto

Há alguns instantes estava lendo um belo texto de um autor até então desconhecido para mim. O texto era O PENSAMENTO SOCIALISTA LIBERTÁRIO DE NOAM CHOMSKY e o autor: Felipe Corrêa.
Como tento ser politicamente um anarquista, devido a minha grande descrença pela democracia e pelo autoritarismo contido no marxismo, o título do escrito de Felipe Corrêa me instigou.
E apesar do texto ser longo (dividido em duas partes), não que a quantidade de palavras seja um defeito em si mesmo, mas é que não consigo ficar muito tempo de fronte para o computador. Porém, depois que comecei a leitura não consegui mais parar até que chegasse ao final. O autor procura fazer uma síntese dos escritos políticos de Chomsnky sobre o anarquismo, demonstrando a atualização que o lingüista "estadunidense" faz das idéis clássicas do anarquismo. Corrêa percorre com desenvoltura crítica a teoria libertária e consegue relacionar as propostas libertárias de Chomsky, fundamentadas nos clássicos como Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Matesta entre outros, com as complexidades do capitalismo global que enfrentamos.
É interessante a discussão que faz sobre a autogestão na produção e na política, a federalização como uma solução ao problema da democracia representativa e a tecnologia que não é um mal em si mesma, depende de como ela está inserida no mundo do trabalho. Tudo isto já seria qualidades sufientes para um bom texto, mas o autor vai além, ele costura seus argumentos com citações precisas, relacionando Chomsky com as idéias acratas. E o faz muito bem, por isso eu recomendo a leitura do texto. O endereço eletrônico é: http://www.rizoma.net/interna.php?id=212&secao=intervencao

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Textos Científicos e Opiniões

Neste Blog você encontra Textos Científicos: Artigos, Monografias; Opiniões, Poesias e alguns links sobre História e Filosofia.

sábado, 4 de agosto de 2007

Artigo: Ethos Libertário e a Conquista da "Questão Social" no Brasil - Adonile A. Guimarães*

As manifestações operárias do começo do século XX são retratadas por boa parte da historiografia brasileira ainda como motins espontâneos. Historiadores como Leôncio Martins Rodrigues[1] e Boris Fausto se remetem às organizações operárias anarquistas procurando verificar o “nível organizatório” delas, correlacionando o estágio industrial da economia predominante em São Paulo no período anterior a 1930, com o grau de mobilização das classes.
Embora Fausto não descarte a importância de se analisar o contexto social de cada país, ele acaba por ver o anarquismo como um fenômeno próprio dos países de capitalismo tardio. Essa correlação, em certo sentido, consegue explicar o ascenso do anarquismo na América Latina, no entanto, o declínio dos movimentos operários autônomos a partir de 1919, nessa linha de raciocínio, fica sem esclarecimento, pois a partir desse período, o “nível” de industrialização não teve mudança significativa nos países latino americanos. Assim toda a organização anarquista que é patente na greve geral de 1917, a mais importante da Primeira República, é concebida por Boris Fausto sem objetivos claros se devendo ao espontaneismo dos trabalhadores frente às condições adversas, num estágio primário do capitalismo.[2]
A greve geral de 1917 tem uma importância fulcral nesta análise, sobretudo pelo fato de ter sido a “semana trágica” de julho de 1917 o auge do movimento anarquista operário e, por isso, ter se constituído no momento mais tenso entre a ordem estabelecida e a classe trabalhadora em São Paulo. Essas manifestações que se iniciaram em 9 de julho, desencadearam a partir da morte do José Ineguez Martins e da capacidade de mobilização dos anarquistas. A imprensa libertária e os discursos inflamados dos anarquistas em praça pública convocaram todos os trabalhadores à paralisação, o que de fato ocorreu entre os dias 13 e 15 de julho. Apenas com as promessas cumpridas de libertação dos operários presos e de toda uma série de outras exigências feitas pelos trabalhadores sob organização anarquista, é que foi suspensa a greve geral, o que ainda não foi suficiente para impedir que a greve parcial continuasse até o dia 17 de julho.
Todo esse contexto de manifestações dos trabalhadores de São Paulo é descrito por Christina Roquette Lopreato em sua tese de doutorado intitulada O Espírito da Revolta – a greve geral anarquista de 1917[3], em que a autora evidencia uma participação efetiva dos anarquistas na organização da greve geral, contestando as análises que vêem apenas como manifestações espontâneas levadas a cabo pela carestia do custo de vida próprio do período. A exposição de Christina Lopreato torna-se de suma importância pelo fato de retratar as conseqüências e repercussões que tais manifestações tiveram em São Paulo e até mesmo no Brasil.
O temor causado pelos anarquistas ao governo de São Paulo foi tão grande que desencadeou uma ação conspiratória por parte da polícia paulistana, liderados pelo presidente do Estado Altino Arantes e pelo secretário da Justiça e da Segurança Pública, Eloy Chaves. A partir do segundo semestre de 1917 iniciou-se o que foi a principal meta do Estado naquele ano: acabar com o “tumor” anarquista. A polícia então colocou membros disfarçados entre os operários para identificar os “líderes” anarquistas, o que gerou uma série de prisões arbitrárias que atentou contra os direitos dos imigrantes em solo brasileiro. Essas medidas repressivas provocaram uma revolta generalizada em quase todos os órgãos de imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, excetuando apenas os veículos oficiais do regime oligárquico (A Platéia, Correio Paulistano e Jornal do Comércio). Isso, por sua vez, gerou grandes debates na Câmara Municipal de São Paulo chegando até ao Congresso Nacional, e a partir de então, a “questão social”[4] passa a ser debatida pelas classes dominantes e a ser tema de campanha política.
Uma camada da sociedade representada pelo jornal O Estado de São Paulo que era constituído por ex-membros do PRP (Partido Republicano Paulista), que representava os anseios da burguesia urbana, passa a se referir às manifestações de julho como legítimas e a defender uma maior participação política para a classe trabalhadora. Essa adesão revela uma clara intenção dessa burguesia urbana, que se via fora do jogo de poder da Primeira República, de defender uma democracia representativa que pudesse, através do discurso partidário, aproxima-la da classe trabalhadora até então excluída da política institucional e ao mesmo tempo minar a influência anarquista entre os trabalhadores que a partir de então poderiam ser representados pelos candidatos.
A burguesia urbana incipiente se encontrava subordinada à política oligarca, a única maneira de conseguir chegar ao poder seria através do apoio popular que, dentro de uma sociedade que o coronelismo ainda predominava, em que as eleições eram controladas pelo “voto de cabresto”, tal abertura da participação política era fundamental, tanto para a concretização dos projetos liberais que até então tinha caráter bastante particular dado pela oligarquia cafeeira, como para desestruturar a organização anarquista que perderia sua força entre os operários justamente pelo fato dos anarquistas recusarem a política institucional burguesa e de rejeitarem qualquer aliança partidária.
A repercussão da greve geral de 1917 pode ser medida pela repressão que sofreram os anarquistas imposta pelos órgãos de segurança pública de São Paulo. Vários ideólogos anarquistas foram inconstitucionalmente deportados de São Paulo. Os registros pessoais que comprovavam a moradia desses membros anarquistas no Brasil por mais de dois anos - tempo prescrito na constituição que impedia o desterro – foram alterados. Forjaram-se testemunhas, executaram pessoas inocentes (entre mulheres e crianças) e até fretou-se navio para levarem os deportados para fora do país. A divulgação desses acontecimentos por parte da imprensa gerou uma série de transtornos e revoltas na sociedade brasileira. Provocou um grande debate jurídico entre a inconstitucionalidade do desterro e a legitimidade do ato por se tratar de uma ação de defesa nacional.
As repercussões na imprensa oficial das coações sofridas pelos membros das ligas e sindicatos anarquistas evidenciam um outro espaço que também se deu a luta política, o campo do discurso. Se na pressão das greves, as reivindicações dos dirigentes anarquistas, os trabalhadores apenas conseguiram alcançar direitos puramente econômicos, através do discurso ético, os anarquistas impuseram uma moral que contestava radicalmente a ideologia dominante. O discurso político ácrata preconizava a destruição da sociedade burguesa exploradora e, a partir daí visava a construção de uma nova sociedade que imperasse a igualdade e a liberdade dos indivíduos numa sociedade sem classes e sem instituições de poderes. Para tanto seu método era a ação direta que desprezava o embate político partidário. Para os anarquistas a via política institucional já era de certo modo aderir à lógica burguesa.
A representação democrática só levava aos interesses do capitalismo, ficando o trabalhador sem nenhuma representação de fato, pois sua participação política se limitava a uma escolha impessoal sem nenhum compromisso por parte do candidato que, como membro da elite tinha seus próprios interesses de classe, assim o voto apenas legitimava a dominação. O Estado, na concepção anarquista, representa o poder da classe dominante e nunca seria usado para os interesses do trabalhador; portanto, o Estado, como quaisquer instituições de poder, deveria ser destruído. Essas concepções políticas são, em grande parte, relacionadas com o sucesso do ideário anarquista no começo do século no Brasil, devido ao fato de a sociedade brasileira ser caracterizada pela falta de tradição de conflitos urbanos de classe e pela ausência de representação partidária, já que vinha de um regime monárquico e mesmo com a consolidação da república, o debate político brasileiro ainda era, no início do século XX, marcadamente elitista.
A partir dessas primícias os imigrantes italianos portadores do sonho de uma vida melhor, ao chegarem no Brasil encontraram um mundo totalmente diferente daquele que era descrito nas promessas dos agenciadores. Esses a serviço dos agricultores paulistas partiram principalmente para Itália com o objetivo de incentivar a vinda de trabalhadores para os cafezais paulistas. Com a abolição dos escravos e a ideologia do branqueamento racial que relacionava o progresso técnico alcançado pela Europa com os habitantes típicos de clima temperado, os ideólogos racistas brasileiros do século XIX viam como única possibilidade de progresso econômico brasileiro o branqueamento da raça, essa idéia ia ao encontro da construção da nação brasileira que não podia ser fundada na diversidade, mas preferencialmente na raça branca européia que, segundo essas teorias, era portadora de uma índole laboriosa. Nas palavras de Renato Ortiz que analisa o pensamento dominante da intelligentsia brasileira do século XIX, pode-se visualizar melhor esse contexto histórico:

Que assuntos são esses que preocupam a elite intelectual brasileira? A Abolição, o aproveitamento do escravo como proletário, a colonização estrangeira, a consolidação da República. Só é possível conceber um Estado nacional pensando-se os problemas nacionais. No entanto, se a Abolição significa o reconhecimento da falência de um determinado tipo de economia, ela não coincide ainda com a implantação real do trabalho livre, ou sequer apaga a tradição escravocrata da sociedade brasileira. Por outro lado, a nação vive o problema da imigração estrangeira, forma através da qual se procura resolver a questão da formação de uma economia capitalista. A questão da raça é a linguagem através da qual se apreende a realidade social, ela reflete inclusive o impasse da construção de um Estado nacional que ainda não se consolidou. Nesse sentido, as teorias “importadas” têm uma função legitimadora e cognoscível da realidade. Por um lado elas justificam as condições reais de uma República que se implanta como nova forma de organização político-econômica, por outro possibilitam o conhecimento nacional projetando para o futuro a construção de um Estado brasileiro. É interessante observar que a política imigratória, além de seu significado econômico, possui uma dimensão ideológica que é o branqueamento da população brasileira. [5]
Desse modo, sendo o Oeste Paulista a faixa de terra mais produtiva da empresa cafeeira brasileira naquele momento, foi lá que ocorreram as primeiras experiências com o trabalho assalariado dos imigrantes. O Brasil nesse momento era um país dominado pelo poder das oligarquias. As relações de trabalho se davam de modo personalista. O senhor proprietário de terras detinha o poder sobre toda a propriedade inclusive sobre seus empregados que antes eram escravos e que, devido a essa tradição, mesmo depois da chegada dos imigrantes não estava disposto a ceder parte de sua dominação.
É a fase dos grandes atritos entre colonos e fazendeiros. A formação do fazendeiro, saído de um quadro econômico e social escravocrata, impede que ele compreenda os reais anseios dos trabalhadores livres e a necessidade de modernização nas relações sociais e de trabalho.[6]
Esses contatos foram cruciais para que muitos dos imigrantes deixassem as más condições das plantações e partissem rumo a capital paulista. Assim, com o aumento da oferta de mão de obra e com a mudança significativa da política de crédito. O capital que antes era voltado para a compra de escravos passa a partir daí, a ser direcionado no incremento do comércio interno, o que foi de suma importância para o surgimento das primeiras indústrias.
Os imigrantes além de se fixarem nas fazendas de café como mão-de-obra assalariada ou como pequenos proprietários, também se radicaram nas cidades, contribuindo de maneira decisiva não só para a urbanização do Estado, mas também para o processo de industrialização que se inicia praticamente a partir do momento em que para cá se dirigem as primeiras grandes levas de imigrantes. Como artesãos, operários, empresários, participam da industrialização de São Paulo. Já em 1920 se registram 64,25 dos estabelecimentos industriais existentes no Estado como sendo de imigrantes, e cerca de dois terços dos habitantes da cidade de São Paulo são formados por estrangeiros e seus descendentes.[7]
Os imigrantes europeus em sua maioria, italianos chegaram ao Brasil trazendo um sonho de uma vida melhor e mais justa. O que encontraram aqui, porém, foram as mesmas dificuldades das quais fugiram, a opressão do trabalhador em benefício do patrão. Entretanto, os imigrantes não traziam em sua bagagem apenas sonhos, traziam também experiências de lutas e métodos de ação políticas muito claras para alcançar seus objetivos. Os operários italianos diante das condições adversas que aqui encontraram, construíram um vínculo muito forte entre eles, essa união, embora fosse incentivada pela nacionalidade em comum e, conseqüentemente, facilitada pela língua materna, era construída, mais em função das condições materiais e ideológicas de existência.[8]
Essas experiências em comum, o convívio com as dificuldades que atingiam, sobretudo, os operários, encontraram nas idéias anarquistas e no método da ação direta um espaço de luta política que conseguia abrigar os anseios dos trabalhadores até então excluídos do cenário político oligárquico. “No Brasil haverá núcleos anarquistas, de diversa orientação, a partir de pelo menos 1890, compostos em sua maioria de imigrantes e seus descendentes.” [9] Assim, contra os preceitos burgueses que se queria transmitir à população brasileira como universais, foi erigida uma moral anarquista que se opunha a toda e qualquer tipo de conduta liberal. Se de um lado os valores nacionalistas, patrióticos, militaristas eram exaltados para a construção da nação brasileira, de outro, o universalismo trabalhista, antimilitarismo e a oposição às manifestações culturais burguesas como ao baile, ao futebol eram duramente criticadas pelos militantes anarquistas.
Em prol de uma sociedade mais justa e igualitária os militantes organizavam piqueniques e confraternizações entre os trabalhadores, promovendo atividades culturais, como o teatro comunitário utilizado como órgão conscientizador e informativo de classe que tinha dupla função, o de reunir a classe operária em um ambiente cultural e, ao mesmo tempo, vincular as políticas sociais da classe de uma maneira informal que não fosse maçante e que, tivesse maior alcance entre os trabalhadores de diversas nacionalidades; pois muitos não sabiam ler e, portanto, inviabilizava a propaganda escrita.
É bom lembrar que nesse momento a maioria da população brasileira era analfabeta, como só era válido o voto dos alfabetizados, o grosso dos brasileiros eram excluídos do processo eleitoral. Daí tem-se a grande adesão à ética anarquista que recusava a via institucional. Tendo em vista esses fatos, faz-se necessário, diferentemente, da historiografia clássica, reconhecer a prática política como uma forma ampla de expressão dos anseios e projetos dos seres humanos.
Desse modo, a ascensão do anarquismo não se deve apenas ao baixo progresso técnico industrial e a uma incipiente classe operária, é fruto também de uma ação política mais eficaz de seus membros que, vivenciando as mesmas condições adversas, conseguiram construir através da ação direta, uma experiência política que abrangia todos os espaços comuns de coexistência dessa classe. Erigiram-se assim, não só um programa político que ia ao encontro dos anseios da classe trabalhadora, mas também uma moral que se opunha radicalmente, em todos os níveis, seja ele ideológico, econômico e até mesmo espiritual à ideologia burguesa.
É por isso, que a Primeira República e, principalmente, os anos 10 não podem ser vistos apenas do ponto de vista econômico. Em São Paulo, nesse período, não ocorreram apenas movimentos operários espontâneos inspirados em condições intoleráveis de sobrevivência. Nem tão pouco, as greves produzidas por esse clima hostil conseguiram apenas alguns ganhos materiais parciais a essa classe, que fora às ruas pressionar o governo e seus patrões e fora duramente rechaçada pelos órgãos de segurança pública e praticamente deixaram de atuar nos anos 20 devido às baixas sofridas. As manifestações operárias que marcaram os anos 10 em quase todas as capitais do Brasil na Primeira República exigem um olhar mais atento do historiador. As greves operárias até 1919 tiveram um caráter notoriamente de direção anarquista, o que rebate qualquer hipótese de espontaneismo operário, as articulações internas das ligas e dos sindicatos evidenciam uma prática organizatória efetiva por parte dos anarquistas. A vitória da greve de 1917, por exemplo, não foi exclusivamente uma vitória econômica. Foi, sobretudo, uma vitória moral, ética e política. O espaço que as reivindicações anarquistas conseguiram no debate político do período colocaram em cena um novo sujeito social, os trabalhadores a partir de então, não puderam ser mais ignorados pela iniciativa privada nem pelo Estado.
Diante disso se faz necessário uma análise mais profunda sobre o referido momento histórico. O debate das relações de poder não se dá apenas no âmbito institucional, a Primeira República é caracterizada pela luta política no âmbito da sociedade civil. O Estado ainda não exercia o forte controle que será seu estigma no decorrer dos anos 20, o debate entre industriários e operários se davam na década de 10 sem intervenção do governo, até pelo menos em seu final.
A tradição política brasileira é tributária das relações pessoais oriundas dos latifúndios, e se erigiu no espaço de poder dos coronéis. Sendo assim, carecia de jogo de cintura para lhe dar com a nova conjuntura que se efetivou a partir da chegada dos imigrantes europeus. A mudança da mão-de-obra escrava para a assalariada gerou uma série de contradições internas no sistema sócio-político brasileiro. Com a entrada em grande escala da força de trabalho estrangeira se constituiu, segundo a perspectiva de Boris Fausto, no fator primordial para a acumulação de capital na economia brasileira, e por assim dizer no diferencial que fez com que o Estado de São Paulo se consolidasse já no início do século como um grande centro industrial do Brasil.
Antes mesmo da proclamação da república o governo paulista passou a subsidiar a vinda dos imigrantes ao Brasil provocando um excesso de força de trabalho que, por sua vez, ocasionou posteriormente, pelo desenvolvimento econômico do Oeste Paulista, numa maior competitividade das indústrias paulistas em relação, por exemplo, às do Rio de Janeiro. O nível salarial mais baixo dos operários paulistas, no entanto, criou no início do século um grande exército de reserva que prejudicava e debilitava qualquer tentativa de reivindicação por parte dos trabalhadores empregados.
Os movimentos operários que ocorreram na cidade de São Paulo não podem ser vistos separados do crescimento urbano, que ganhou impulso fundamental depois que se iniciou o processo de imigração. A concentração populacional do espaço urbano é uma das condições fundamentais para que ocorressem as reivindicações, para que as contradições ficassem mais visíveis. São Paulo, em 1890, era a quinta maior cidade brasileira, com a imigração em massa se tornou a segunda maior do país perdendo apenas para a capital brasileira, a cidade do Rio de Janeiro.
Com a concentração urbana e o crescimento industrial em São Paulo, os imigrantes que vinham de seus países de origem sonhando com uma vida melhor passam a conviver com uma realidade bastante diferente daquela a qual imaginavam. As condições adversas de trabalho as quais eram submetidos e o fato de estarem longe de sua terra de origem faziam com que fossem recebidos, muitas vezes, como os estrangeiros que roubaram aquilo que deveria ser do brasileiro. No entanto, ao contrário do que se poderia esperar, os imigrantes, principalmente, os italianos construíram uma identidade de classe e não uma identificação nacional. Os italianos, em sua maioria eram provenientes do norte da Itália, portanto, tinham já uma experiência de luta por seus direitos, dessa forma, a identidade social se forjou a partir das condições materiais de existência, a partir da classe social em que ocupavam e não da nacionalidade. (verificar esta passagem).
A presença predominante dos imigrantes italianos em São Paulo além de ter trazido um elemento novo para o cenário político brasileiro, que era o fato de já terem vivenciado as contradições entre capital industrial e trabalho em seu país, também foi importante, do ponto de vista ideológico, para a difusão de novos paradigmas políticos oriundos da Europa, e que, no entanto, eram fundamentais para se pensar o novo contexto social que estava se formando em São Paulo, com o início das primeiras fábricas e a ampliação do comércio.
Nesse sentido, apesar de terem sido duramente contestados pela elite brasileira como um corpo estranho à terra “ordeira” e “pacífica” do Brasil, tanto o anarquismo como o socialismo, se constituíram em fatores para o enriquecimento do debate político brasileiro. O fato de se tratarem de ideologias provenientes de outros ares não impedia o casamento perfeito com as condições brasileiras. O que justificava e até explicava também a adesão a tais pensamentos “estrangeiros” é que esses apontavam para uma tomada de consciência em condições onde imperavam injustiças e desigualdades, assim, como arcabouços ideológicos essas teorias se propunham a superar tais condições. Essas circunstâncias também existiam no Brasil, de modo que, a denominação de “planta exótica” é, claramente, um discurso ideológico dos industriais contra as reivindicações dos trabalhadores, sem nenhuma fundamentação científica.
É dentro desse debate político incrementado por novas forças que pretendo analisar a conquista da questão social. Com a concentração urbana e a implantação das primeiras fábricas, a Primeira República passa a se constituir em um cenário mais complexo, com dois novos personagens: a burguesia urbana, proprietária das primeiras fábricas e o operariado que eram em sua maioria, imigrantes italianos que em seu país já tinham a experiência de luta em sindicatos, principalmente, anarquista. Tanto a burguesia urbana como o imigrante não era representado politicamente, assim a questão social nascerá do confronto de classes em busca de expressão política na sociedade e do novo papel exercido pelo Estado diante das condições sociais que se afloraram com a presença desses novos sujeitos históricos.
A questão social deve ser vista também com algumas ressalvas. É evidente que a partir da década de 10, as greves e as manifestações dos trabalhadores obrigaram a classe que controlava a política brasileira a repensar o conceito que tinha de res-pública. A organização sindical controlada pelos anarquistas foi impondo a cada greve, a necessidade das elites cafeeiras a perceberem novas forças sociais. A partir daí, as relações de poder da Primeira República com novos personagens (burguesia urbana e os trabalhadores assalariados), foi alterando gradativamente o tabuleiro das forças políticas.
Esse artigo está respaldado nos estudos sobre classe operária que surgiram a partir do final dos anos 50, na Inglaterra, principalmente, com os trabalhos de Thompson. Com a obra A formação da Classe Operária Inglesa[10] esse autor, com um recorte temporal anterior a revolução industrial, passa a perceber através do conceito de experiência que a consciência de classe não está diretamente ligada a industrialização, nem a sindicatos, ou a partidos, até mesmos trabalhadores de oficinas manufatureiras e pequenos mestres da Inglaterra do século XVIII eram capazes, como bem demonstrou em sua pesquisa, de insurgirem contra as desigualdades que já desde os primórdios do capitalismo sofriam.
Nesse sentido, não é apenas o fato dos imigrantes terem alguma experiência de luta em seus países de origem como, por exemplo, os italianos que em sua maioria viam do norte da Itália que era industrializado. A própria experiência de dominação pelas quais passavam, a carestia da época, as faltas de alimentos, com a ideologia libertária, abriam novas possibilidades, no campo do imaginário político, para transporem as adversidades que sofriam. A industrialização só vinha agravar as condições precárias de existência, no entanto, as desigualdades e a dominação de uma classe por outra já estavam posta antes mesmo da intensificação do processo de industrialização.
Outro ponto importante nessa discussão é que a questão social como uma vitória inexorável dos trabalhadores e, principalmente, anarquista deve ser ponderada. Primeiro, que a questão social, isto é, o espaço político conquistado através das lutas dos trabalhadores deve ser visto com reservas. A legislação social não foi de forma alguma um ganho absoluto dos trabalhadores mesmo após a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas, 1943), sancionada por Vargas, aliás, muito menos após 1930, pois foi a partir dessa data que podemos ver mais claramente o aspecto da “concessão”. Nesse sentido:
... é inegável que a ‘concessão’ de Vargas, cumpriu, entre outras a função de amortecedor do impacto das lutas de classe. Por outras palavras, reforçou a estratégia de tentar apagar da memória política dos trabalhadores as lutas que, desde o século passado – século XIX -, vinham desenvolvendo pelo reconhecimento de seus direitos, lutas essas que assinalaram, mais ou menos profundamente, a ação do proletariado urbano durante toda a Primeira República até meados da década de 30.[11]
Sendo assim, foi conquista no sentido de que não foi um presente, uma dádiva do Estado, ao contrário, a legislação social se deu através de um longo processo de embates e lutas de interesses no decorrer dos anos da Primeira República. E tais confrontos não podem ser apenas descritos simploriamente como lutas economicistas entre burguesia e proletariado levado a cabo por este, por melhores condições de vida. Foi também, sem dúvida, mas apenas isto seria simplificar o processo. Os ingredientes são muito mais heterogêneos ao que parece. Nesse sentido, os imigrantes trouxeram para o Brasil uma experiência política inegável, não me refiro mecanicamente como certos autores que como foi acima discutido pensam que há uma correlação direta entre desenvolvimento industrial e consciência de classe. O fato é que as concepções anarquistas passaram a ser novos paradigmas para se pensar os acontecimentos políticos, em outras palavras, foi um tempero novo ao caldo da política brasileira que se integrou perfeitamente à realidade porque era também parte dela, ao contrário do que dizia as imprecações dos ideólogos burgueses.
Nessa perspectiva, utilizo o termo conquista procurando contestar um tipo de historiografia oficial que se moldou, principalmente, pelo arcabouço ideológico do trabalhismo de Vargas após 1930. Essa concepção de história é enormemente reforçada pela sociologia de tradição weberiana representada por Raimundo Faoro que ao longo das 840 páginas de Os Donos do Poder tenta colocar a miscelânea da cultura brasileira dentro de receptáculos conceituais weberianos como burocracia e estamento. O resultado disso é a cegueira e a total indiferença às classes populares e a até mesmo o reconhecimento da importância inconteste que teve as manifestações operárias da Primeira República para o fomento da questão social. Em entrevista à revista Veja o recente congratulado à cadeira da Academia Brasileira de Letras exprime essa concepção a qual estou tentando refutar:
A legislação trabalhista, por exemplo, foi adotada antes mesmo que fosse uma exigência premente dos operários. Assim, por saber antecipar-se às reivindicações sociais, o Estado pode exercer sobre os trabalhadores um controle político muito maior do que se tivesse promulgado aquela legislação sob pressão. Dando antes que lhe peçam ou o obriguem, o Estado acaba com a possibilidade de que as forças sociais insatisfeitas se organizem politicamente.[12]
O que se percebe é o desvirtuamento da realidade histórica executado pelos métodos e critérios de análises escolhidos. Está presente na fala de Raymundo Faoro o que se convencionou a chamar de mito da outorga, que confere o crédito da implementação da legislação trabalhista a Getúlio Vargas, enquanto se sabe que, em verdade, ele fez tão somente unificar as leis que, muitas já tinham sido sancionadas antes de 1930. O grande objetivo desse texto será alcançado se, minimamente, ele for capaz de evidenciar o papel das lutas operárias na Primeira República para a conquista dos direitos sociais. Conquista essa que, porém, no decorrer da década de 20 foi utilizada como apaziguadora dos ânimos operários, não sem antes o Estado impor à repressão aos sindicatos e ligas anarquistas em finais dos anos 10, principalmente, em São Paulo.
Para se ter uma idéia dos novos horizontes propostos pelos ideários anarquista e socialista, nada melhor que um periódico famoso do ano de 1919, falando da famosa manifestação de cunho anarquista contra a comemoração da Independência Italiana pelos proprietários ricos da Itália, que culminou com a morte do anarquista Polinice Mattei:
A Unione Meridionale do bom Retiro, sociedade composta de péssimos elementos, e orientada por Nicolau Matarazzo, promoveu, para o dia 20 de setembro de 1898, a comemoração da data patriótica italiana. Os anarquistas e socialistas combateram a idéia, e distribuíram manifestos mostrando que a data não tinha uma significação patriótica, mas liberal, por simbolizar a queda do poder temporal dos papas.[13]
Como se vê havia tópicos muito importantes para o contexto da época que embasavam o discurso anarquista. O ideal libertário, em certo sentido, serviu de contra-discurso às concepções patrióticas do Estado que tentava forjar um conceito de nação ordeira e homogênea. E o irônico é que o próprio elemento civilizador, dentro da perspectiva do branqueamento, que eram os imigrantes, foram os principais responsáveis pela transgressão da ordem que se tentava forjar.[14]
Assim, a questão social pode ser vista como conquista política dos trabalhadores urbanos, em sua maioria imigrantes italianos vinculados à organização anarquista. Através da pressão das greves que se constituiu, sobretudo, nos anos 10 em uma nova e poderosa expressão política. O contexto turbulento das greves passou a exigir dos candidatos da época, uma reelaboração do discurso político corrente para se adaptar ao novo choque de forças. Os políticos, a partir de então, se viam obrigados a incluírem os trabalhadores em seus programas eleitorais.
Mas o reconhecimento aos direitos não se deu do dia para noite como muitos historiadores clássicos quer que acreditemos. Não foi apenas com o golpe de um “baixinho” do Rio Grande do Sul que os trabalhadores passaram a ter voz política, ao contrário, com ele, essa voz passou a ser roubada e reelaborada, e não só com Vargas, na verdade, a partir de 1930 se intensificou um processo que se iniciara já em 1922 com a fundação do partido comunista e com a concepção equivocada da história proveniente da Internacional, que orientava aos partidos situados em países de capitalismo “tardio” para que apoiassem a burguesia, pois, segundo essa visão etapista da história, só após a revolução burguesa é que se podia fazer a revolução comunista, mediante isso, o PCB passou a apoiar os sindicatos pelegos isolando e asfixiando a luta anarquista que desde sempre foi contra a filiação institucional. [15]
Os comunistas pretendem chegar ao comunismo pelo caminho único da revolução proletária. Mas, para chegar lá, dizem, é preciso vencer algumas etapas, conquistar aliados. Primeiro – no caso brasileiro – há que se fazer uma revolução antiimperialista e antifeudal com a ajuda dos camponeses e da pequena burguesia. “Frente Única”, essa é a palavra de ordem lançada pela Internacional Comunista e repetida pelo PC. [16]
A conquista da questão social foi um processo longo de lutas, que se iniciaram ainda no século XIX (como bem disseram Paulo S. Pinheiro e Michael Hall: Polinice Mattei foi a primeira vítima, em 20 de setembro de 1898, da questão social).[17] Nesse sentido, a CLT foi tão somente a configuração final de uma série de confrontos políticos e embates judiciais que atravessaram, praticamente, toda a Primeira República. E esse desenho final foi produzido pela pena do vencedor como a sua mais bela criação, legitimando e consolidando o seu poder, apagando da memória o suor, o sangue, o desterro, a dor, as lágrimas de todos os trabalhadores e familiares que sofreram as agruras do Estado opressor, [18] colocando no lugar da tragédia, um conto de fadas: em que o príncipe, um presidente que era pai dos pobres doara todos os direitos aos trabalhadores antes mesmo que esses os reivindicassem.[19]
Até 1919, com a morte do Presidente Rodrigues Alves antes de tomar posse, abriu-se, diante do momento histórico único, a brecha para a quebra da hegemonia de Minas e São Paulo, que através do pacto entre as oligarquias de ambos os estados controlavam a política brasileira. Após o congresso de paz de Haia cujo representante brasileiro foi Epitácio Pessoa (paraibano), a candidatura deste para o posto de presidente serviu para demonstrar que o momento histórico, com o fim da guerra, e as constantes manifestações operárias nos centros urbanos que se industrializavam, marcavam um novo período de transição, que enfraquecia a política dos governadores. Mais à frente com a debilitação da economia exportadora que a sustentava levará ao fim do regime contratual caracterizado, sobretudo, por sua fragilidade em lidar com as novas questões entre elas, à emergência de uma legislação trabalhista. Sublinhava-se assim, a inépcia e os limites do liberalismo agrário em abarcar as nuanças que envolviam a questão social que tomou corpo com a urbanização e a industrialização das cidades. Com isso, as contradições entre capital e trabalho passam a ter um contorno mais evidente. O proletariado urbano, a burguesia industrial e a classe média, (esta a partir de 1922), reivindicavam, ambas a seus modos, a participação política que eram lhes negadas, sobretudo, a partir do autoritarismo de Arthur Bernardes e da intransigência de Washington Luiz. Como se sabe, esses novos sujeitos históricos comporiam no pós 30 a nova correlação de forças que subiria ao poder. Pior para os trabalhadores urbanos que pagariam por sua participação política, trocando a voz ativa da década de 10 no auge das greves anarquistas, pela voz conciliadora e silenciosa que caracterizava o trabalhismo de Vargas.
Deriva-se daí, a tendência cada vez mais explícita, a partir de Epitácio Pessoa, de centralização do poder, pois a política dos governadores não controlava o amplo e complexo panorama político que já se formara no final da década de 10. A falência da indústria agroexportadora em finais da década de 20 só vem confirmar a perda do monopólio de interesses que Minas e São Paulo detinham e que vai se inflando até estourar em 1930. Não se pode perder de vista o processo de lutas que foram travadas tanto no nível das ideologias quanto no da prática da ação política que se dava para além da institucionalidade da Primeira República, tanto com as greves anarquistas, quanto com a pressão das associações do patronato.
As reivindicações operárias, bem como a presença atuante da burguesia urbana junto ao Estado com a criação de grupos de representação, (em exemplo, a CIB - Centro Industrial do Brasil) incrementaram o debate político do período com a questão social colocada de modo distinto pelos trabalhadores e industriais. É clarividente, nesse sentido, a inabilidade do Estado Oligárquico que se vê obrigado a ceder, mas, concomitantemente, tende a ficar cada vez mais autoritário, negando-se ao debate político e ao consenso até se isolar nos grupos que não mais detinham o poder econômico levando, dentro da perspectiva oligarca, ao inevitável desfecho trágico de 1930.
É no final da conturbada década de 10, com a greve geral de 1917, repercutindo em amplos debates no congresso acerca da regulamentação ou não do trabalho, que era também reforçada pela reivindicação dos próprios industriais que exigiam uma nova postura do Estado e que esse oficializasse a exploração controlando as greves com leis que procurasse conciliar trabalho e capital, que a questão social ganha peso e passa a ser tema da campanha presidencial de 1919, ocasionada pelas mortes sucessivas do presidente eleito em 1918, Rodrigues Alves e seu vice Delfin Moreira.
Nas campanhas presidenciais de 1919, principalmente a anticandidatura representada por Rui Barbosa é proeminente a questão social no cenário político do período:
Trouxeram ao Brasil, criaram no Brasil a questão social. Ela urge conosco por medidas, que com seriedade atendam aos seus mais imperiosos reclamos. Mas como é que lhe atenderíamos nos limites estritos do nosso direito constitucional? Ante os nossos princípios constitucionais, a liberdade dos contratos é absoluta, o capitalista, o industrial, o patrão estão ao abrigo da lei a tal respeito.[20]
Rui Barbosa deixa relativamente claro, a fragilidade do liberalismo agrário e a necessidade premente da intervenção estatal no contrato de trabalho. Há, nesse sentido, uma questão que merece ser ressaltada: todas as leis trabalhistas que foram sancionadas a partir de 1918 e que se deveram, em grande parte, às manifestações operárias nos grandes centros industriais do período, se constituiu numa forma de desconstrução da força de expressão operária, regulamentando o mínimo que lhe era exigido; minando assim, os protestos organizados e legitimando uma possível interferência repressiva por parte do governo. Essa configuração vai ganhar mais força a partir da década de 20 com a massificação da repressão aos anarquistas e também com a mobilização dos industriais em grupos de pressão e associações que passam a promover a criação de sindicatos pelegos com a intenção de disseminar a idéia de conciliação entre capital e trabalho. Um exemplo marcante desse processo é a coligação entre CSCB, Partido Comunista e o periódico O Paiz que ocorreu no Rio de Janeiro a partir de 1923.[21]
É importante ressaltar também a conotação que tem a questão social para os políticos da Primeira República, havia, sobretudo, uma preocupação de manutenção da ordem. As leis, nesse sentido, procuravam o bem estar nos moldes aristocráticos da oligarquia estabelecida, porém não mais hegemônica. Caracterizava assim, o reconhecimento mesmo que forçado e debilitado das outras instâncias de poder que se formaram, mais intensamente, a partir da década de 10. Nesse contexto, a autora Angela de Castro Gomes é irrepreensível ao descrever a concepção da questão social por parte dos representantes políticos da Primeira República:
...As leis sociais estão situadas não no campo da fábrica, como um direito do trabalhador, e sim como uma preocupação de cunho sanitário e moral, tendo a família como seu objetivo e a casa como seu campo de atuação. Daí a ambigüidade do reconhecimento da questão social, que não é encarada como um problema econômico ou social, pois não há causas deste tipo no Brasil, e sim como um problema de higiene e de moral. Esta associação é transparente, por exemplo, nos itens em que os programas eleitorais se dividem. A questão social é quase sempre tratada junto com os problemas de instrução e saúde pública e não com os problemas de natureza econômica. Esta orientação permanece vigorando nos documentos da campanha de 1929, inclusive no manifesto da Aliança Liberal.[22]
Percebe-se que a unificação das leis trabalhistas realizadas pelo governo de Getúlio Vargas tem um sentido bastante claro. A institucionalização de parte das reivindicações dos operários com a CLT foram utilizadas como freio da luta de classes e não como reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Houve um tipo de reconhecimento, mas não o do direito legítimo e sim o da força política dos trabalhadores. Revela-se, nesse sentido, a importância das manifestações operárias e o temor por parte do governo, principalmente, na década de 10, pela organização anarcossindical. Esse temor evidenciado, principalmente, na obra de Christina Lopreato, culminou com propostas claras de ceder o mínimo aos trabalhadores em troca da sustentação do poder a partir do governo de Epitácio Pessoa quando já se mostrava latente a fissura na política dos governadores, em partes pelos protestos dos trabalhadores em vários centros urbanos do país e pela repercussão da repressão policial aos anarquistas. O final dos anos 20 com a quebra das bolsas nos países desenvolvidos e a conseqüente crise das exportações afetando a economia cafeeira culminou com o fim da hegemonia das oligarquias. A partir de 1930, já com todo o aparato repressivo que conseguira minar as lutas operárias na década de 20, a política de concessão foi intensificada por Vargas com o sentido não apenas de sustentar a nova coalizão de poderes, que caracterizava o seu governo, mas também de legitimar o novo acordo de forças.
A luta dos trabalhadores urbanos, principalmente, no final dos anos 10 com os anarquistas, construiu uma nova força política que conseguiu balançar com a estrutura agrária do Estado oligarca. Foi as reivindicações dos trabalhadores urbanos desde do século XIX, que forçou uma reestruturação da política dos governadores. A partir de 1919, o Estado se caracterizou, em partes, por conceder, em virtude das pressões operárias, alguns direitos trabalhistas (não reconhecido ainda como direitos, mas como problemas morais), e por outro lado, por intensificar a repressão. Com a crise da economia cafeeira, já enferrujada pela inabilidade política em lhe dar com os novos personagens históricos, que cobravam voz política a partir da década de 10, cai o último baluarte da hegemonia oligarca.
Nesse processo histórico, a nova coalizão de poderes representada por Vargas a partir do golpe de 1930, só se sustenta no governo porque passa a reelaborar os protestos dos trabalhadores e a devolvê-los em forma de doação, silêncio, conciliação e conformismo. A tradição de luta dos trabalhadores, a oposição das ligas e dos sindicatos anarquistas que não eram atrelados ao governo, a utopia libertária, os teatros operários e, entre outros, o ethos operário erigido pelos anaquistas que se opunham radicalmente ao liberalismo agrário da Primeira República foram metodicamente apagados da história oficial. mas, o governo de Getúlio Vargas, com isso, só veio reafirmar a importância das lutas operárias organizadas pelas correntes anarquistas nos anos 10. Em relação à política dos governadores, o Varguismo apenas demonstrou uma maior habilidade em lhe dar com as novas expressões de poder, se utilizando não apenas do aparato repressivo, mas também e, com mais propriedade, do aparato ideológico do Estado.
Contudo, esse artigo pretendeu apenas resgatar alguns fragmentos do ethos libertário advindo das manifestações anarquistas caracterizadas pela ação direta que tentou forjar um modo de vida radicalmente contrário ao Estado oligárquico e a burguesia urbana. Desse modo, procurou-se compreender sua importância para a conquista da questão social, como parte de um processo histórico que fora obliterado da memória da Primeira República. Somente a partir, principalmente, dos anos 80, que alguns novos historiadores passaram a voltar-se a essa história forçosamente olvidada após os anos 30. Mas o trabalho do historiador ainda é árduo e faz parte de uma luta mais ampla que está apenas em seu começo.

Bibliografia

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* Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
[1] Leôncio Martins Rodrigues. Trabalhadores, Sindicatos e Industrialização. 1974.
[2] Boris Fausto. Conflito social na república oligárquica: a greve de 1917, 1974.
[3] Christina Roquette Lopreato. O Espírito da revolta – a greve geral anarquista de 1917, 2000.
[4] Angela Maria de Castro Gomes. Burguesia e trabalho – política e legislação social no Brasil 1917-1937. 1979.
[5] Renato Ortiz. Cultura brasileira e identidade nacional. Pp. 30-31. O grifo é meu.
[6] Maria Tereza S. Petrone. “Imigração”. In: Boris Fausto (direção). III. O Brasil Republicano. Pág. 113.
[7] Idem. Pág. 120.
[8] Sobre Cultura Anarquista ver Francisco Foot Hardman. Nem Pátria Nem Patrão. 1984.
[9] Paulo Sérgio Pinheiro. O Proletário Industrial na Primeira República. In: Boris Fausto (direção). III. O Brasil Republicano. Pág. 149.
[10] E. P. Thompson. A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. 1. 1987.
[11] Adalberto Paranhos. O Roubo da Fala (Origens da ideologia do trabalhismo no Brasil). P. 25.
[12] Raymundo Faoro, entrevista à revista Veja de 28/04/76. Ed. Abril, São Paulo, 1976. Citado por Angela de Castro Gomes. Burguesia e Trabalho – Política e legislação social no Brasil 1917-1937. 1979.
[13] “ ‘Notas para a História’ – Violências Policiais contra o Proletariado – Ontem e hoje”. A Plebe, 31-05-1919, pp. 3-4. (AEL). Citado por Paulo Sérgio Pinheiro & Michael M. Hall. In: A Classe Operária no Brasil (1889 – 1930, documentos). Volume 1 – O Movimento Operário. P. 25.
[14] Renato Ortiz. Op. cit.
[15] Adalberto Paranhos. Op. cit.
[16] Maria do Rosário da Cunha. O Trem da História. 1990.
[17] Paulo Sérgio Pinheiro & Michael M. Hall. Op. cit, p. 25.
[18] Sobre a repressão imposta aos anarquistas ver Christina Roquette Lopreato. O Espírito da Revolta – a greve geral anarquista de 1917, especialmente, o capítulo V: Os Indesejáveis, 153-197.
[19] Sobre o processo da construção da memória do vencedor ver: Alberto Visentini. A Teia do Fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. 1997.
[20] Rui Barbosa. Campanha Presidencial, p. 11.
[21] Maria do Rosário da Cunha. Op. cit.
[22] Angela de Castro Gomes. Op. cit. Pp. 102-103.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Reflexão do Dia

É possível construir uma nova sociedade dentro de um regime democrático-liberal de governo? Sugiro alguns textos para refletir sobre esta questão: O que é política de Hannah Arendt, O declínio do homem público - tiranias da intimidade de Richard Sennet e Por que se deslegitima a democracia? (em espanhol) de Sanchez Parga.