quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Le Monde Diplomatique - ESPECIAL: Para compreender a crise financeira


Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
Antonio Martins
(06/10/2008)
(atualizado em 7/10, às 9h15)

Depois de terem vivido uma segunda-feira de pânico, os mercados financeiros operam, hoje, em meio a muito nervosismo. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, há pequena recuperação das bolsas, diante de rumores sobre uma redução coordenada das taxas de juros, pelos bancos centrais. Em contrapartida, anunciou-se que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica — e que outros bancos estariam sob forte pressão.
A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas [1] deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3], convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas — e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, “Pensando o Impensável” , de Serge Halimi

sábado, 4 de outubro de 2008

Greve



A palavra, vinda do francês, se expandiu da interrupção do trabalho para outras recusas.
Sérgio Rodrigues
(Escritor e Jornalista)

A palavra “greve” como tantas inconveniências vem, diria um ultraconservador – do francês. Sua história começa no século 12 com o vocábulo grève, “praia, terreno de areia ou cascalho à beira-mar ou beira-rio”. Antes de adquirir seu sentido político, a palavra passou a batizar uma praça de Paris, à beira do Sena, que por ter piso arenoso e sem calçamento era chamada Place de Grève (hoje Place de l’Hotel-de-Ville).


Segundo Houaiss, o local era “ponto de reunião de trabalhadores e operários sem emprego ou descontentes com as suas condições de trabalho; daí a expressão faire grève (1805)” – isto é, “fazer greve”, já então com o sentido de interromper o trabalho como forma de protesto ou reivindicação, que mais tarde seria ampliado para outras modalidades de recusa, entre elas a greve de fome. E por que os trabalhadores se reuniam naquela praça? Explica Márcio Bueno, autor de A Origem das Palavras (José Olympio): “Nesse local funcionou durante muito tempo a Bolsa do Trabalho, encarregado de cadastrar desempregados”.


O primeiro registro de “greve” em português é de 1873, mas até as primeiras décadas do século 20 o galicismo (termo oriundo do francês) era bombardeado pelos puristas, que insistiam no uso de “parede” em seu lugar. Hoje ninguém questiona a palavra, mas certos patrulheiros do idioma, sucessores espirituais dos puristas já ensaiam submeter a expressão “greve de fome” à mesma campanha pela qual passou “risco de vida”. Fórmula consagrada e perfeita (risco de vida = risco para a vida), essa expressão foi tão atacada por professores de mente literal que boa parte dos jornais e das revistas a substituiu por “risco de morte”. Ora, a greve é de fome ou de comida?

Revista da Semana, (edição 16, ano I), 17 de dezembro de 2007.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Resistir é capitular


Uma das lições mais claras das últimas décadas é que o capitalismo é indestrutível. Marx comparava o capitalismo a um vampiro, e hoje um dos pontos que mais se salientam nessa comparação é que os vampiros sempre conseguem se reerguer, mesmo depois de feridos de morte. Até a tentativa de Mão, na Revolução Cultural, de apagar todos os vestígios do capitalismo acabou desembocando no seu retorno triunfal.

A esquerda de hoje reage de maneira bastante variada à hegemonia do capitalismo global e ao seu complemento político, a democracia liberal. Pode, por exemplo, aceitar essa hegemonia, mas continuar a lutar por reformas dentro das suas regras (a social-democracia da Terceira Via).

Ou pode aceitar que essa hegemonia não deixará de existir, mas ainda assim preconizar uma resistência a ela a partir dos seus “interstícios”.

Ou aceitar a futilidade de toda luta, já que a hegemonia é tão abrangente que não há nada que se possa fazer, exceto esperar pela irrupção da “violência divina” – uma versão revolucionária do “só Deus pode nos salvar”, de Heidegger.

Ou reconhecer a futilidade temporária da luta. Após o triunfo do capitalismo global não se renova, é defender o que ainda resta do Welfare State, confrontando os ocupantes do poder com reivindicações que eles não têm como atender. E, fora isso, nos refugiarmos nos estudos culturais, nos quais é possível prosseguir silenciosamente o trabalho de crítica.

Ou enfatizar que o problema é mais profundo, e que o capitalismo global é, em última instância, um efeito dos princípios subjacentes da tecnologia, ou da “razão instrumental”.

Ou postular que é possível minar o capitalismo global e o pode do Estado não por meio de um ataque direto, mas transferindo o foco da luta para as práticas cotidianas, com as quais se pode “construir um mundo novo”. Desse modo, as fundações do poder do capital e do Estado ficarão cada vez mais abaladas e, em algum momento, o Estado acabará\ desabando (o exemplo dessa visão é o movimento zapatista, no México).

Ou enveredar pelo caminho “pós-moderno”, transferindo a ênfase da luta anticapitalista para as múltiplas formas de disputa político-ideológica pela hegemonia, enfatizando a importância da rearticulação do discurso.

Ou apostar que é possível repetir, no nível pós-moderno, o gesto marxista clássico de incorporar a “negação” do capitalismo: com a ascensão contemporânea do “trabalho cognitivo”, a contradição entre a produção social e as relações capitalistas tornou-se mais aguda do que nunca, se4ndo possível pela primeira vez a “democracia absoluta” (essa\ seria a posição de Michael Hardt e Antonio Negri).

Essas posições não são apresentadas para evitar uma “autêntica” política radical de esquerda – o que elas tentam contornar, na verdade, é a falta dessa posição. A derrota da esquerda, porém, não esgota a história dos últimos trinta anos. Existe outra lição, não menos surpreendente: é a de que não precisamos aprender com o crescimento da social-democracia de Terceira Via na Europa Ocidental e com a liderança dos comunistas chineses, cujo desenvolvimento, segundo se diz, é o mais explosivo de toda a história do capitalismo.

Eis a lição em poucas palavras: podemos fazer isto melhor. No Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis. Foi Tony Blair quem conseguiu institucionaliza-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blair (mais que o primeiro-ministro John Major) quem realmente deu forma ao thatcherismo.

A resposta de alguns críticos da esquerda pós-moderna a essa situação difícil é propor uma nova política de resistência. Os que ainda insistem em combater o poder do Estado, para não falar dos que ainda cogitam em tomá-lo, são acusados de um apego indevido ao “velho paradigma”: a tarefa, hoje, é resistir ao poder do Estado retirando-se do seu terreno e criando novos espaços fora do seu controle, o que é, evidentemente, o contrário de aceitar o triunfo do capitalismo. A política de resistência não passa do complemento moralizante de uma esquerda Terceira Via.

O Recente livro de Simon Critchley, Infinitely Demanding:Ethics of Commitment, Polítics of Resistance [“Demandas Infinitas: Ética do Compromisso, Políticas de Resistência”, London: Verso, 2007. 168 p.], repr3esenta essa posição de maneira quase perfeita. Para Critchley, o Estado liberal-democrático chegou para ficar. Como as tentativas de abolir o Estado fracassaram miseravelmente, a nova política deve se concentrar a uma certa distância dele: nos movimentos contra a guerra, nas organizações ecológicas, nos grupos que protestam contra abusos racistas sexuais, e em outras formas de organização espontânea local. Ela deve ser uma política de resistência ao Estado, de denúncia das suas limitações, de seu bombardeio com demandas impossíveis. O principal argumento em favor dessa política se baseia na dimensão ética das “reivindicações infinitas” por justiça: nenhum Estado tem como satisfazer essa expectativa uma vez que a sua finalidade última é assegurar a própria reprodução (o seu crescimento econômico, a sua segurança pública etc.).

“obviamente”, diz Critchley, a história é geralmente escrita pelas pessoas que detêm as armas e os cassetetes, e não se pode esperar derrota-las a golpes de espanador e sátira bem-humorada. Ainda assim, como demonstra de maneira eloqüente a história do niilismo ativo de ultra-esquerda, estamos perdidos no momento em que pegamos em armas e cassetetes. A resistência política anárquica não deve copiar e espelhar a violência do poder ao qual se opõe.

Nesse caso, o que deveriam fazer, por exemplo, os democratas americanos? Parar de disputar o poder estatal e refugiar-se nos interstícios do Estado, deixando o poder para os republicanos e iniciando uma campanha de resistência anárquica? E o que faria Critchley se tivesse pela frente um adversário como Hitler? Em casos assim o militante pode “copiar e espelhar a violência do poder” ao qual se opõe? Será que a esquerda não deveria fazer uma distinção entre as circunstâncias em que é possível recorrer á violência no confronto com o Estado e aquelas em que só cabe desferir “golpes de espanador e sátira bem-humorada”?

A ambigüidade de posição de Critchley reside num estranho non sequitur: se o Estado não deixará de existir, se é impossível acabar com ele (ou com o capitalismo), por que afastar-se dele? Pó que não atuar em conjunto com o Estado ou de dentro dele? Por que não aceitar a premissa básica da Terceira Via? Por que limitar-se a uma política que, como afirma Critchley, “questiona o Estado e acusa a ordem estabelecida, não com a finalidade de livrar-se do Estado, por mais que isso possa ser desejável em algum sentido utópico, mas de melhorá-lo ou atenuar os seus efeitos malévolos”?

Essas palavras demonstram, simplesmente, que tanto o Estado liberal-democrático de hoje quanto o sonho de uma política anárquica de "reivindicações infinitas” existem numa relação de mútuo parasitismo: os militantes anárquicos produzem o pensamento ético, enquanto o Estado cumpre o papel de gerir e regular a sociedade. O militante anárquico ético-político de Critchley atua como um superego, bombardeando o Estado de demandas a partir de uma posição confortável. E quanto mais o Estado tenta satisfazer essas demandas, mais culpada é a aparência que ele assume. Nos termos dessa lógica, os agentes anárquicos concentram o seu protesto não contra as ditaduras declaradas, e sim contra a hipocrisia das democracias liberais, acusadas de traição aos princípios que professam.

As grandes manifestações em Washington e Londres contra o ataque americano ao Iraque são um exemplo claro dessa estranha relação simbiótica entre o poder e a resistência. E o resultado paradoxal foi que os dois lados saíram satisfeitos. Os manifestantes salvaram as suas belas almas: deixaram claro que não concordavam com a política governamental em relação ao Iraque. Os ocupantes do poder aceitaram o protesto com toda a calma e até lucraram com ele: não só as manifestações não prejudicaram em nada a decisão de atacar o Iraque, com ainda serviram pra legitimá-la, o que explica, aliás, a reação de George W. Bush diante das manifestações de massa contra a sua visita a Londres: “Estão vendo é por isso que estamos lutando, para que isso – protestar contras as decisões do governo – seja possível também no Iraque!”.

É digno de nota que o caminho pelo qual enveredou Hugo Chávez, a partir de 2006, seja exatamente oposto ao da esquerda pós-moderna. Longe e resistir ao poder do Estado, ele o tomou (primeiro com uma tentativa de golpe e depois democraticamente), usando sem hesitar os aparatos do Estado venezuelano para perseguir os seus objetivos. Além disso, está militarizando os bairros e neles promovendo o treinamento de unidades armadas. E o que mete medo acima de tudo: agora que começa a sentir os efeitos econômicos da “resistência” do capital ao seu governo (a escassez temporária de produtos nos supermercados, subsidiados pelo Estado), anunciou planos para consolidar os 24 partidos que o apóiam uma única agremiação. Mesmo alguns dos seus aliados se mostram céticos diante da idéia: será que isso não irá acontecer em prejuízo dos movimentos populares que deram ânimo á revolução venezuelana? Essa escolha, embora arriscada, deve ser plenamente apoiada: a dificuldade é fazer o novo partido socialista (ou peronista) de Estado, mas como um veículo para a mobilização de novas formas de política (como os comitês de base organizados nas favelas). O que devemos dizer a alguém como Chaves? “Não, não tome o poder do Estado, recue, deixe de lado o Estado e a situação que encontrou?” Cháves é muitas vezes visto como um palhaço – mas será que um recuo como esse não iria reduzi-lo a mais uma versão do subcomandante Marcos, a quem muitos mexicanos de esquerda hoje se referem como o “subcomediante Marcos”? Hoje, são os grandes capitalistas – Bill Gates, as empresas poluidoras, os “caçadores de raposas” – que “resistem” ao Estado.

A liça é que decisão realmente subversiva não está em insistir em reivindicações “infinitas”, que não podem ser atendidas pelos ocupantes do poder. Como eles sabem que sabemos disso, essa atitude de promover “demandas infinitas” não representa o menor problema para os poderosos: “É ótimo que, com as suas demandas críticas, vocês nos lembrem em que tipo de mundo todos gostaríamos de viver. Infelizmente, vivemos no mundo real, onde temos de nos contentar com o que é possível”.

O que devemos fazer é, pelo contrário, bombardear os ocupantes do poder com demandas estrategicamente bem escolhidas, precisas e finitas, que não possam ter como resposta essa mesma desculpa.

SLAVOJ ZIZEK
Piauí 16, ano 2, janeiro de 2008.