domingo, 28 de dezembro de 2008

Não se deixar representar... viver a autonomia

Este estudo sobre a ação direta nasceu da necessidade premente que vejo de se ampliar a rede conceitual em que se circunscreve o campo político atual. O liberalismo democrático, tido como um bem absoluto a ponto de justificar a intervenção estrangeira a países "não democráticos", com cultura e tradição política diversas, executando uma democratização a força, que é um nítido contra-senso, ganhou ares de um novo processo civilizatório.


Não se trata de justificar terrorismos ou violências gratuitas, mas de ampliar a análise, propiciar um debate que compreenda as revoltas, as revoluções no seu próprio campo conceitual e não no do modelo liberal do contrato, da representação. Pois as próprias "decisões democráticas" do liberalismo escapam à lógica da diplomacia, terminando, quase sempre, numa violência estatal, numa guerra.


Nesse sentido, a estratégia e o modo de vida libertário, compreendidos pela política da ação direta anarquista, que é uma entre outras, inevitavelmente nos colocará problemas insolúveis dentro dos paradigmas do liberalismo e da democracia representativa, haja vista, a necessidade de se incluir a violência no âmbito das decisões, assim como, a do autogoverno e da organização política sem autoridade no campo político.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Por que ler Rosa Luxemburgo?


Rosa Luxemburgo foi uma apaixonada revolucionária anti-autoritária que apostava que as massas seriam capazes de desencadear a revolução.

Envolveu-se em diversas polêmicas, talvez a mais famosa tenha sido a que tentou desconstruir a tese revisionista de Bernstein que almejava implantar o socialismo através de reformas democráticas.

Bernstein foi o precursor do eurocomunismo e talvez o maior representante da socialdemocracia.

Rosa o refutou em diversos pontos, sendo mais expressiva quando detectou que não se poderia implantar o socialismo por meio de reformas, porque estas não destruiriam o capitalismo.
Em suma, ela antecipou a falência do Estado de Bem Estar Social, e se formos só um pouco gentil com Rosa, podemos também dizer que ao recusar a tese de que os trustes e os cartéis, mais as organizações patronais impediam que o capitalismo entrassem em novas crises, ela também anteveu a crise de 1929, que se desencadeou, principalmente, porque o desenvolvimento das forças produtivas ultrapassou, mais uma vez, como muitas que aconteceriam depois, graças também, ao crescimento do capitalismo monopolista que deveria se portar como antídoto com a ampliação do crédito, na tese de Bernstein.

Isso não só destruía as teses de Bernstein, como também as invertia, pois o que ele apontava como um dos fatores que salvava o capitalismo das crises cíclicas, qual seja, a expansão do crédito, era justamente, na visão de Rosa, como se confirmou na prática, um dos motivos que precipitava o capitalismo ao abismo.

Talvez o único senão de Rosa tenha sido o de confiar, ambiguamente, tanto na necessidade histórica do socialismo, quanto na ação dirigida das massas.

A história, até aqui nos prova, que embora o capitalismo seja inviável pois depende dos recursos limitados do planeta para continuar expandido, por outro lado, nada nos dá a certeza de que o socialismo sendo uma alternativa viável, seja também uma conseqüência inevitável dessa crise.

Contudo, ainda sim (por isso ambiguamente), não podemos nos esquecer que a autora também abria um precedente para a Bárbarie... embora, claro, preferisse e lutasse apaixonadamente pelo socialismo até o seu último suspiro, ante os que mais tarde seriam conhecidos como nazistas.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Ideologia do Anarquismo - Rudolf Rocker


O anarquismo é uma corrente intelectual definida de pensamento social, cujos adeptos advogam a abolição na sociedade dos monopólios econômicos e de todas as instituições políticas e sociais coercivas. No lugar da ordem econômica capitalista, os anarquistas teriam uma livre associação de todas as forças produtivas baseadas no trabalho cooperativo, que teria por único propósito a satisfação das exigências necessárias de cada membro da sociedade. No lugar dos atuais Estados nacionais, com sua maquinaria sem vida de instituições políticas e burocráticas, os anarquistas desejam uma federação de comunidades livres que devem estar vinculadas por seus interesses econômicos e sociais comuns e que devem resolver suas questões por meio do acordo mútuo e do livre contrato.

Quem quer que estude com profundidade o desenvolvimento econômico e político do sistema social atual percebera que esses objetivos não nascem de idéias utópicas de alguns inovadores sonhadores, mas que são o resultado lógico de um exame completo dos desajustes sociais existentes que, a cada nova fase das condições sociais atuais, se manifestam de forma mais evidente e perniciosa. O capitalismo monopolista moderno e o Estado totalitário são apenas os últimos estágios de um desenvolvimento que não poderia ter outro fim.

O prodigioso desenvolvimento do nosso sistema econômico, levando à poderosa acumulação social de riqueza nas mãos de minorias privilegiadas e à repressão constante da grande massa do povo, preparou o caminho para a reação política e social atual, favorecendo-a de todas as formas. Ele sacrificou o interesse geral da sociedade humana em favor de interesses privados de indivíduos, sabotando sistematicamente assim, um verdadeiro relacionamento entre os homens. As pessoas esqueceram-se que a indústria não é um fim em si mesmo, devendo ser apenas um meio de assegurar ao homem sua subsistência material e de tornar acessível a ele as dádivas de uma cultura intelectual superior. Onde a indústria é tudo, onde o trabalho perde sua importância ética e o homem é nada, começa o domínio do despotismo econômico implacável, cujos desenvolvimentos não são menos desastrosos que aqueles de qualquer despotismo político. Cada um deles contribui para o outro; os dois alimentam-se da mesma fonte.

Nosso sistema social moderno dividiu internamente o organismo social de cada país em classes hostis e, externamente, dissolveu o círculo cultural comum em nações hostis; ambas, classes e nações, confrontam-se em um aberto antagonismo e por meio de suas guerras sem trégua mantêm a vida social da comunidade em convulsões contínuas. As duas guerras mundiais neste meio século, seus terríveis desdobramentos e a ameaça constante de novas guerras, que hoje domina todos os povos, são apenas as conseqüências lógicas dessa condição intolerável que pode levar apenas às catástrofes universais mais profundas. O simples fato de que a maioria dos Estados hoje em dia seja obrigada a gastar boa parte de seus recursos anuais para a propalada defesa nacional e para a liquidação de antigas dívidas de guerra é a prova da insustentabilidade da situação presente; deve ser claro a todo mundo que a suposta proteção que o Estado oferece ao indivíduo tem um preço que é caro demais.

O poder crescente de uma burocracia política sem alma que supervisiona e protege a vida dos homens, do berço ao túmulo, está criando obstáculos cada vez maiores à cooperação entre os seres humanos. Um sistema que, em cada ato de sua existência, sacrifica o bem-estar de grandes segmentos do povo, de nações inteiras, para a ambição egoísta pelo poder e para os interesses econômicos de pequenas minorias, deve necessariamente dissolver os laços sociais e levar a uma guerra constante de cada um contra todos. Esse sistema tem sido apenas o marca-passo para a grande reação intelectual e social que encontra hoje sua expressão no fascismo moderno e na idéia do Estado totalitário que ultrapassa de longe e obsessão pelo poder da monarquia absoluta de séculos passados e que busca trazer cada esfera da atividade humana sob o controle do Estado. “Tudo para o Estado; tudo pelo Estado; nada sem o Estado!” torna-se o leitmotiv de uma nova teologia política. Da mesma forma que para os vários sistemas de teologia eclesiástica. Deus é tudo e o homem é nada, também para o credo político moderno, o Estado é tudo e o cidadão é nada. E assim como se usou as palavras “a vontade de Deus” para justificar a vontade das castas privilegiadas, escondem-se hoje, sob “a vontade do Estado”, apenas os interesses egoístas daqueles que se propõem a interpretar essa vontade no seu próprio sentido e forçá-la ao povo.

No anarquismo moderno há a confluência de duas grandes corrente que antes e após a Revolução Francesa encontram uma expressão característica na vida intelectual da Europa: o socialismo e o liberalismo. O Socialismo moderno desenvolveu-se quando alguns profundos observadores da vida social passaram a ver de forma cada vez mais clara que as constituições políticas e as mudanças nas formas de governo não poderiam chegar à raiz do grande problema, que chamamos de questão social. Seus defensores reconheceram que o nivelamento das condições sociais e econômicas para o benefício de todos, apesar das adoráveis suposições teóricas, não é possível enquanto o povo estiver separado em classes que se baseiam na posse ou não de propriedade – classes cuja mera existência exclui de antemão qualquer idéia de uma comunidade genuína. Desenvolveu-se então a convicção de que apenas pela eliminação dos monopólios econômicos e pela propriedade comum dos meios de produção torna-se factível uma condição de justiça social, condição na qual a sociedade deve tornar-se uma verdadeira comunidade e o trabalho humano não mais servirá aos fins da exploração, mas assegurará o bem-estar de todos. Mas assim que o socialismo começou a agregar suas forças, tornando-se um movimento, vieram imediatamente à luz certas diferenças de opinião com relação às influências do ambiente social nos diferentes de opinião com relação às influências do ambiente social nos diferentes países. É inquestionável que todos os conceitos políticos da teocracia ao cesarismo e à ditadura influenciaram certas parcelas do movimento socialista.

Enquanto isso, duas outras grandes correntes no pensamento político tinham uma importância decisiva no desenvolvimento das idéias socialistas: o liberalismo, que tinha estimulado fortemente os espíritos avançados nos países anglo-saxões, assim como na Holanda e na Espanha em particular, e a democracia, no sentido dando por Rousseau no Contrato Social, que encontrou seus representantes mais influentes nos líderes do jacobinismo francês. Enquanto o liberalismo em suas teorias sociais começava do indivíduo e desejava limitar as atividades do Estado a um mínimo, a democracia defendia um conceito coletivo abstrato, a vontade geral de Rousseau, que ele buscava fixar no Estado nacional. O liberalismo e a democracia eram conceitos preeminentemente políticos e uma vez que a maior parte dos primeiros adeptos dessas duas correntes raramente consideravam as condições econômicas da sociedade, o desenvolvimento ulterior dessas condições não poderia ser reconciliado praticamente com os princípios originais da democracia e muito menos com aqueles do liberalismo. A democracia, com seu mote de “igualdade para todos os cidadãos perante a lei” e o liberalismo, com o seu “direito do homem sobre sua própria pessoa” foram arruinados na realidade da economia capitalista. Enquanto milhões de seres humanos de todos os países tinham de vender seu trabalho a uma pequena minoria de proprietários e se afundar na mais desgraçada miséria caso não encontrassem compradores, a suposta igualdade perante a lei permanecia apenas uma fraude piedosa, uma vez que as leis eram feitas por aqueles que se encontravam na posse da riqueza social. Mas, da mesma forma, não se pode falar sobre o direito do homem sobre sua própria pessoa, uma vez que o direito termina quando se é obrigado a se submeter à ordem econômica de outrem, se não se quer morrer de forme.

Em comum com o liberalismo, o anarquismo representa a idéia de que a felicidade e a prosperidade do indivíduo devem ser o padrão para todas as questões sociais. E, em comum com os grandes representantes do pensamento liberal, tem também a idéia da limitação das funções do governo a um mínimo. Seus adeptos levaram esse pensamento às suas últimas conseqüências e desejam eliminar toda instituição de poder político da vida da sociedade. Quando Jefferson veste o conceito básico do liberalismo com as palavras, “o melhor governo é o que menos governa”, os anarquistas dizem com Thoreau, “O melhor governo é o que nada governa”.

Em comum com os fundadores do socialismo, os anarquistas exigem a abolição do monopólio econômico em todas as formas e defendem a propriedade comum do solo e de todos os outros meios de produção – cujo uso deve estar disponível a todos, sem distinção – pois a liberdade pessoal e social é concebível apenas sobre a base de condições econômicas iguais para todos. Dentro do próprio movimento socialista, os anarquistas representam o ponto de vista de que a luta contra o capitalismo deve ser ao mesmo tempo uma luta contra todas as instituições coercivas de poder político, pois, na história, a exploração econômica andou sempre de mãos dadas com a opressão política e social. A exploração do homem e uma é a condição para a outra.

Enquanto um grupo de proprietários e um grupo de não proprietários se enfrentarem conflituosamente na sociedade, o Estado será indispensável à minoria proprietária para a proteção de seus privilégios. Quando essa condição de injustiça social desaparecer e der lugar a uma ordem de coisas superior que não reconhecerá direitos especiais e que deverá ter como pressuposto básico a comunhão dos interesses sociais, o governo sobre o home deve dar lugar á administração das questões econômicas e sociais ou, para falar como Saint Simon, “Virá o tempo em que a arte de governar o homem desaparecerá. Uma nova arte tomará o seu lugar, a arte de administrar as coisas”. Nesse sentido, o anarquismo deve ser encarado como um tipo de socialismo voluntário.

Isso acaba também com a teoria sustentada por Marx e seus seguidores de que o Estado, na forma de ditadura do proletariado, é um estágio transitório necessário para uma sociedade sem classes, na qual o Estado, após a eliminação de todos os conflitos de classes e, depois das próprias classes, dissolver-se-ia a si mesmo e desapareceria de cena. Pois este conceito, completamente equivocado sobre a natureza real do Estado e sobre a importância do fator do poder político na história, é apenas o resultado lógico do chamado materialismo econômico, que vê em todos os fenômenos da história apenas os efeitos inevitáveis dos métodos de produção da época. Sob a influência desta teoria, passou-se a se conceber as diferentes formas do Estado e de todas as outras instituições sociais como uma “superestrutura jurídica e política no edifício econômico” da sociedade e a se pensar que se tinha encontrado aí a chave para todos os processos históricos. Na verdade, cada momento da história nos fornece milhares de exemplos do modo pelo qual o desenvolvimento econômico dos países foi atrasado por séculos pelo Estado e sua política de poder.

Antes da ascensão da monarquia eclesiástica, a Espanha era, industrialmente, o país mais avançado da Europa e estava em primeiro lugar na produção econômica em praticamente todos os campos. Mas, um século após o triunfo da monarquia cristã, a maioria de suas indústrias tinha desaparecido; o que sobrou delas sobreviveu apenas nas piores condições. A maior parte das indústrias regrediu aos métodos mais primitivos de produção. A agricultura entrou em colapso, os canais tornaram-se ruínas e grandes extensões do país transformaram-se em desertos. O absolutismo principesco na Europa com seus tolos “decretos econômicos” e sua “legislação industrial”, que puniam severamente qualquer desvio dos métodos prescritos de produção e que não permitiam novas invenções, bloquearam o progresso industrial nos países europeus por séculos e impediram seu desenvolvimento natural. E mesmo agora, após as terríveis experiências de duas guerras mundiais, a política de poder dos grandes Estados nacionais mostra-se o maior obstáculo à reconstrução da economia européia.

Na Rússia, no entanto, onde a chamada ditadura do proletariado concretizou-se, as aspirações de um partido particular pelo poder político impediram toda reorganização verdadeiramente socialista da vida econômica e subordinaram o país à escravidão de um capitalismo de Estado demolidor. A ditadura do proletariado, que algumas ingênuas acreditam ser um estágio inevitável de transição ao socialismo real, transformou-se hoje em um assustador despotismo e em um novo imperialismo que ao deve nada à tirania dos Estados fascistas. À luz da experiência histórica, a afirmação de que o Estado deve continuar a existir até que a sociedade não esteja mais dividida em classes hostis parece uma piada sem graça.

Todo tipo de poder político pressupõe alguma forma particular de escravidão humana, para cuja manutenção ele é forjado. Externamente, isto é, na relação com os outros Estados, o Estado tem de criar certos antagonismos fictícios para justificar sua existência. Internamente, a clivagem da sociedade em castas, postos e classes é uma condição essencial de sua continuidade. O desenvolvimento da burocracia bolchevique na Rússia, sob a suposta ditadura do proletariado – que nunca foi mais que uma ditadura de um pequeno grupo sobre o proletariado e o conjunto de povo russo – é apenas um novo exemplo de uma velha experiência histórica que tem se repetido inúmeras vezes. Essa nova classe dominante, que está hoje se transformando rapidamente em uma nova aristocracia, é separada da grande massa de camponeses e trabalhadores russos de forma tão clara quanto às castas e classes privilegiadas dos outros países se separam do povo. E esta situação torna-se ainda mais insuportável quando um Estado despótico nega às classes inferiores o direito de reclamar das condições existentes, de forma que qualquer protesto é feito sob risco de vida.

Porem, mesmo um grau muito maior de igualdade econômica do que aquele que existe na Rússia não seria uma garantia contra a opressão política e social. A igualdade econômica sozinha não é libertação social. É isso precisamente o que todas as escolas do socialismo autoritário nunca entenderam. Na prisão, no mosteiro ou no quartel encontra-se um grau relativamente alto de igualdade econômica, já que todos os internos recebem a mesma habitação, a mesma comida, o mesmo uniforme e as mesmas tarefas. O antigo Estado inca no Peru e o Estado jesuíta no Paraguai trouxeram suprimentos econômicos iguais para seus habitantes segundo um sistema fixo, mas, apesar disso, prevalecia lá o despotismo mais vil e os seres humanos eram apenas autômatos de uma vontade superior que não tinham a menor influência sobre as decisões. Não é sem motivo que Proudhon via no “socialismo” sem liberdade a pior forma de escravidão. O anseio por justiça social pode apenas se desenvolver adequadamente e ser efetivo quando ele nasce do sentimento de liberdade e responsabilidade do homem e baseia-se nele. Em outras palavras, o socialismo será livre ou simplesmente não o será. É no reconhecimento deste fato que está a genuína e profunda justificativa do anarquismo.

As instituições têm para a vida da sociedade, o mesmo propósito que os órgãos físicos têm para as plantas e os animais; elas são órgãos de um corpo social. Órgãos não se desenvolvem arbitrariamente, mas devem sua origem às necessidades definidas do ambiente físico e social. Condições de vida modificadas produzem órgãos modificados. Mas um órgão sempre realiza a função para a qual foi concebido, ou uma função relacionada. E assim que sua função torna-se desnecessária ao organismo, ele gradualmente desaparece ou torna-se rudimentar.

O mesmo vale para as instituições sociais. Elas também não surgem arbitrariamente, mas são forjadas por necessidades sociais especiais para servir propósitos definidos. Dessa forma, concebeu-se o Estado moderno, quando os privilégios econômicos e as divisões de classes associados a ele tornaram-se proeminentes no quadro da antiga ordem social. As recém-chegadas classes proprietárias necessitavam de um instrumento político de poder para manter os privilégios econômicos e sociais sobre as massas de seu próprio povo e para impô-los de fora, a outros grupos de seres humanos. Assim, surgiram as condições sociais apropriadas para a revolução do Estado moderno como o órgão de poder político para a subjugação e opressão das classes não proprietárias. Essa tarefa é a razão essencial de sua existência. Suas formas externas alteraram-se no curso de seu desenvolvimento histórico, mas suas funções permaneceram sempre as mesmas. Elas até constantemente se expandiram, na medida em seus defensores conseguiram submeter outros campos de atividades sociais a seus fins. E, da mesma forma que as funções de um órgão físico não podem ser alteradas de maneira arbitrária – não se pode, por exemplo, por escolha, escutar com os olhos ou enxergar com os ouvidos – também não se pode, por prazer, transformar um órgão de opressão social em um instrumento de liberação do oprimido.

O anarquismo não é a solução original para todos os problemas humanos, não é a utopia de uma ordem social perfeita (como muitas vezes tem sido chamada), já que, em princípio, ele rejeita todos os esquemas e conceitos absolutos. O anarquismo não acredita em nenhuma verdade absoluta ou em qualquer objetivo final definido para o desenvolvimento humano, mas em um aperfeiçoamento ilimitado dos padrões sociais e condições de vida humana que estão sempre se esforçando para chegar em formas mais elevadas de expressão, às quais, por esse motivo, não podem designar nenhum fim definitivo ou estabelecer nenhum objetivo fixo. O grande mal de qualquer forma de poder é que ele sempre tenta forçar a rica diversidade da vida social em formas definidas e ajustá-la a normas particulares. Quanto mais fortes se sentem seus defensores, mais bem sucedidos eles são em colocar todos os campos da vida social a seu serviço, quanto mais mutilante é a sua influência na operação de todas as forças culturais criativas, mais prejudicialmente ela afeta o desenvolvimento intelectual e social do poder e, um triste presságio para o nosso tempo, ela mostra com clareza assustadora a que grau de monstruosidade o Leviathan de Hobbes pode ser desenvolvido. É o triunfo perfeito da máquina política sobre a mente e o corpo, a racionalização do pensamento humano, o sentimento e o comportamento de acordo com as regras estabelecidas pelas autoridades e, conseqüentemente, o fim de toda cultura intelectual verdadeira.

O anarquismo reconhece apenas a importância relativa das idéias, instituições e condições sociais. Ele não é, portanto, um sistema social fixo e fechado, mas uma tendência definida no desenvolvimento histórico da humanidade que, em contraste com a vigilância intelectual de todas as instituições clericais e governamentais, luta pelo desdobramento livre e desimpedido de todas as forças individuais e sociais na vida. Mesmo a liberdade á apenas um conceito relativo, não absoluto, já que tende constantemente a alargar seu alcance e afetar círculos maiores de formas diversas. Para o anarquista, a liberdade não é um conceito filosófico abstrato, mas a possibilidade vital concreta de todo ser humano desenvolver completamente as capacidades e talentos com os quais a natureza o dotou, revertendo-os em valor social. Quanto menos se interfere neste desenvolvimento natural do homem pela vigilância eclesiástica ou política, mais eficiente e harmoniosa torna-se a personalidade humana, mais ela se tornará a medida da cultura intelectual da sociedade na qual ela cresce. Essa é a razão pela qual todos os grandes períodos culturais na história foram períodos de fraqueza política, pois os sistemas políticos são sempre estabelecidos sobre a mecanização e não sobre o desenvolvimento orgânico das forças sociais. Estado e cultura são opostos irreconciliáveis. Nietzsche, que na era um anarquista, reconheceu isso muito claramente quando escreveu: “Ninguém pode, afinal, gastar mais do que tem. Isso vale para indivíduos e vale para os povos. Se uma pessoa desgasta-se pelo poder, pela alta política, pelo casamento, pelo comércio, parlamentarismo, interesses militares – se uma pessoa dá a quantidade de razão, determinação, vontade, autocontrole que constitui seu eu para uma coisa, ela não a terá para outra. Cultura e Estado – que ninguém se engane com isso – são antagônicos: o Estado cultural é apenas uma idéia moderna. Um vive sobre o outro, um prospera à custa do outro. Todos o que é grande, num sentido cultural, é não político, é mesmo antipolítico”.

Onde a influência do pode político sobre as forças criativas da sociedade é reduzida a um mínimo, a cultura floresce ao máximo, pois o controle político sempre luta pela uniformidade, e tende a sujeitar todos os aspectos da vida social à sua vigilância. E, nisso, ele encontra uma contradição inescapável às aspirações criativas do desenvolvimento cultural que está sempre em busca de novas formas e novos campos de atividade social e, para o qual, a liberdade de expressão, o caráter multifacetado e a mudança contínua das coisas são tão vitalmente necessários, da mesma maneira que as formas rígidas, as regras mortas e a supressão violenta das idéias são necessárias para a conservação do poder político. Cada fragmento de trabalho bem sucedido incita o desejo de uma maior perfeição e uma inspiração mais profunda; cada nova forma torna-se o prenúncio de novas possibilidades de desenvolvimento. Mas o poder sempre tenta manter as coisas onde estão, seguramente ancoradas em estereótipos. Este foi o motivo de todas as revoluções na história. O poder opera apenas destrutivamente, dedicado apenas em forçar todas as manifestações da vida social à camisa-de-força de suas regras. Sua expressão intelectual é o dogma morto, sua forma física, a força bruta. E essa incompreensão de seus objetivos deixa sua marca também em seus representantes fazendo-os freqüentemente estúpidos e brutos, mesmo quando são naturalmente dotados dos melhores talentos. Quem está constantemente lutando para forçar tudo numa ordem mecânica, finalmente se torna, ele mesmo, uma máquina, e perde todos os sentimentos humanos.

Foi dessa compreensão que o anarquismo moderno nasceu e tira sua força moral. Apenas a liberdade pode instigar os homens às grandes coisas e trazer transformações intelectuais e sociais. A arte de governar o homem nunca foi a arte de educá-los e levá-los a novas formas de modelar suas vidas. A sombria compulsão tem ao seu comando apenas exercícios sem vidas. A sombria compulsão tem ao seu comando apenas exercícios sem vida, que sufocam qualquer iniciativa vital desde o nascimento e que têm como resultado apenas súditos, não homens livres. A liberdade é a verdadeira essência da vida, a força propulsora de todo desenvolvimento intelectual e social, a criadora de toda perspectiva para a humanidade futura. A liberação do homem da exploração econômica e da opressão intelectual, social e política, que encontra sua maior expressão na filosofia do anarquismo, é o primeiro pré-requisito para a evolução de uma cultura social superior e de uma nova humanidade.

1946

sábado, 1 de novembro de 2008

La naissance de la pensée libertaire - Daniel Colson


Le premier est celui de son apparition comme courant de philosophie politique. Il est lié aux transformations et à la situation explosive de l'Europe du milieu du XIXe siècle, et plus particulièrement aux événements et aux mouvements révolutionnaires de 1848. Au cours de cette période, - du début des années 1840 à la création, vingt-cinq ans plus tard, de l'Association Internationale des Travailleurs (AIT) -, l'anarchisme n'existe pas comme courant politique effectif, identifiable dans des organisations, des groupes ou des symboles de manifestations publiques. Sa réalité est principalement philosophique et journalistique, mais une philosophie et un journalisme intimement mêlés à l'ébullition théorique et politique d'alors comme aux bouleversements matériels et sociaux que connaît l'Europe. De manières diverses, faisant appel à de nombreuses formes littéraires, la pensée anarchiste prend corps en quelques années, du mémoire de Proudhon, Qu'est-ce que la propriété ? (1840), à son livre posthume De la Capacité politique des classes ouvrières (1865), en passant par L'Unique et sa Propriété de Stirner (1845), les premiers textes de Bakounine, ceux de Joseph Déjacques, d'Ernest Coeuderoy, mais aussi les tableaux et les conceptions artistiques de Gustave Courbet par exemple ou encore une multitude d'expressions, de proclamations, d'utopies et de notations éparses dans tout ce qui se dit et s'écrit au cours de cette période. Les principaux inventeurs de l'anarchisme, - Proudhon, Bakounine, Déjacques, Coeuderoy -, ont pu se lire et se sont lus, se sont rencontrés parfois, mais ils ne se sont jamais concertés, n'ont jamais essayé de constituer un groupe ou une école politique. Ils se sont influencés les uns les autres, et Proudhon, par le nombre de ses livres, et surtout la force de ses conceptions sociales et philosophiques, occupe sans aucun doute une place prépondérante dans la naissance de la pensée libertaire. Mais, - et on n'en attendait pas moins d'eux -, aucun de ces auteurs n'est le maître ou le théoricien des autres. Chacun élabore l'essentiel de ses conceptions à partir de lui-même, à partir de ce qu'il perçoit et du monde (parfois très particulier) où il vit ; dans Trois essais de philosophie anarchiste - Introduction 2 une mystérieuse unité où toute une dimension de l'époque et de ses possibles s'exprime spontanément dans chacun de leurs écrits.

C'est seulement un siècle et demi plus tard, à la lumière de son renouveau de la fin du XXe siècle, qu'il est devenu enfin possible de saisir l'originalité de cette pensée libertaire en train de naître, une originalité qui tient à son étrange référence : l'anarchie. Comme aujourd'hui, l'anarchie a toujours été une notion à la fois négative et familière, synonyme de chaos et de pagaille. Avec Proudhon, Déjacques, Coeuderoy, Courbet, Bakounine et quelques autres, elle acquiert pour la première fois une signification positive. [1]Contrairement à ce que l'on croit parfois, cette référence positive n'est pas d'abord une provocation. Et elle ne relève pas non plus d'une autre erreur que l'on commet souvent à son propos et qui, d'une autre manière, cherche également à désamorcer la bombe théorique et pratique que constitue le concept d'anarchie. En effet, en acceptant, du bout des lèvres, de sortir cette notion de la vulgarité et du mépris réprobateur qui l'entourent, les sciences politiques veulent bien, éventuellement, accepter d'en faire une sorte de modèle constitutionnel théorique, à côté d'autres beaucoup plus empiriques : la monarchie, l'oligarchie, la dictature, la démocratie par exemple. L'anarchie serait un système politique utopique qui se caractériserait par l'absence de gouvernement, un système politique qui (pourquoi pas si des gens veulent y croire et tenter, démocratiquement, d'en convaincre les autres), pourrait arriver un jour, peut-être, dans un avenir aussi lointain que le jugement dernier. Mais comme le montre justement le renouveau de la pensée libertaire de ces trente dernières années, l'anarchie positive qui apparaît au milieu du XIXe siècle n'est ni une provocation, ni une utopique notion de sciences politiques. L'anarchie n'est pas non plus un idéal, une société parfaite que les rêveurs auraient dans la tête, au temps où l'on rêve, quand on est jeune donc, une belle idée, mais irréalisable comme toutes les idées parfaites, vers laquelle on se contenterait de tendre, et dont la possible réalisation s'éloignerait au fur et à mesure que l'on devient vieux. Pour ses inventeurs, l'anarchie est un concept éminemment empirique et concret, le seul capable de rendre compte de ce qui nous constitue présentement, et alors même que les injonctions et les mises en ordre réalistes de l'économie, des constitutions politiques et des religions, ne sont que des formes illusoires et trompeuses dans ce qu'elles se donnent à voir, d'autant plus contraignantes et visibles qu'elles sont illusoires et trompeuses, qu'elles dénient l'anarchie des choses et des êtres. Dans la pensée libertaire naissante, anarchie et réalité sont synonymes.

L'anarchie n'est pas d'abord en aval, dans un avenir indéterminé, mais en amont et comme déjà là, et ceci à travers deux visages distincts et pourtant indissociables. L'anarchie renvoie tout d'abord à sa signification à la fois la plus ordinaire, celle de désordre et de confusion, mais aussi la plus savante, celle d'absence de principe premier (an-arkhé). L'anarchie c'est le multiple, la multiplicité infinie et la transformation incessante des êtres, le fait que toute chose est constituée d'une multitude infinie de forces et de points de vue en perpétuel changement, d'une multitude infinie de modes d'être et de possibles qui s'entrechoquent, se composent, se défont et se détruisent sans cesse, en aveugles, et qui exigent sans cesse des mises en ordre oppressives et coercitives où certains dévorent, exploitent et asservissent les autres, se dressent au-dessus d'eux, à la manière du Capital, de l'Etat et de la Religion, en provoquant de nouveaux troubles, de nouvelles révoltes et de nouveaux combats, le plus souvent tout aussi aveugles et désespérés. Bref, l'anarchie dans sa première acception, c'est cette histoire pleine de bruits et de fureurs, racontée par des fous à des idiots, dont parle Shakespeare, l'histoire que chacun vit tous les jours, qu'il constate sans cesse en lui et autour de lui et que les mises en ordre de la science, des livres d'histoire, des cartes d'identité, de la morale et des prescriptions religieuses, malgré leurs mensonges, leurs simplifications et leur violence, ne parviennent jamais à masquer complètement.

Mais la notion d'anarchie, si réaliste dans le pessimisme de ce qu'elle dit, possède également une seconde signification intimement liée à la première, que l'on ne peut pas séparer d'elle. Et c'est à que réside l'originalité et l'intuition philosophique des premiers théoriciens de l'anarchisme. Que disent-ils ? Ils disent que cette anarchie première et réaliste de ce qui est, des choses et des êtres, cette affirmation du multiple au dépend de l'un, de la transformation incessante au dépend de l'identique, du désordre au dépend de l'ordre, du discontinu au dépend du continu, de la différence au dépend du même, est justement la condition et la chance, non seulement d'une émancipation des êtres humains mais de l'affirmation d'un monde et d'une vie libérés des mutilations et des pertes de possibles qu'entraînent le hasard des heurts et des associations destructives, mais aussi toutes les tentatives autoritaires pour maîtriser ce hasard, unifier le multiple et ordonner l'inordonnable. Comme Spinoza et Leibniz avaient pu déjà l'affirmer et le pressentir, l'anarchie du réel offre la possibilité de construire, de façon volontaire, de l'intérieur des choses et des situations, un monde pluraliste où les êtres, en s'associant, et sans jamais renoncer à leur autonomie première (pourtant si fragile et éphémère), ont la capacité de se libérer de la servitude, de libérer et d'exprimer la puissance et les possibles qu'eux, les autres et le monde portent en eux-mêmes.

En d'autres termes encore, l'anarchie de Proudhon, de Déjacque, de Coeuderoy ou de Bakounine, c'est principalement deux choses, d'égale importance et qui vont toujours ensembles.
1. L'anarchie c'est un concept philosophique, un concept majeur dont seul le caractère radicalement explosif, au regard d'un grand nombre d'autres notions, peut expliquer le dédain ou l'ignorance dont il a fait l'objet dans le champ philosophique ; un concept qu'avec Deleuze on peut, non définir bien sûr, mais caractériser ainsi : « l'anarchie, cette étrange unité qui ne se dit que du multiple ».[2]
2. Mais l'anarchie n'est pas seulement une notion philosophique. Comme tous les vrais concepts c'est également une Idée particulièrement puissante, une idée pratique et matérielle, un mode d'être de la vie et des relations entre les êtres qui naît tout autant de la pratique que de la philosophie ; ou pour être plus précis qui naît toujours de la pratique, la philosophie n'étant elle-même qu'une pratique, importante mais parmi d'autres.

[1] Sur le surgissement de cette signification positive, voir, a contrario ou par défaut pourrait-on dire, M. Deleplace, L'Anarchie de Mably à Proudhon (1750-1850), histoire d'une appropriation polémique, Lyon, ENS Éditions, 2000. Trois essais de philosophie anarchiste - Introduction 3

[2] 2. G. Deleuze et F. Guattari, Mille plateaux, Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 196.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Le Monde Diplomatique - ESPECIAL: Para compreender a crise financeira


Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
Antonio Martins
(06/10/2008)
(atualizado em 7/10, às 9h15)

Depois de terem vivido uma segunda-feira de pânico, os mercados financeiros operam, hoje, em meio a muito nervosismo. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, há pequena recuperação das bolsas, diante de rumores sobre uma redução coordenada das taxas de juros, pelos bancos centrais. Em contrapartida, anunciou-se que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica — e que outros bancos estariam sob forte pressão.
A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas [1] deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3], convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas — e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, “Pensando o Impensável” , de Serge Halimi

sábado, 4 de outubro de 2008

Greve



A palavra, vinda do francês, se expandiu da interrupção do trabalho para outras recusas.
Sérgio Rodrigues
(Escritor e Jornalista)

A palavra “greve” como tantas inconveniências vem, diria um ultraconservador – do francês. Sua história começa no século 12 com o vocábulo grève, “praia, terreno de areia ou cascalho à beira-mar ou beira-rio”. Antes de adquirir seu sentido político, a palavra passou a batizar uma praça de Paris, à beira do Sena, que por ter piso arenoso e sem calçamento era chamada Place de Grève (hoje Place de l’Hotel-de-Ville).


Segundo Houaiss, o local era “ponto de reunião de trabalhadores e operários sem emprego ou descontentes com as suas condições de trabalho; daí a expressão faire grève (1805)” – isto é, “fazer greve”, já então com o sentido de interromper o trabalho como forma de protesto ou reivindicação, que mais tarde seria ampliado para outras modalidades de recusa, entre elas a greve de fome. E por que os trabalhadores se reuniam naquela praça? Explica Márcio Bueno, autor de A Origem das Palavras (José Olympio): “Nesse local funcionou durante muito tempo a Bolsa do Trabalho, encarregado de cadastrar desempregados”.


O primeiro registro de “greve” em português é de 1873, mas até as primeiras décadas do século 20 o galicismo (termo oriundo do francês) era bombardeado pelos puristas, que insistiam no uso de “parede” em seu lugar. Hoje ninguém questiona a palavra, mas certos patrulheiros do idioma, sucessores espirituais dos puristas já ensaiam submeter a expressão “greve de fome” à mesma campanha pela qual passou “risco de vida”. Fórmula consagrada e perfeita (risco de vida = risco para a vida), essa expressão foi tão atacada por professores de mente literal que boa parte dos jornais e das revistas a substituiu por “risco de morte”. Ora, a greve é de fome ou de comida?

Revista da Semana, (edição 16, ano I), 17 de dezembro de 2007.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Resistir é capitular


Uma das lições mais claras das últimas décadas é que o capitalismo é indestrutível. Marx comparava o capitalismo a um vampiro, e hoje um dos pontos que mais se salientam nessa comparação é que os vampiros sempre conseguem se reerguer, mesmo depois de feridos de morte. Até a tentativa de Mão, na Revolução Cultural, de apagar todos os vestígios do capitalismo acabou desembocando no seu retorno triunfal.

A esquerda de hoje reage de maneira bastante variada à hegemonia do capitalismo global e ao seu complemento político, a democracia liberal. Pode, por exemplo, aceitar essa hegemonia, mas continuar a lutar por reformas dentro das suas regras (a social-democracia da Terceira Via).

Ou pode aceitar que essa hegemonia não deixará de existir, mas ainda assim preconizar uma resistência a ela a partir dos seus “interstícios”.

Ou aceitar a futilidade de toda luta, já que a hegemonia é tão abrangente que não há nada que se possa fazer, exceto esperar pela irrupção da “violência divina” – uma versão revolucionária do “só Deus pode nos salvar”, de Heidegger.

Ou reconhecer a futilidade temporária da luta. Após o triunfo do capitalismo global não se renova, é defender o que ainda resta do Welfare State, confrontando os ocupantes do poder com reivindicações que eles não têm como atender. E, fora isso, nos refugiarmos nos estudos culturais, nos quais é possível prosseguir silenciosamente o trabalho de crítica.

Ou enfatizar que o problema é mais profundo, e que o capitalismo global é, em última instância, um efeito dos princípios subjacentes da tecnologia, ou da “razão instrumental”.

Ou postular que é possível minar o capitalismo global e o pode do Estado não por meio de um ataque direto, mas transferindo o foco da luta para as práticas cotidianas, com as quais se pode “construir um mundo novo”. Desse modo, as fundações do poder do capital e do Estado ficarão cada vez mais abaladas e, em algum momento, o Estado acabará\ desabando (o exemplo dessa visão é o movimento zapatista, no México).

Ou enveredar pelo caminho “pós-moderno”, transferindo a ênfase da luta anticapitalista para as múltiplas formas de disputa político-ideológica pela hegemonia, enfatizando a importância da rearticulação do discurso.

Ou apostar que é possível repetir, no nível pós-moderno, o gesto marxista clássico de incorporar a “negação” do capitalismo: com a ascensão contemporânea do “trabalho cognitivo”, a contradição entre a produção social e as relações capitalistas tornou-se mais aguda do que nunca, se4ndo possível pela primeira vez a “democracia absoluta” (essa\ seria a posição de Michael Hardt e Antonio Negri).

Essas posições não são apresentadas para evitar uma “autêntica” política radical de esquerda – o que elas tentam contornar, na verdade, é a falta dessa posição. A derrota da esquerda, porém, não esgota a história dos últimos trinta anos. Existe outra lição, não menos surpreendente: é a de que não precisamos aprender com o crescimento da social-democracia de Terceira Via na Europa Ocidental e com a liderança dos comunistas chineses, cujo desenvolvimento, segundo se diz, é o mais explosivo de toda a história do capitalismo.

Eis a lição em poucas palavras: podemos fazer isto melhor. No Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis. Foi Tony Blair quem conseguiu institucionaliza-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blair (mais que o primeiro-ministro John Major) quem realmente deu forma ao thatcherismo.

A resposta de alguns críticos da esquerda pós-moderna a essa situação difícil é propor uma nova política de resistência. Os que ainda insistem em combater o poder do Estado, para não falar dos que ainda cogitam em tomá-lo, são acusados de um apego indevido ao “velho paradigma”: a tarefa, hoje, é resistir ao poder do Estado retirando-se do seu terreno e criando novos espaços fora do seu controle, o que é, evidentemente, o contrário de aceitar o triunfo do capitalismo. A política de resistência não passa do complemento moralizante de uma esquerda Terceira Via.

O Recente livro de Simon Critchley, Infinitely Demanding:Ethics of Commitment, Polítics of Resistance [“Demandas Infinitas: Ética do Compromisso, Políticas de Resistência”, London: Verso, 2007. 168 p.], repr3esenta essa posição de maneira quase perfeita. Para Critchley, o Estado liberal-democrático chegou para ficar. Como as tentativas de abolir o Estado fracassaram miseravelmente, a nova política deve se concentrar a uma certa distância dele: nos movimentos contra a guerra, nas organizações ecológicas, nos grupos que protestam contra abusos racistas sexuais, e em outras formas de organização espontânea local. Ela deve ser uma política de resistência ao Estado, de denúncia das suas limitações, de seu bombardeio com demandas impossíveis. O principal argumento em favor dessa política se baseia na dimensão ética das “reivindicações infinitas” por justiça: nenhum Estado tem como satisfazer essa expectativa uma vez que a sua finalidade última é assegurar a própria reprodução (o seu crescimento econômico, a sua segurança pública etc.).

“obviamente”, diz Critchley, a história é geralmente escrita pelas pessoas que detêm as armas e os cassetetes, e não se pode esperar derrota-las a golpes de espanador e sátira bem-humorada. Ainda assim, como demonstra de maneira eloqüente a história do niilismo ativo de ultra-esquerda, estamos perdidos no momento em que pegamos em armas e cassetetes. A resistência política anárquica não deve copiar e espelhar a violência do poder ao qual se opõe.

Nesse caso, o que deveriam fazer, por exemplo, os democratas americanos? Parar de disputar o poder estatal e refugiar-se nos interstícios do Estado, deixando o poder para os republicanos e iniciando uma campanha de resistência anárquica? E o que faria Critchley se tivesse pela frente um adversário como Hitler? Em casos assim o militante pode “copiar e espelhar a violência do poder” ao qual se opõe? Será que a esquerda não deveria fazer uma distinção entre as circunstâncias em que é possível recorrer á violência no confronto com o Estado e aquelas em que só cabe desferir “golpes de espanador e sátira bem-humorada”?

A ambigüidade de posição de Critchley reside num estranho non sequitur: se o Estado não deixará de existir, se é impossível acabar com ele (ou com o capitalismo), por que afastar-se dele? Pó que não atuar em conjunto com o Estado ou de dentro dele? Por que não aceitar a premissa básica da Terceira Via? Por que limitar-se a uma política que, como afirma Critchley, “questiona o Estado e acusa a ordem estabelecida, não com a finalidade de livrar-se do Estado, por mais que isso possa ser desejável em algum sentido utópico, mas de melhorá-lo ou atenuar os seus efeitos malévolos”?

Essas palavras demonstram, simplesmente, que tanto o Estado liberal-democrático de hoje quanto o sonho de uma política anárquica de "reivindicações infinitas” existem numa relação de mútuo parasitismo: os militantes anárquicos produzem o pensamento ético, enquanto o Estado cumpre o papel de gerir e regular a sociedade. O militante anárquico ético-político de Critchley atua como um superego, bombardeando o Estado de demandas a partir de uma posição confortável. E quanto mais o Estado tenta satisfazer essas demandas, mais culpada é a aparência que ele assume. Nos termos dessa lógica, os agentes anárquicos concentram o seu protesto não contra as ditaduras declaradas, e sim contra a hipocrisia das democracias liberais, acusadas de traição aos princípios que professam.

As grandes manifestações em Washington e Londres contra o ataque americano ao Iraque são um exemplo claro dessa estranha relação simbiótica entre o poder e a resistência. E o resultado paradoxal foi que os dois lados saíram satisfeitos. Os manifestantes salvaram as suas belas almas: deixaram claro que não concordavam com a política governamental em relação ao Iraque. Os ocupantes do poder aceitaram o protesto com toda a calma e até lucraram com ele: não só as manifestações não prejudicaram em nada a decisão de atacar o Iraque, com ainda serviram pra legitimá-la, o que explica, aliás, a reação de George W. Bush diante das manifestações de massa contra a sua visita a Londres: “Estão vendo é por isso que estamos lutando, para que isso – protestar contras as decisões do governo – seja possível também no Iraque!”.

É digno de nota que o caminho pelo qual enveredou Hugo Chávez, a partir de 2006, seja exatamente oposto ao da esquerda pós-moderna. Longe e resistir ao poder do Estado, ele o tomou (primeiro com uma tentativa de golpe e depois democraticamente), usando sem hesitar os aparatos do Estado venezuelano para perseguir os seus objetivos. Além disso, está militarizando os bairros e neles promovendo o treinamento de unidades armadas. E o que mete medo acima de tudo: agora que começa a sentir os efeitos econômicos da “resistência” do capital ao seu governo (a escassez temporária de produtos nos supermercados, subsidiados pelo Estado), anunciou planos para consolidar os 24 partidos que o apóiam uma única agremiação. Mesmo alguns dos seus aliados se mostram céticos diante da idéia: será que isso não irá acontecer em prejuízo dos movimentos populares que deram ânimo á revolução venezuelana? Essa escolha, embora arriscada, deve ser plenamente apoiada: a dificuldade é fazer o novo partido socialista (ou peronista) de Estado, mas como um veículo para a mobilização de novas formas de política (como os comitês de base organizados nas favelas). O que devemos dizer a alguém como Chaves? “Não, não tome o poder do Estado, recue, deixe de lado o Estado e a situação que encontrou?” Cháves é muitas vezes visto como um palhaço – mas será que um recuo como esse não iria reduzi-lo a mais uma versão do subcomandante Marcos, a quem muitos mexicanos de esquerda hoje se referem como o “subcomediante Marcos”? Hoje, são os grandes capitalistas – Bill Gates, as empresas poluidoras, os “caçadores de raposas” – que “resistem” ao Estado.

A liça é que decisão realmente subversiva não está em insistir em reivindicações “infinitas”, que não podem ser atendidas pelos ocupantes do poder. Como eles sabem que sabemos disso, essa atitude de promover “demandas infinitas” não representa o menor problema para os poderosos: “É ótimo que, com as suas demandas críticas, vocês nos lembrem em que tipo de mundo todos gostaríamos de viver. Infelizmente, vivemos no mundo real, onde temos de nos contentar com o que é possível”.

O que devemos fazer é, pelo contrário, bombardear os ocupantes do poder com demandas estrategicamente bem escolhidas, precisas e finitas, que não possam ter como resposta essa mesma desculpa.

SLAVOJ ZIZEK
Piauí 16, ano 2, janeiro de 2008.

domingo, 21 de setembro de 2008

Municipalismo e Livre Associação: Críticas Libertárias à Democracia Representativa



A idéia puramente quantitativa, que sugere que o tamanho das instituições sugere a sua impessoalidade, a qual, por sua vez, leva à prática da indiferença, é simplista demais. (SENNETT. Autoridade. P. 122).


A atualidade do anarquismo consiste na sua crítica à democracia representativa, entendendo esta como uma farsa, diria, como antidemocrática, pois um governo do povo, para sê-lo, deveria ser exercido pelo povo e não por seus supostos representantes. Assim, uma democracia representativa se levada a sério, trata-se de uma contradição em termos.

O problema que esta crítica libertária bastante atual leva a um posicionamento equivocado, pois a relação pública necessária para o exercício político é também deturpada, ou seja, a crítica anarquista joga tanto a água da bacia quanto o bebê fora. Um governo democrático deveria se constituir como um autogoverno. Este só foi concebido na prática em termos espaciais reduzidos (também temporais, com curta duração), o que levou muitos anarquistas à defesa do municipalismo democrático apenas em termos espaciais e quantitativos, que propiciaria as decisões diretas dos politicamente interessados.

Dessa forma, a crítica à democracia representativa levou os anarquistas à velha acomodação naturalista/determinista de problemas históricos e políticos, que já era utilizado por Montesquieu quando este defendia a idéia de que o sistema político também era definido e limitado pelas condições geopolíticas do local. Concluía-se que uma democracia só seria viável em uma pequena cidade, nesse sentido, constituir-se-ia em um governo permanentemente instável e vulnerável. A sua soberania estaria, assim, constantemente ameaçada por outros Estados de governos autoritários e centralizados, que poderiam, ao contrário da democracia, constituírem-se em Estados grandes e amplos capazes de garantir suas soberanias e estabilidades.

Mas o problema não estaria todo exposto se nos restringíssemos a este aspecto, como dizíamos acima, a defesa de uma democracia direta de fato, em que os reais interessados pudessem atuar politicamente sem qualquer limitação leva a uma defesa do municipalismo, este herdeiro, por certo, do federalismo proudhoniano que, como dissemos também se resvala na redução naturalista típica do iluminismo (Montesquieu, Rousseau...), mas o problema maior é que este desenvolvimento de raciocínio aproxima os anarquistas daqueles que rebaixam a vida pública, vendo esta como uma relação já em si corrompida. Nessa perspectiva, o espaço público já seria por si só um lócus desumanizador, e isto significaria supor que o impessoalismo necessário à relação dos interesses públicos desumanizaria os homens.

Daí a defesa do municipalismo ser não só uma saída para a impossibilidade de debates verdadeiramente democráticos numa sociedade de massa, o que é perfeitamente justificável, mas também um romantismo disfarçado que rebaixa a relação pública, tentando reviver algo impossível que é a vida familiar dos clãs das sociedades ditas primitivas ou pelo menos o ambiente próprio de sociedades patriarcalistas (mas sem a autoridade paterna, numa concepção palatável para alguns anarquistas) em que todos se reconheceriam enquanto irmãos.

Em outras palavras, parte da crítica atual do anarquismo referente à democracia representativa culmina em um romântico e ingênuo exame que condena a própria condição de possibilidade da política. Para esta existir é necessário o distanciamento e o impessoalismo, que se constituem em fatores básicos que criam e estabelecem o espaço público como um lócus privilegiado de decisão dos caminhos a seguir pela sociedade em questão.

O espaço público deve ser formatado pela suas próprias necessidades, projetos e anseios, o que importa não é a dimensão, mas as multiplicidades de relações e dimensões possíveis. Porque as condições de igualdade em que os poderes individuais em seu exercício público se fundirão, se anularão, se superarão na tentativa de criar o consenso democrático da maioria, não é determinado tanto pelo número de debatedores, mas pela as inter-relações em que estes podem fazer, pelas configurações infinitas que os indivíduos podem formar, os grupos e sub-grupos que podem fundir, desfazer e refazer infinitamente.

Acrescentando a isso, aí sim, a grande contribuição dos libertários à democracia direta que é a de deixar livres aqueles que foram derrotados em suas idéias e propostas para desassociarem quando quiserem sem perdas, ressentimentos ou represálias e fundarem outros núcleos autônomos com outras condições e outros poderes de decisões.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

(Urano, O Amigo do Povo nº 27 Ano II, São Paulo, 30 de maio de 1903).


O Nosso Conceito da Revolução

Os anarquistas formam dentro do conjunto heterogêneo que compõem a atual sociedade, outra pequena sociedade ou núcleo distinto. Esta pequena parte distingue-se do todo social por certas qualidades e por sua maneira de obrar. Se não se distinguisse nem obrasse diferentemente dos outros membros não haveria modo de conhecer-se na sociedade e nos indivíduos se opera ou não progresso algum.

Quem possui um conceito novo e distinto da sociedade, das suas leis e costumes há de forçosamente proceder diversamente dos que não pensam como ele. Se alguns indivíduos, intitulando-se anarquistas, não fazem o menor esforço para se distinguir de generalidade na sua vida íntima e em público prescindindo de certas regras sociais ou abandonando certos prejuízos adquiridos, esses serão anarquistas, não quero nem pretendo negá-lo, mas quando muito, anarquistas líricos. E os líricos não fazem pressão alguma sobre nada, nem exercem peso no prato da balança do progresso.

E completamente impossível conhecer a fundo a sociedade presente sem a odiar e é também impossível continuar com o fardo de mentiras e imoralidades que a formam sem lhes declarar guerra aberta. Declaramo-nos revolucionários e damos à palavra "revolução" todo o valor positivo que depois de contínuas e constantes análises, lhe deu a sociologia. Antes, revolução significava sangue, destruição, matança de seres humanos. Os políticos serviram-se da revolução como instrumento para substituir homens no poder e as revoluções era sempre o povo que as fazia por encargo e para proveito deles. Toda a missão da revolução se tem reduzindo a uma simples mudança de poderes: substancialmente, tudo fica como d'antes. Em suma, a revolução tem sido um simples jogo de "tira-te d'aí para que aí me ponha eu".

Foi desabrochando, porém, na mente dos explorados a idéia um melhoramento a valer e logo o conceito de revolução evolucionou, pode dizer-se que mudou quase por completo; o povo já não se mataria para tirar João e por Pedro no poder. E desde então para cá começa a fazer-se a verdadeira revolução, que trará o bem estar há tantos séculos desejado pela humanidade escrava e defendido por generosos mártires.

Declaramos guerra ao Estado porque encarna fielmente o princípio de autoridade que permite e sanciona toda a classe de monstruosidades e prescindimos dele em tudo aquilo onde isso nos é possível; em quanto não contamos com a força suficiente para o destruir por completo. A nossa rebelião contra o Estado, empregam um método de luta que o fortifica cada vez mais, como tantas vezes temos demonstrado.

Negamos ao Estado toda a nossa força, pregando sempre ao povo o abandono das urnas e ensinando-o constantemente a prescindir desta instituição tirânica. Como resultado tático, vão se organizando em todos os países poderosas corporações operárias que resolvem, sem a intervenção do governo, todos os seus assuntos e mantém as suas lutas diretamente com o patrão, sem recorrer ao parlamento, pedindo arbitragem ou proteção. Ensinando ao povo que não vote, damos lhe a compreender que o governo não é seu representante nem o pode ser; que o Estado é de emanação burguesa e que se pode livrar dele quando quiser.

Com a crítica severa que nós, anarquistas, fazemos à instituição do Estado, criamos-lhe dificuldades cada vez maiores: o número dos seus inimigos cresce todos os dias.

Do mesmo modo procedemos com as outras molas da sociedade capitalista: família, religião, militarismo, magistratura, etc.

No que diz respeito à família, não nos conformamos com pedir leis regulamentares do casamento, do divórcio, da proteção à infância abandonada e outras assim. Melhor que o divórcio é a união livre e esta praticamo-la desde já, sem precisar recorrer a esse divórcio. Desta maneira tiramos também ao governo uma atribuição, sendo assim apesar de nos dizerem cheios só de TEORIAS mais práticos que os socialistas evolucionistas que não evolucionam coisa nenhuma.

Da religião é inútil falar: procedemos com se tal coisa fosse inteiramente desconhecida.

Ao militarismo declaramos-lhe formidável guerra e desde já nos negamos a servir nas filas do exército e aconselhamos o povo a negar-lhe o seu contingente, diferindo nisto daquelas socialistas que, como Millerand, dão o seu voto contra um opúsculo, "O manual do Soldado;" porque aconselha aos jovens a deserção. Esses socialistas, especialmente onde existe guarda nacional mobilizada, prestam-se incondicionalmente a servir nas filas, vestindo a humilhante libré do soldado.

Sem políticas enervantes, férteis em armadilhas e criadoras de ambições mesquinhas, vamos revolucionando a sociedade de baixo até acima. Com a propaganda constante que fazemos, moralizamos os costumes, lançando as bases duma nova sociedade que se vai estabelecer de redentores de pacotilha.

A revolução fazemo-la em casa, na rua, e em toda a parte. Por isso, onde quer que haja um anarquista, logo se nota a sua presença. Assim, o anarquista propaga com o exemplo, a abstenção das bebidas alcoólicas. Sabe que a bebida enerva e atrofia; e deixando de se embebedar, leva os outros a imitá-lo. Na família, o anarquista é um modelo de cultura, respeita os filhos e a companheira e incita os outros a igual procedimento. Se propagandista, dá à idéia quanto tem, sem exigir retribuições; belos exemplos com Malatesta, Kropotkin, Grave, Reclus, Bakunin, Cafiero e tantos outros. Os anarquistas revolucionam o mundo mais com as suas obras do que com as suas palavras.

Se alguém, chamando-se anarquista, fizesse política, recorresse ao Estado ensinasse os trabalhadores mediante retribuição, levasse os filhos (palavra ou palavras ilegíveis) escândalos com uma vida licenciosa e passasse os dias ou as noites na taberna, esse, apesar do que dissesse em contrário, seria uma simples caricatura, nunca um anarquista convencido e consciente.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

História e memória - Jacques Le Goff

HISTÓRIA

[pg. 017]
Estamos quase todos convencidos de que a história não é uma ciência como as outras – sem contar com aqueles que não a consideram uma ciência. Falar de história não é fácil, mas estas dificuldades de linguagem introduzem-nos no próprio âmago das ambigüidades da história.
Neste ensaio, tentaremos centrar a reflexão sobre a história na temporalidade, situar a própria ciência histórica nas periodizações da história e não a reduzir à visão européia, ocidental, mesmo que, por ignorância e em virtude de deficiências importantes de documentação, sejamos levados a falar sobretudo da ciência histórica européia.
A palavra 'história' (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego antigo historie, em dialeto jônico [Keuck, 1934]. Esta forma deriva da raiz indo-européia wid-, weid 'ver'. Daí o sânscrito vettas 'testemunha' e o grego histor 'testemunha' no sentido de 'aquele que vê'. Esta concepção da visão como fonte essencial de conhecimento leva-nos à idéia que histor 'aquele que vê' é também aquele que sabe; historein em grego antigo é 'procurar saber', 'informar-se'. Historie significa pois "procurar". É este o sentido da palavra em Heródoto, no início das suas Histórias, que são "investigações", "procuras" [cf. Benveniste, 1969, t. II, pp. 173-74; Hartog, 1980]. Ver, logo saber, é um primeiro problema. [pg. 018]
Mas nas línguas românicas (e noutras), 'história' exprime dois, senão três, conceitos diferentes. Significa: 1) esta "procura das ações realizadas pelos homens" (Heródoto) que se esforça por se constituir em ciência, a ciência histórica; 2) o objeto de procura é o que os homens realizaram. Como diz Paul Veyne, "a história é quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos" [1968, p. 423]. Mas a história pode ter ainda um terceiro sentido, o de narração. Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na "realidade histórica" ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula. O inglês escapa a esta última confusão porque distingue entre history e story (história e conto). As outras línguas européias esforçam-se por evitar esta ambigüidade. O italiano tem tendência para designar se não a ciência histórica, pelo menos as produções desta ciência pela palavra 'storiografia'; o alemão estabelece a diferença entre a atividade "científica", Geschichtschreibung, e a ciência histórica propriamente dita, Geschichtswissenschaft. Este jogo de espelhos e de equívocos manteve-se ao longo das épocas. O século XIX, século da história, inventa ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história dentro do saber – falando, como veremos, de 'historismo' ou de 'historicismo' – e uma função, ou melhor, uma categoria do real, a 'historicidade' (a palavra aparece em 1872, em francês). Charles Morazé define-a assim: "Devemos procurar para além da geopolítica, do comércio, das artes e da própria ciência, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica, opondo-os. Sente-se que esta solidariedade está ligada à existência implícita que cada um experimenta em si, duma certa função comum a todos. Chamamos a esta função historicidade" [1967, p. 59].
O conceito de historicidade desligou-se das suas origens "históricas", ligadas ao historicismo do século XIX, para desempenhar um papel de primeiro plano na renovação epistemológica da segunda metade do século XX. A 'historicidade' permite, por exemplo, refutar no plano teórico a noção de "sociedade sem história", refutada por outro lado pelo estudo empírico das sociedades estudadas pela etnologia [Lefort, 1952]. Ela [pg. 019] obriga a inserir a própria história numa perspectiva histórica: "Há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social" [Certeau, 1970, p. 484]. Um filósofo como Paul Ricoeur vê na supressão da historicidade através da história da filosofia o paradoxo do fundamento epistemológico da história. De fato, segundo Ricoeur, o discurso filosófico faz desdobrar a história em dois modelos de inteligibilidade, um modelo de acontecimentos (événementiel) e um modelo estrutural, o que leva ao desaparecimento da historicidade: "O sistema é o fim da história porque ela se anula na lógica; a singularidade é também o fim da história porque toda a história se nega nela. Chegamos a este resultado paradoxal: é sempre na fronteira da história, no fim da história que se compreendem os traços mais gerais da historicidade" [1961, pp. 224-25].
Finalmente, Paul Veyne tira uma dupla lição do fundamento do conceito de historicidade. A historicidade permite a inclusão no campo da ciência histórica de novos objetos da história: o non-événementiel; trata-se de acontecimentos ainda não reconhecidos como tais: história rural, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança através das épocas. Chamaremos non-événementiel à historicidade de que não temos consciência enquanto tal [1971, p. 31]. Por outro' lado, a historicidade exclui a idealização da história, a existência da História com H maiúsculo: "Tudo é histórico, logo a história não existe".
Temos porém de viver e pensar com este duplo ou triplo sentido de 'história'. Lutar contra as confusões grosseiras e mistificadoras entre os diferentes significados, não confundir ciência histórica e filosofia da história. Partilho a desconfiança da maior parte dos historiadores de ofício, perante essa filosofia da história "tenaz e insidiosa" [Lefebvre, 1945-46] que tem tendência, nas suas diversas formas, para levar a explicação histórica à descoberta ou à aplicação de uma causa única e original, para substituir o estudo pelas técnicas científicas de evolução das sociedades, sendo essa evolução concebida como abstração baseada no apriorismo ou num conhecimento muito sumário dos trabalhos científicos. É para mim surpreendente a ressonância que teve – fora dos ambientes históricos, é certo – o panfleto de [pg. 020] Karl Popper The Poverty of Historicism [1966]. Nem um só historiador profissional é nele citado. Esta desconfiança perante a filosofia da história não deve servir de justificação para recusar este tipo de reflexão. A própria ambigüidade do vocabulário revela que a fronteira entre as duas disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é traçável (em última hipótese). O historiador não pode concluir que deve evitar uma reflexão teórica, necessária ao trabalho histórico. É fácil ver que os historiadores mais inclinados a reclamarem-se dos fatos não só ignoram que um fato histórico resulta duma montagem e que estabelecê-lo exige um trabalho técnico e teórico, mas também estão, acima de tudo, cegos por uma filosofia da história.inconsciente, muitas vezes sumária e incoerente. É certo, repito-o, que a ignorância dos trabalhos históricos pela maior parte dos filósofos da história – correspondente ao desprezo dos historiadores pela filosofia – não facilitou o diálogo. Mas a existência de uma revista de grande qualidade como "History and Theory Studies in the philosophy of History", publicada desde 1960 pela Wesleyan University em Middletown (Connecticut, U.S.A.) prova a possibilidade e o interesse duma reflexão comum de filósofos e historiadores, assim como da formação de especialistas informados, no campo da reflexão teórica sobre a história.
Penso – pois – que a brilhante demonstração de Paul Veyne ultrapassa um pouco a realidade. Ele pensa que não se trata dum gênero morto ou que apenas sobrevive "nos epígonos de tom um tanto popular" ou que seja um "falso gênero". De fato, "a menos que seja uma filosofia revelada, uma filosofia da história será um duplo da explicação concreta dos fatos e remeterá para as leis e mecanismos que explicam esses fatos. Só os dois extremos são viáveis: o providencialismo da Cidade de Deus ou então a epistemologia histórica. Todo o resto é bastardo" [1971, p. 40].
Sem chegar ao ponto de dizer, com Raymond Aron, que "a ausência e a necessidade de uma filosofia da história são elementos igualmente característicos do nosso tempo" [1961a, p. 38], diremos que é legítimo que nas margens da ciência histórica se desenvolva uma filosofia da história, como outro ramo do saber. Será desejável que ela não ignore a história dos historiadores [pg. 021] da mesma maneira que estes devem admitir que ela possa ter como o objeto da história relações de conhecimento diferentes das suas.
A dualidade da história como história-realidade e história-estudo desta realidade explica, segundo me parece, as ambigüidades de algumas declarações de Lévi-Strauss sobre a história. Assim, numa discussão com Maurice Godelier, o qual, tendo declarado que a homenagem prestada, em Du miel aux cendres, à história como contingência, irredutível, se voltava contra a própria história e que equivalia a "dar à ciência da história um estatuto... impossível, conduzi-la a um impasse", Lévi-Strauss replicou: "Não sei a que chamais ciência da história. Contentarme-ei em dizer simplesmente a história; e a história é algo que não podemos dispensar, precisamente porque esta história nos põe constantemente perante fenômenos irredutíveis" [Lévi-Strauss, Augé e Godelier, 1975, pp. 182-83]. Toda a ambigüidade da palavra 'história' está contida nesta declaração.
Irei pois abordar a história pedindo a um filósofo a idéia de base:
"A história só é história na medida em que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se mantém confuso, misturado... A história é essencialmente equívoca, no sentido de que é virtualmente événementielle e virtualmente estrutural. A história é na verdade o reino do inexato. Esta descoberta não é inútil; justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas. O método histórico só pode ser um método inexato... A história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tomar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Finalmente, esta reflexão procura justificar todas as aporias do ofício de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalado na sua apologia da história e do ofício de historiador. Estas dificuldades não são vícios do método, são equívocos bem fundamentados" [Ricoeur, 1961, p. 226].
Este discurso, excessivamente pessimista sob certos aspectos, parece-me no entanto verdadeiro. [pg. 022]
Apresentarei em primeiro lugar os paradoxos e ambigüidades da história, para melhor a definir como ciência, ciência original, mas fundamental.
Tratarei em seguida dos aspectos fundamentais da história, muitas vezes misturados, mas que é necessário distinguir: a cultura histórica, a filosofia da história, o ofício de historiador.
Fa-lo-ei numa perspectiva histórica, no sentido cronológico do termo. A crítica feita na primeira parte, da concepção linear e teleológica da história, afastará a suposição de que identifico a cronologia e o progresso qualitativo, mesmo que sublinhe efeitos cumulativos do conhecimento e aquilo a que Inácio Meyerson chamou o "aumento de consciência histórica" [1956, p. 354].
Não tentarei ser exaustivo. O que importa é mostrar, na primeira perspectiva, através de alguns exemplos, o tipo de relações que as sociedades históricas mantiveram com o seu passado e o lugar que a história ocupa no seu presente. Na ótica da filosofia da história gostaria de mostrar, através de alguns grandes espíritos e de algumas correntes de pensamento importantes, como, para além ou fora da prática disciplinar da história, em certos meios e em certas épocas, a história se conceituou e ideologizou.
O horizonte profissional da história dará, paradoxalmente, maior lugar à noção de evolução e aperfeiçoamento. É que, colocando-se na perspectiva da tecnologia e da ciência, aí encontrará a inevitável idéia do progresso técnico.
A última parte, consagrada à situação atual da história, retomará alguns dos temas fundamentais deste artigo e alguns aspectos novos. A ciência histórica conheceu, desde há meio século, um avanço prodigioso: renovação, enriquecimento das técnicas e dos métodos, dos horizontes e dos domínios. Mas, mantendo com as sociedades globais relações mais intensas que nunca, a história profissional e científica vive uma crise profunda. O saber da história é tanto mais confuso quanto mais o seu poder aumenta.
[pg. 023]

1. Paradoxos e ambigüidades da história

1.1 A história é uma ciência do passado ou "só há história contemporânea"?

Marc Bloch não gostava da definição "A história é a ciência do passado" e considerava absurda "a própria idéia de que o passado, enquanto-tal, possa ser objeto da ciência" [1941-42, pp. 32-331. Ele propunha que se definisse a história como "a ciência dos homens no tempo" [ibid.]. Pretendia com isso sublinhar três caracteres da história. O primeiro é o seu caráter humano. Embora a investigação histórica englobe hoje alguns domínios da natureza [cf. Le Roy Ladurie, 1967], admite-se geralmente que a história é a história humana e Paul Veyne sublinhou que uma "enorme diferença" separa a história humana da história natural: "O homem delibera, a natureza não; a história humana tornar-se-ia sem sentido se negligenciássemos o fato de os homens terem objetivos, fins, intenções" [1968, p. 424].
Esta concepção da história humana convida muitos historiadores a pensarem que a parte central e essencial da história é a história social. Charles-Edmond Perrin escreveu sobre Marc Bloch: "À história ele atribui como objeto o estudo do homem, enquanto integrado num grupo social" [em Labrousse, 1967, p. 3]; e Lucien Febvre acrescenta: "Não o homem, mais uma vez, não o homem, nunca o homem. As sociedades humanas, os grupos organizados" [ibid.]. Em seguida, Marc Bloch pensava nas relações que o passado e o presente entretecem ao longo da história. Considerava que a história não só deve permitir compreender o "presente pelo passado" – atitude tradicional – mas também compreender o "passado pelo presente" [1941, p. 44-50]. Confirmando resolutamente o caráter científico e abstrato do trabalho histórico, Marc Bloch não aceitava que esse trabalho fosse estritamente tributário da cronologia: seria um erro grave pensar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigações devesse necessariamente modelar-se pela dos acontecimentos. Para restituírem à história o seu movimento verdadeiro, seria muitas vezes vantajoso lerem-na, como dizia [pg. 024] Maitland, "ao contrário" [ibid., pp. 48-49]. Daí o interesse de "um método prudentemente regressivo" [ibid., p. 55]. Prudentemente, isto é, que não transporte ingenuamente o presente para o passado e que não procure por outras vias um trajeto linear que seria tão ilusório como o sentido contrário. Há rupturas e descontinuidades inultrapassáveis quer num sentido quer noutro.
A idéia da história dominada pelo presente baseia-se numa célebre frase de Benedetto Croce em La stone come pensiero e cone azione,, que considera que "toda a história" é "história contemporânea". Croce entende por isso que "por mais afastados no tempo que pareçam os acontecimentos de que trata, na realidade, a história liga-se às necessidades e às situações presentes nas quais esses acontecimentos têm ressonância" [1938, p. 5]. De fato, Croce pensa que, a partir do momento em que os acontecimentos históricos podem ser repensados constantemente, deixam de estar "no tempo"; a história é o "conhecimento do eterno presente" [Gardiner, 1952]. Esta forma extrema de idealismo é a negação da história. Como E.H. Carr notou, Croce inspirou a tese de Collingwood em The Idea of History [1932], recolha de artigos póstuma, onde o historiador britânico afirma – misturando os dois sentidos de história, a investigação do historiador e as séries de acontecimentos passados, sobre os quais investiga – que ia "história não trata nem "do passado enquanto tal" nem, das "concepções do historiador enquanto tais", mas da "inter-relação entre os dois aspectos" [Carr, 1961, pp. 15-16]. Concepção simultaneamente fecunda e perigosa. Fecunda, porque é verdade que o historiador parte do presente para pôr questões ao passado. Perigosa, porque se o passado tem, apesar de tudo, uma existência na sua relação com o presente, é inútil acreditar num passado independente daquele que o historiador constrói (veja-se o suplemento 16 de "History and Theory", The constitution of the historical past, 1977). Esta consideração condena todas as concepções dum passado "ontológico" como é expresso, por exemplo, na definição de história de Émile Callot: "Uma narração inteligível de um passado definitivamente esgotado" [1962, p. 32]. O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história. Isto é verdadeiro em dois sentidos. Primeiro, [pg. 025] porque o progresso dos métodos e das técnicas permite pensar que uma parte importante dos documentos do passado está ainda por se descobrir. Parte material: a arqueologia decorre sem cessar dos monumentos desconhecidos do passado; os arquivos do passado continuam incessantemente a enriquecer-se. Novas leituras de documentos, frutos de um presente que nascerá no futuro, devem também assegurar ao passado uma sobrevivência – ou melhor, uma vida –, que deixa de ser "definitivamente passado". À relação essencial presente-passado devemos pois acrescentar o horizonte do futuro. Ainda aqui os sentidos são múltiplos. As teologias da história subordinaram-na a um objetivo definido como o seu fim, o seu cumprimento e a sua revelação. Isto é verdadeiro na história cristã, absorvida pela escatologia; mas também o é no materialismo histórico (na sua versão ideológica) que se baseia numa ciência do passado, um desejo de futuro não dependente apenas da fusão duma análise científica da história passada e duma prática revolucionária, esclarecida por essa análise. Uma das tarefas da ciência histórica consiste em introduzir, por outras vias que não a ideologia e respeitando-a imprevisibilidade do futuro, o horizonte do futuro na sua reflexão [Erdmann, 1964; Schulin, 1973]. Pense-se simplesmente nesta constatação banal mas cheia de conseqüências um elemento fundamental dos historiadores dos períodos antigos é o fato de saberem o que se passou depois.
Os historiadores do contemporâneo, do tempo presente, ignoram-no. A história contemporânea difere assim (há outras razões para esta diferença) da história das épocas anteriores.
Esta dependência da história do passado em relação ao presente deve levar o historiador a tomar certas precauções. Ela é inevitável e legitima, na medida em que o passado não deixa de viver e de se tomar presente. Esta longa duração do passado não deve, no entanto, impedir o historiador de se distanciar do passado, uma distância reverente, necessária para o respeitar e evitar o anacronismo.
Penso que a história é bem a ciência do passado, com a condição de saber que este passado se torna objeto da história, por uma reconstrução incessantemente reposta em causa – não podemos falar das cruzadas como o teríamos feito antes do colonialismo [pg. 026] do século XIX, mas devemos interrogar-nos sobre se, e em que perspectivas, o termo "colonialismo" pode ser aplicado à instalação dos Cruzados da Idade Média, na Palestina [Prawer, 1969-701.
Esta interação entre passado e presente é aquilo a que se chamou a função social do passado ou da história. Também Lucien Febvre [1949]: "A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definira função social da história' (1949, p. 438). E Eric Hobsbawm interrogou-se sobre a "função social do passado" [1972; veja-se também o artigo "Passado/presente" neste volume da Enciclopédia].
Daremos ainda alguns exemplos de como cada época fabrica mentalmente a sua representação do passado histórico.
Georges Duby [ 1973] ressuscitou, recriou a batalha de Bouvines (27 de julho de 1214), vitória decisiva do rei da França Filipe Augusto sobre o imperador Otão IV e os seus aliados. Orquestrada pelos historiógrafos franceses e tornada lendária, a batalha, depois do século XIII, caiu no esquecimento; conheceu depois uma ressurreição no século XVII, porque exaltava a recordação da monarquia francesa, sob a Monarquia de Julho, porque os historiadores liberais e burgueses (Guizot, Augustin Thierry) vêem nela uma aliança benéfica entre a realeza e o povo, e entre 1871 e 1914, – como uma primeira vitória dos franceses sobre os alemães"! Depois de 1945, Bouvines cai no desprezo da história-batalha.
Nicole Loraux e Pierre Vidal-Naquet mostraram como na França, de 1750 a 1850, de Montesquieu a Victor Duruy, se monta uma imagem "burguesa" de Atenas antiga,cujas principais pais características teriam sido o "respeito pela propriedade, respeito pela vida privada, expansão do comércio, do trabalho e da indústria" e onde se reencontram as mesmas hesitações da burguesia do século XIX: "República ou Império? Império autoritário? Império liberal? Atenas assume simultaneamente todas estas figurações" [Loraux e Vidal-Naquet, 1979, pp. 207-8, 222]. Entretanto, Zvi Yavetz, interrogando-se sobre as razões [pg. 027] pelas quais Roma teria sido o modelo histórico da Alemanha no início do século XIX respondia: "Porque o conflito entre senhores e camponeses prussianos arbitrado depois de Jena (1806) pela intervenção reformista do Estado, sob o controle de estadistas prussianos, fornecia um modelo que se julgava reencontrar na história de Roma antiga: Niebuhr, autor da Rómische Geschichte, aparecida em 1811-12, era íntimo colaborador do ministro prussiano Stein" [1976, pp. 289-90].
Philippe Joutard [ 1977] seguiu a par e passo a memória do levantamento popular dos camisards huguenotes nas Cevenas, no início do século XVIII. Na historiografia escrita apareceu, em 1840, uma viragem. Até então, os historiadores, católicos ou protestantes, só nutriam desprezo por esta revolta de camponeses. Mas com a Histoire des pasteurs du désert de Napoléon Peyrat (1843), Les Prophètes protestants de Ami Bost (1842) e depois com a Histoire de France de Michelet (1833-67), desenvolveu-se a lenda dourada dos "Camisards", à qual se opõe uma lenda católica. Esta oposição alimenta-se explicitamente com as paixões políticas da segunda metade do século XIX, levando ao confronto entre partidários do movimento e defensores da ordem, erigindo estes os "camisards" em antepassados de todas as revoltas do século XIX, pioneiros do "eterno exército da desordem", "os primeiros precursores dos demolidores da Bastilha", os precursores dos "Convnunards" (partidários da Comuna de Paris) e dos "atuais socialistas, os seus descendentes diretos", com os quais "teriam aprendido o direito à pilhagem, ao homicídio e ao incêndio, em nome da liberdade da greve". Entretanto, num outro registro de memória, transmitida pela tradição oral e segregada por uma "outra história", Philippe Joutard encontrou uma lenda positiva e viva dos "Camisards", mas que também funciona em relação ao presente e faz dos revoltosos de 1702 "os laicos e os republicanos" do final do reinado de Luís XIV. Mais tarde, o despertar regionalista transforma-os em rebeldes occitanos e a Resistência, em maquisards.
Foi também em função de posições e idéias contemporâneas que nasceu na Itália, após a Primeira Guerra Mundial, uma polêmica sobre a Idade Média (Falco, Severino). Ainda recentemente, o medievalista Ovidio Capitani evocou a distância e a [pg. 028] proximidade da Idade Média, numa recolha de ensaios com um título significativo, Medioevo passato prossimo: "A atualidade da Idade Média é esta: saber que nada pode fazer, exceto procurar Deus lá onde ele não se encontra... A Idade Média é "atual", porque é passado: mas passado enquanto elemento que se ligou à nossa história de maneira definitiva, para sempre, e que obriga a ter em conta, grande complexo de respostas que o homem já deu e das quais não pode esquecer-se, mesmo que tenha verificado a sua inadequação. A única seria abolir a história..." [1979, p. 276].
Dessa forma, a historiografia surge como seqüência de novas leituras do passado, plena de perdas e ressurreições, falhas de memória e revisões. Estas atualizações também podem afetar o vocabulário do historiador, introduzindo-lhe anacronismos conceituais e verbais, que falseiam gravemente a qualidade do seu trabalho. É o que acontece em exemplos relativos à história inglesa e européia entre 1450 e 1650 e, a propósito de termos como "partido", "classe", etc., Hexter reclamou uma grande e rigorosa revisão do vocabulário histórico.
Collingwood viu nesta relação entre passado e presente o objeto privilegiado da reflexão do historiador sobre o seu trabalho: "O passado é um aspecto ou uma função do presente; é sempre assim que ele deve aparecer ao historiador que reflete inteligentemente sobre o seu próprio trabalho ou, dito de outro modo, visa uma filosofia da história" [cf. Debbins, 1965, p. 139].
Esta relação entre presente e passado no discurso sobre a história é sempre um aspecto essencial do problema tradicional da objetividade em história.

1.2 Saber e poder: objetividade e manipulação do passado

Segundo Heidegger, a história seria não só a projeção que o homem faz do presente no passado, mas a projeção da parte mais imaginária do seu presente, a projeção no passado do futuro que ele escolheu, uma história-ficção, uma história-desejo às [pg. 029] avessas. Paul Veyne tem razão em condenar este ponto de vista e em dizer que Heidegger "mais não faz do que erigir em filosofia antiintelectualista a historiografia nacionalista do século passado". Mas não revela grande otimismo ao acrescentar: "Entretanto, tal como a ave de Minerva, despertou um pouco tarde demais" [1968, p. 424]?
Em primeiro lugar, porque há pelo menos duas histórias e voltarei a este ponto: a da memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado. É desejável que a informação histórica, fornecida pelos historiadores de ofício, vulgarizada pela escola (ou pelo menos deveria sê-lo) e os mass media, corrija esta história tradicional falseada. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros. Mas estará o historiador imunizado contra uma doença senão do passado, pelo menos do presente e, talvez, uma imagem inconsciente de um futuro sonhado?
Deve estabelecer-se uma primeira distinção entre objetividade e imparcialidade: "A imparcialidade é deliberada, a objetividade inconsciente. O historiador não tem o direito de prosseguir uma demonstração, de defender uma causa, seja ela qual, for, a despeito dos testemunhos. Deve estabelecer e evidenciar a verdade ou o que julga' ser a verdade. Mas é-lhe impossível ser objetivo, abstrair das suas concepções de homem, nomeadamente quando se trata de avaliar a importância dos fatos e as suas relações causais" [Génicot, 1980, p. 112].
É preciso ir mais longe. Se esta distinção bastasse, o problema da objetividade não seria, segundo a expressão de Carr, a "famous crux" que fez correr muita tinta. [Veja-se especialmente Junker e Reisinger, 1974; Leff, 1969; Passmore, 1598; Blake, 1959].
Assinalemos para começar as incidências do meio social sobre as idéias e métodos do historiador. Wolfgang Mommsen destacou três elementos desta pressão social: 1) A imagem que tem de si próprio (self-image) o grupo social que o historiador interpreta, ao qual pertence ou está enfeudado; 2) A sua concepção das causas da mudança social; 3) A perspectiva de mudanças [pg. 030] sociais futuras que o historiador julga prováveis ou'possíveis e que orientam'a sua interpretação histórica" [1978, p. 23].
Mas se não podemos evitar todo o "pressentimento" – toda a influência deformante do presente na leitura do passado –, podemos limitar as conseqüências nefastas para a objetividade. Primeiro – e voltarei a este fato capital – porque existe um corpo de especialistas habilitados a examinar e a julgar a produção dos seus colegas –"Tucídides não é um colega", disse judiciosamente Nicole Loraux mostrando que a Guerra do Peloponeso, embora se nos apresente como um documento que dá todas as garantias de seriedade ao discurso histórico, não é um documento no sentido moderno do termo, mas um texto, um texto antigo, que é, antes de mais nada, um discurso e que pertence ao domínio da retórica [Loraux, 1980]. Mostrarei mais tarde – como Nicole Loraux bem sabe – que todo o documento é um monumento ou um texto, e nunca é "puro", isto é, puramente objetivo. Falta referir que desde que há história, há entrada no mundo de profissionais, exposição à crítica dos outros historiadores. Quando um pintor diz do quadro de um outro pintor: "está mal feito", um escritor da obra de um outro escritor: "está mal escrito", ninguém se engana com esse comentário, que significa: "não gosto disso". Mas quando um historiador critica a obra de um "colega" pode certamente enganar-se a si mesmo e uma parte do seu juízo pode ter origem no seu gosto pessoal, mas a sua crítica deverá basear-se, pelo menos em parte, em critérios "científicos". Desde o alvorecer da história que se julga o historiador pela medida da verdade. Com razão ou sem ela, Heródoto passa durante muito tempo por "mentiroso" [Momigliano, 1958; cf. também Hartog, 1980] e Políbio, no livro XII das suas Histórias, ataca sobretudo um confrade, Timeu.
Como disse Wolfgang Mommsen, as obras históricas, os juízos históricos são "intersubjetivamente compreensíveis" e "intersubjetivamente verificáveis". Esta intersubjetividade é constituída pelo juízo dos outros e, em primeiro lugar, dos historiadores. Mommsen indica três modos de verificação: a) Foram as fontes pertinentes utilizadas e o último estágio de investigação foi tomado em consideração? b) Até que ponto estes juízos históricos se aproximaram de uma integração ótima de todos os [pg. 031] dados históricos possíveis? c) Os modelos explícitos ou subjacentes de explicação são rigorosos, coerentes e não-contraditórios?" [1978, p. 33]. Poder-se-ia encontrar outros critérios, mas a possibilidade de um largo acordo entre os especialistas sobre o valor de uma grande parte de toda a obra histórica é a primeira prova da "cientificidade" da história e a pedra de toque da objetividade histórica.
No entanto, se quisermos aplicar à história a máxima do grande jornalista liberal, Scott: "os fatos são sagrados, a opinião é livre" [citado em Carr, 1961, p. 4], devemos fazer duas observações. A primeira é que em história o campo de opinião é menos vasto do que o profano julga, se nos mantivermos no campo da história científica (falarei posteriormente da história dos amadores). A segunda é que, em contrapartida, os fatos são por vezes menos sagrados do que se pensa, pois, se fatos bem-estabelecidos não podem ser negados (por exemplo, a morte de Joana d'Arc na fogueira em Rouen em 1431, de que só duvidam os mistificadores e os ignorantes inqualificáveis), o fato não é em história a base essencial de objetividade ao mesmo tempo porque os fatos históricos são fabricados e não dados e porque, em história, a objetividade não é a pura submissão aos fatos.
Sobre a construção do fato histórico encontraremos esclarecimentos em todos os tratados de metodologia histórica [por exemplo, Salmon, 1969, ed. 1976, pp. 46-48; Carr, 1961, pp. 1-24; Topolski, 1973, parte V]. Citarei apenas Lucien Febvre na sua célebre sessão inaugural no Collège de France, a 13 de dezembro de 1933: "Dado? Não, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a ajuda de hipóteses e conjecturas, por um trabalho delicado e apaixonante... Elaborar um fato é construí-lo. Se quisermos, uma questão dá-nos uma resposta. E, se não há questão, não fica mais que o nada" [1933, pp. 7-91. Só há fato ou fato histórico no interior de uma história-problema.
Daremos em seguida dois testemunhos de que a objetividade histórica não é a pura submissão aos fatos: "Toda a tentativa de compreender a realidade (histórica) sem hipóteses subjetivas só conseguiria chegar a um caos de "juízos existenciais" sobre inúmeros acontecimentos isolados" [Max Weber, 1904, 3ª ed., 1958, p. 177]. [pg. 032] Carr fala com humor do "fetichismo dos fatos" dos historiadores positivistas do século XIX: "Ranke acreditava piamente que a divina Providência cuidaria do sentido da História, se ele próprio cuidasse dos fatos... A concepção liberal da história do século XIX tinha uma estrita afinidade com a doutrina econômica do laissez faire... Estava-se na idade da inocência e os historiadores passeavam-se no Jardim do Éden... nus e sem vergonha, perante o deus da história. Depois, conhecemos o Pecado e fizemos a experiência da queda e os historiadores que hoje pretendem dispensar uma filosofia da história (tomada aqui no sentido de uma reflexão crítica sobre a prática histórica) tentam simplesmente e em vão, como os membros duma colônia de nudistas, recriar o Jardim do Éden, no seu jardim de arrabalde" [1961, pp. 13-14].
Se a imparcialidade só exige do historiador honestidade, a objetividade supõe mais. Se a memória faz parte do jogo do poder, se autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem como norma a verdade. Os abusos da história só são um fato do historiador, quando este se torna um partidário, um político ou um lacaio do poder político [Schieder, 1978; Faber, 1978]. Quando Paul Valéry declara: "A história é o ,produto mais perigoso que a química do intelecto elaborou... A história justifica o que se quiser. Não ensina rigorosamente nada, pois tudo contém e de tudo dá exemplos" [1931, pp. 63-64]. Este espírito, aliás tão agudo, confunde a história humana com a história científica e revela a sua ignorância sobre o trabalho histórico.
Embora sendo um pouco otimista, Paul Veyne tem razão ao escrever: "É não compreender nada do conhecimento histórico e da ciência em geral não ver que nela está subentendida uma norma de veracidade... Identificar a história científica com as recordações nacionais de onde ela veio é confundir a essência de uma coisa com a sua origem; é já não distinguir a alquimia da química, a astronomia da astrologia... Desde o primeiro momento... que a história dos historiadores se define contra a função social das recordações históricas e se considera a si mesma [pg. 033] como participando de um ideal de verdade e de um interesse de pura curiosidade" [1968, p. 424].
A objetividade histórica – objetivo ambicioso – constrói-se pouco a pouco através de revisões incessantes do trabalho histórico, laboriosas verificações sucessivas e acumulação de verdades parciais. Quem talvez tenha exprimido melhor esta lenta marcha da história para a objetividade foram dois filósofos.
Paul Ricoeur na Histoire et Vérité: "Esperamos da história uma certa objetividade, a objetividade que lhe compete; a maneira como a história nasce e renasce, no-lo demonstra; ela procede sempre pela retificação das sistematizações oficiais e pragmáticas do seu passado, operadas pelas sociedades tradicionais. Esta retificação tem o mesmo espírito que a das ciências físicas no confronto das suas primeiras sistematizações com a aparência da percepção e com as cosmologias que ainda lhe são tributárias [1955, pp. 24-25].
E Adam Schaft: "O nosso conhecimento adquiriu necessariamente a forma de um processo infinito que, aperfeiçoando o saber sobre diversos aspectos da realidade, analisada sob diferentes prismas e acumulando verdades parciais, não produz uma simples soma de conhecimentos, nem modificações puramente quantitativas do saber, mas transformações qualitativas da nossa visão da história" [1970, pp. 338 ss.].

1.3 O singular e o universal: generalizações e singularidades da história

A contradição mais flagrante da história é sem dúvida o fato do seu objeto ser singular, um acontecimento, uma série de acontecimentos, de personagens que só existem uma vez, enquanto que o seu objetivo, como o de todas as ciências, é atingir o universal, o geral, o regular.
Já Aristóteles tinha afastado a história do mundo das ciências, precisamente porque ela se ocupa do particular que não é um objeto da ciência – cada fato histórico só aconteceu e só [pg. 034] acontecerá uma vez. Esta singularidade constitui, para muitos, produtores ou consumidores de história, a sua principal atração: "Amar o que nunca se verá duas vezes".
A explicação histórica deve tratar dos objetos "únicos" [Gardiner, 1952, II, 3]. As conseqüências deste reconhecimento da singularidade do fato histórico podem ser reduzidas a três que tiveram um enorme papel na história da história.
A primeira é a primazia do acontecimento. Se pensamos que, de fato, o trabalho histórico consiste em estabelecer acontecimentos, basta aplicar aos documentos um método que deles os faça sair. Assim, Dibble [1963] distinguiu quatro tipos de inferências, que levam dos documentos aos acontecimentos, em função – da natureza dos documentos que possam existir: testemunhos individuais (testimony), fontes coletivas (social bookkeeping), indicadores diretos (direct indicators), correlatos (correlates). Este método excelente só tem o defeito de definir um objetivo contestável. Em primeiro lugar, confunde acontecimento e fato histórico e sabemos hoje que o fim da história não é estabelecer esses dados falsamente "reais" batizados de acontecimentos ou fatos históricos.
A segunda conseqüência da limitação da história ao singular consiste em privilegiar o papel dos indivíduos e, em especial, dos grandes homens. Edward H. Carr mostrou como, na tradição ocidental, esta tendência remonta aos Gregos, que atribuíram as suas mais antigas epopéias e as suas primeiras leis a indivíduos hipotéticos (Homero, Licurgo e Sólon), renovou-se no Renascimento com a voga de Plutarco; Carr reencontra o que chama jocosamente "a teoria da história do "mau rei João" [Sem Terra]" (the bad king John theory of history) na obra de Isaiah Berlin Historical Inevitability (1954) [Carr, 1961]. Esta concepção, que desapareceu praticamente da história científica, infelizmente continua a ser espalhada por vulgarizadores e pelos media, a começar pelos editores. Não confundo esta explicação vulgar da história feita por indivíduos, com o gênero biográfico que – apesar dos seus erros e mediocridades – é um gênero maior da história e produziu obras-primas historiográficas como o Frederico II (Kaiser Friedrich der Zweite) de Ernest Kantorowicz (1927-31). Carr tem razão em lembrar o que Hegel [pg. 035] dizia dos grandes homens: "Os indivíduos históricos são os que cumpriram e quiseram, não um objeto imaginado e presumido, mas uma realidade justa e necessária e que a cumpriram porque tiveram a revelação interior do que pertence realmente ao tempo e às necessidades" [Hegel, 1805-31].
De fato, como Michel de Certeau bem disse [19751, a especialidade da história é o particular, mas o particular, como o mostrou Elton [1967], é diferente do individual e o particular especifica quer a atenção, quer a investigação histórica, não enquanto objeto pensado, mas, pelo contrário, porque é o limite do pensável.
A terceira conseqüência abusiva que se extraiu do papel do particular em história consiste em reduzi-la a uma narração, a um conto. Augustin Thierry, como nos recorda Roland Barthes, foi um dos defensores – aparentemente dos mais ingênuos – desta crença nas virtudes do conto histórico: "Disse-se que o objeto da história era contar, não provar; não o sei, mas estou certo de que, em história, o melhor gênero de prova, o mais capaz de tocar e convencer os espíritos, o que inspira menor desconfiança e deixa menos dúvidas, é a narração completa..." [1840, ed. 1851, II, p. 227]. Mas o que significa completa? Passemos por cima do fato de um conto – histórico ou não – ser uma construção e, sob a sua aparência honesta e objetiva, proceder a toda uma série de escolhas não-explícitas. Toda a concepção da história que a identifica com o conto afigura-se-me hoje como inaceitável. Certamente que a sucessividade que constitui o estofo do material histórico obriga a dar ao conto um lugar que me parece fundamentalmente de ordem pedagógica. Corresponde simplesmente à necessidade que há, em história, de expor o como, antes de procurar o porquê, o que coloca o conto na base da lógica do trabalho histórico. O conto não é mais que uma fase preliminar, mesmo tendo exigido um longo trabalho prévio por parte do historiador. Mas este reconhecimento de uma retórica indispensável em história não deve conduzir-nos à negação do caráter científico da história.
Num livro sedutor, Hayden White [1973] estudou a obra dos principais historiadores do século XIX, entendendo-a como uma pura forma retórica, um discurso narrativo em prosa. Para [pg. 036] conseguirem explicar, ou melhor, para obterem um "efeito de explicação", os historiadores podem escolher entre três estratégias: explicação por argumento formal, por intriga (emplotment) ou por implicação ideológica. No interior dessas três estratégias há quatro modos possíveis de articulação, para atingir o efeito explicativo: para os argumentos há o formalismo, o organicismo, o mecanicismo e o contextualismo; para as intrigas há o romance, a comédia, a tragédia e a sátira; para a implicação ideológica há o anarquismo, o conservadorismo, o radicalismo e o liberalismo. A combinação específica dos modos de articulação tem como resultado o "style" historiográfico dos autores individuais. Este estilo é atingido por um ato essencialmente poético, no qual Hayden White utiliza as categorias aristotélicas da metáfora, da metonímia, da sinédoque e da ironia. Aplicou esta trama a quatro historiadores: Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt e a quatro filósofos da história: Hegel, Marx, Nietzsche e Croce.
O resultado desta investigação é, em primeiro lugar, a constatação que as obras dos principais filósofos da história do século XIX só diferem das dos seus correspondentes no campo da "história propriamente dita", pela ênfase e não pelo conteúdo. Responderei de imediato a esta constatação que Hayden White mais não fez que descobrir a relativa unidade de estilo de uma época e reencontrar o que Taine tinha posto em relevo numa perspectiva ainda mais vasta, relativamente ao século XVII: "Entre uma aléia de Versailles, um raciocínio filosófico de Malebranche, uma regra de verificação de Boileau, uma lei de Colbert sobre as hipotecas, uma máxima de Bossuet sobre o reino de Deus, parece existir uma distância infinita. Os fatos são tão diferentes entre si que à primeira vista os julgamos isolados e separados. Mas os fatos comunicam entre si pela definição dos grupos em que estão integrados" [citado em Ehrard e Palmade, 1964, p. 72].
Segue-se a caracterização dos oito autores escolhidos da seguinte maneira: Michelet é o realismo histórico, entendido como romance; Ranke, o realismo histórico, como comédia; Tocqueville, o realismo histórico, como tragédia; Burckhardt, o realismo histórico, como sátira; Hegel, a poética da história, e [pg. 037] da vida para além da ironia; Marx, a defesa filosófica da história em termos metonímicos; Nietzsche, a defesa poética da história em termos metafísicos; e Croce, a defesa filosófica da história em termos irônicos.
As sete conclusões gerais sobre a consciência histórica no século XIX, propostas por Hayden White, podem resumir-se em três idéias: 1) Não existe diferença fundamental entre história e filosofia da história; 2) A escolha das estratégias de explicação histórica é mais de ordem moral ou estética do que epistemológica; 3) A reivindicação duma cientificidade da história não é mais que o disfarce de uma preferência por esta ou aquela modalidade de conceitualização histórica.
E por fim, a conclusão mais geral – mesmo para além da concepção de história no século XIX – é que a obra do historiador é uma forma de atividade simultaneamente poética, científica e filosófica.
Seria demasiado fácil ironizar – sobretudo a partir do esquelético resumo que dei de um livro recheado de sugestivas análises detalhadas – sobre esta concepção de "meta-história", os seus a priori e os seus simplismos.
Vejo aqui duas possibilidades interessantes de reflexão. A primeira é a que contribui para esclarecer a crise do historicismo no fim do século XIX, da qual falarei mais adiante. A segunda é que ele permite pôr – com base num exemplo histórico – o problema das relações entre a história como ciência, como arte e como filosofia.
Parece-me que estas relações se exprimem antes de mais nada historicamente e que, onde Hayden White vê uma espécie de natureza intrínseca, há a situação histórica de uma disciplina; podemos dizer, em resumo, que a história, intimamente misturada até o fim do século XIX com a arte e com a filosofia, se esforça (o que consegue parcialmente) por se tornar mais específica, técnica e científica e menos literária e filosófica.
Devemos no entanto notar que alguns dos maiores historiadores contemporâneos reivindicam ainda para a história o caráter de arte. Para Georges Duby, "a história é acima de tudo [pg. 038] uma arte, uma arte essencialmente literária. A história só existe pelo discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom" [Duby e Lardreau, 1980, p. 50]. Mas, como ele próprio afirma: "A história, se deve existir, não deve ser livre: ela pode muito bem ser um modo do discurso político, mas não deve ser propaganda; pode muito bem ser um gênero literário, mas não deve ser literatura" [ibid., pp. 15-16]. Torna-se pois claro que a obra histórica não é uma obra de arte como as outras, que o discurso histórico tem a sua especificidade.
A questão foi bem posta por Roland Barthes: "A narração dos acontecimentos passados, submetida vulgarmente, na nossa cultura, desde os Gregos, à sanção da "ciência" histórica, colocada sob a caução imperiosa do "real", justificada por princípios de exposição "racional", diferirá esta narração realmente, por algum traço específico, por uma indubitável pertinência, da narração imaginária, tal como a podemos encontrar na epopéia, o romance ou o drama?" [1967, p. 65]. Também Émile Benveniste tinha respondido a esta questão, insistindo na intenção do historiador: "O enunciado histórico dos acontecimentos é independente da sua verdade "objetiva". Só conta o desígnio "histórico" do escritor" [1959, p. 240].
A resposta de Roland Banhes, em termos lingüísticos, é que "na história "objetiva" o "real" não é mais que um significado não-formulado, abrigado à sombra da aparente onipotência do referente. Essa situação define aquilo a que se poderia chamar o efeito do real.... o discurso histórico não segue o real, apenas o significa, sem deixar de repetir aconteceu, sem que esta asserção possa ser mais que o significado inverso de toda a narração histórica" [1967, p. 74]. Barthes acaba o seu estudo esclarecendo a atual decadência da história-conto pela procura de uma maior cientificidade: "Assim se compreende que o esbater (senão o desaparecer) da narração na ciência histórica atual, que procura falar mais de estruturas que de cronologias, mais que uma simples mudança de escola, implica uma verdadeira transformação ideológica: a narração histórica morre porque o signo da história é, daqui em diante, menos o real que o inteligível" [ibid., p. 75].
Sobre uma outra ambigüidade do termo "história" que, na maior parte das línguas designa a ciência histórica e um conto [pg. 039] imaginário, a história e uma história (o inglês distingue story e history [cf. Gallie, 1963, pp. 150-72]), Paul Veyne estabeleceu uma visão original da história.
Para ele a história é um conto, uma narração, mas "um conto de acontecimentos verdadeiros" [1971, p. 16]. Ela interessa-se por uma forma particular de singularidade, de individualidade, que é o específico: "A história interessa-se por acontecimentos individualizados dos quais nenhum é a inútil repetição do outro, mas não é a sua individualidade enquanto tal que a interessa: ela procura compreendê-los, isto é, reencontrar neles uma espécie de generalidade ou mais precisamente de especificidade" [ibid., p. 72]. E ainda: "A história é a descrição do que é específico, isto é, compreensível, nos acontecimentos humanos" [ibid., p. 75]. A história assemelha-se então a um romance. É feita de intrigas. Vemos o que esta noção tem de interessante, na medida em que preserva a singularidade sem a fazer cair na desordem, que recusa o determinismo mas implica uma certa lógica, que valoriza o papel do historiador que "constrói" o seu estudo histórico, como um romancista constrói a sua "história". Esta noção tem, aos meus olhos, o defeito de fazer crer que o historiador tem a mesma liberdade que o romancista e que a história não é uma ciência, mas – por muitas precauções que Veyne tome – um gênero literário; enquanto que ela me aparece como uma ciência – o que é banal, mas deve ser dito – que tem ao mesmo tempo o caráter de todas as ciências e caracteres específicos.
Uma primeira precisão. Face aos defensores da história positivista que julgam poder banir toda a imaginação e, até, toda a "idéia" do trabalho histórico, muitos historiadores e teóricos da história reivindicaram e continuam a reivindicar o direito à imaginação.
William Dray definiu a "representação imaginativa" (imaginative re-enactment) do passado como uma forma de explicação racional. A "simpatia" que permite sentir e fazer sentir um fenômeno histórico não seria mais que uma técnica de exposição [Dray, 1957; cf. Beer, 1963]. Gordon Leff opôs a reconstrução imaginativa do historiador ao procedimento do especialista das ciências da natureza: "O historiador, ao contrário do "natural scientist", deve criar o seu próprio quadro para avaliar [pg. 040] os acontecimentos de que trata; ele deve fazer uma reconstrução imaginativa do que, por natureza, não era real, mas estava contido em acontecimentos individuais. Deve abstrair do complexo de atitudes, valores, intenções e convenções que faz parte das nossas ações, para lhe apreender a significação" [1969, pp. 117- 18].
Esta apreciação da imaginação do historiador parece-me insuficiente. Há duas espécies de imaginação a que o historiador pode recorrer: a que consiste em animar o que está morto nos documentos e faz parte do trabalho histórico, pois que este mostra e explica as ações dos homens. É desejável encontar esta capacidade de imaginação que torna o passado concreto – tal como Georges Duby desejava encontrar talento literário no historiador. Mas é ainda mais desejável, pois é necessário que o historiador revele essa outra forma de imaginação, a imaginação científica que, pelo contrário, se manifesta pelo poder de abstração. Nada aqui distingue, nem deve distinguir, o historiador dos outros homens de ciência. Ele deve trabalhar nos seus documentos com a mesma imaginação que o matemático nos seus cálculos, ou o físico e o químico nas suas experiências. É uma questão de estado de espírito e resta-nos aqui seguir Huizinga quando declara que a história não é apenas um ramo do saber, mas também "uma forma intelectual para compreender o mundo" [1936].
Em contrapartida, deploro que um espírito tão fino como Raymond Aron, na sua paixão empirista, tenha afirmado que os conceitos do historiador são vagos porque "na medida em que nos ligamos ao concreto eliminamos a generalidade" [1938a, p. 206]. Os conceitos do historiador são, com efeito, não vagos, mas por vezes metafóricos, precisamente porque devem remeter ao mesmo tempo para o concreto e para o abstrato, sendo a história – como as outras ciências humanas ou sociais – uma ciência, não tanto do complexo, como se gosta de dizer, mas do específico, como o diz com razão Paul Veyne.
A história, como todas as ciências, deve generalizar e explicar. Faz isso de modo original. Como diz Gordon Leff, tal como muitos outros, o método de explicação em história é essencialmente dedutivo. [pg. 041]
"Não haveria história nem discurso conceitual sem generalização... A compreensão histórica não difere pelos processos mentais que são inerentes a qualquer raciocínio humano, mas pelo seu estatuto que é mais o de um saber dedutivo que demonstrável" [1969, pp. 79-80]. A significação em história tanto se faz tornando inteligível um conjunto de dados inicialmente separados, como através da lógica interna de cada elemento: "A significação em história é essencialmente contextual" [ibid., p. 57].
Finalmente, em história as explicações são mais avaliações do que demonstrações, mas incluem a opinião do historiador em termos racionais, inerentes ao processo intelectual de explicação: "Algumas formas de análise causal são nitidamente indispensáveis para qualquer tentativa de estabelecer relações entre acontecimentos; tal como temos de distinguir entre acaso e necessidade, o historiador tem de decidir se cada situação é regulada por fatores de longo termo ou curto termo. Mas, tal como as suas categorias, esses fatores são conceituais. Não correspondem a entidades empiricamente confirmadas ou infirmadas. E, por isso, as explicações da história são avaliações" [ibid., pp. 97-98].
Os teóricos da história esforçaram-se, ao longo dos séculos, por introduzir grandes princípios suscetíveis de fornecer chaves gerais da evolução histórica. As duas principais noções avançadas foram, por um lado, a do sentido da história e, por outro, a das leis da história.
A noção de um sentido da história pode decompor-se em três tipos de explicação: a crença em grandes m0ovimentos cíclicos, a idéia de um fim da história consistindo na perfeição deste mundo, a teoria de um fim da história situado fora dela [Beglar, 1975]. Podemos considerar que as concepções astecas ou, de certo modo, as de Arnold Toynbee, se integram na primeira opinião, o marxismo na segunda e o cristianismo na terceira.
No interior do Cristianismo estabelece-se uma grande clivagem entre os que, com Santo Agostinho e a ortodoxia católica, baseados na idéia das duas cidades, a terrestre e a celeste, exposta na De civitate Dei, sublinham a ambivalência do tempo da história, presente tanto no caos aparente da história humana [pg. 042] (Roma não é eterna e não é o fim da história) como no fluxo escatológico da história divina e os que, com os milenaristas e Joaquim da Fiore, procuram conciliar a segunda e a terceira concepções do sentido da história. A história acabaria uma primeira vez com o aparecimento de uma terceira idade, reino dos santos na terra, antes de acabar com a ressurreição da carne e o juízo final. É esta, no século XIII, a opinião de Joaquim da Fiore e dos seus discípulos que, não só nos faz sair da teoria da história, como também da filosofia da história, para nos fazer entrar na teologia da história. No século XX, a renovação religiosa gerou em alguns pensadores uma recuperação da teologia da história. O russo Berdjaev [1923] profetizou que as contradições da história contemporânea dariam lugar a uma nova criação conjunta do homem e de Deus. O protestantismo do século XX viu defrontarem-se diversas correntes escatológicas: a da "escatologia conseqüente" de Schweizer, a da "escatologia desmitificada" de Baltmann, a da "escatologia realizada" de Dodd, a da "escatologia antecipada" de Cullmann, entre outras (veja-se o artigo "Escatologia", neste volume da Enciclopédia). Retomando a análise de Santo Agostinho, o historiador católico Henri-Irénée Marrou [1968] desenvolveu a idéia da ambigüidade do tempo da história: "O tempo da história está carregado de uma ambigüidade, de uma ambivalência radical: ele é certamente, mas não só, como o imaginava uma doutrina superficial, um "fator de progresso"; a história tem também uma face sinistra e sombria: este acontecimento que se cumpre misteriosamente, traça um caminho através do sofrimento, da morte, e da degradação" [1968].
Sobre a concepção cíclica e a idéia de decadência, já escrevi noutro lado (veja-se o artigo "Decadência", neste volume da Enciclopédia) e exporei mais adiante uma amostragem desta concepção, a filosofia da história de Spengler.
Sobre a idéia do fim da história, consistindo na perfeição deste mundo, a lei mais coerente que foi avançada foi a de progresso (ver artigo "Progresso/reação", neste volume da Enciclopédia. Nesse artigo mostrei o nascimento, triunfo e crítica da noção de progresso; apenas exporei aqui algumas observações sobre o progresso tecnológico) [cf. Gallie, 1963, pp. 191-93]. [pg. 043] Gordon Childe, depois de ter afirmado que o trabalho do historiador consistia em encontrar uma ordem no processo da história humana [1953, p. 5] e defendido que não havia leis em história mas uma "seqüência de ordem", tomou como exemplo desta ordem a tecnologia. Para ele, há um progresso tecnológico "desde a Pré-história à Idade do Carvão", que consiste numa seqüência ordenada de acontecimentos históricos. Mas Gordon Childe lembra que, em cada fase, o progresso técnico é um "produto social" e, se procurarmos analisá-lo desse ponto de vista, apercebemo-nos que o que parecia linear é irregular (erratic) e, para explicar estas "irregularidades e estas flutuações", temos de nos voltar para as instituições sociais, econômicas, políticas, jurídicas, teológicas, mágicas, os costumes e as crenças – que agiram como estímulos ou como freios – em resumo, para toda a história na sua complexidade. Mas será legítimo isolar o domínio da tecnologia e considerar que o resto da história não age sobre ele senão do exterior? Não é a tecnologia uma componente de um conjunto mais vasto, cujas partes só existem pela decomposição mais ou menos arbitrária feita pelo historiador?
Este problema foi posto de uma maneira notável por Bertrand Gille [1978, pp. VIII ss.], que dá a noção de sistema técnico, como um conjunto coerente de estruturas compatíveis umas com as outras. Os sistemas técnicos históricos revelam uma ordem técnica. Este "modo de abordar o fenômeno técnico" obriga a um diálogo com os especialistas dos outros sistemas: o economista, o lingüista, o sociólogo, o político, o jurista, o sábio, o filósofo... Desta concepção sai a necessidade de uma periodização, no momento em que os sistemas técnicos se sucedem uns aos outros, sendo o mais importante compreender, senão explicar totalmente, a passagem de um sistema técnico a outro. Assim, põe-se o problema do progresso técnico, no qual Gille distingue "progresso da técnica" e "progresso técnico", iniciando-se este com a entrada das invenções na vida industrial ou cotidiana.
Gille nota ainda que "a dinâmica dos sistemas", assim concebida, dá um novo valor àquilo a que se chama (expressão simultaneamente vaga e ambígua) as "revoluções industriais". [pg. 044]
Assim fica posto o problema a que chamarei, mais geralmente de o problema da revolução em história. Ele pôs-se à historiografia quer no domínio cultural (revolução da imprensa [cf. McLuhan, 1962; Eisenstein, 1966], revolução científica [cf. Kuhn, 1957]), quer na historiografia [Fussner, 1962; cf. Nadel, 1963], quer no campo político (Revoluções: Inglesa de 1940, Francesa de 1789, Russa de 1917).
Estes acontecimentos e a própria noção de revolução foram ainda recentemente objeto de vivas controvérsias. Parece-me que a tendência atual consiste por um lado em repor o problema em correlação com a problemática da longa duração [Voyelle, 1978] e, por outro, ver nas controvérsias em tomo "da" revolução ou "das" revoluções um campo privilegiado para os pressupostos ideológicos e as escolhas políticas do presente. "É um dos terrenos mais "sensíveis" de toda a historiografia" [Chartier, 1978, p. 497].
A minha opinião é que não há em história leis comparáveis às que foram descobertas no domínio das ciências da natureza – opinião largamente divulgada hoje com a refutação do historicismo e do marxismo vulgar e a desconfiança perante os filósofos da história. Muito depende, aliás, do sentido que se atribui às palavras. Reconhece-se hoje, por exemplo, que Marx não formulou leis gerais da história mas que apenas conceitualizou o processo histórico, unificando teoria (crítica) e prática (revolucionária) [Lichtheim, 1973]. Runciman disse, com justiça, que a história, tal como a sociologia e a antropologia, é "uma consumidora e não uma produtora de leis" [1970, p. 10].
Mas, face às acusações muitas vezes mais provocatórias que convincentes da irracionalidade da história, a minha convicção é que o trabalho histórico tem por fim tomar inteligível o processo histórico e que esta inteligibilidade conduz ao reconhecimento da regularidade na evolução histórica.
É o que reconhecem os marxistas abertos mesmo se têm tendência para fazer pender o termo 'regularidades' para o termo 'leis' [cf. Topolski, 1973, pp. 275-304].
Estas regularidades devem ser reconhecidas primeiro no interior de cada série estudada pelo historiador, que a toma inteligível descobrindo nela uma lógica, um sistema, termo que [pg. 045] prefiro a intriga, pois ele insiste mais no caráter objetivo da operação histórica. Há um provérbio que diz "Comparação não é razão", mas o caráter científico da história reside tanto na valorização das diferenças como das semelhanças, enquanto que as ciências da natureza procuram eliminar as diferenças.
O acaso tem naturalmente um lugar no processo da história e não perturba as regularidades, pois que o acaso é um elemento constitutivo do processo histórico e da sua inteligibilidade.
Montesquieu declarou que "se uma causa particular, como o resultado acidental de uma batalha, conduziu um estado à ruína, é porque existia uma causa geral que fez com que a queda desse estado dependesse duma só batalha"; e Marx escreveu numa carta: "A história universal teria um caráter muito místico se excluísse o acaso. Este acaso, bem entendido, faz parte do processo geral de desenvolvimento e é compensado por outras formas de acaso. Mas a aceleração ou o atraso do processo dependem desses "acidentes", incluindo o caráter "fortuito" dos indivíduos que estão à cabeça do movimento na sua fase inicial" [citado em Carr, 1961, p. 95].
Recentemente, tentou-se avaliar a parte do acaso em certos episódios históricos. Assim, Jorge Basadre [1973] estudou a série de probabilidades na emancipação do Peru. Utilizou os trabalhos de Vendryès [1952] e de Bousquet [1967]. Este último defende que o esforço para matematizar o acaso exclui quer o providencialismo, quer a crença num determinismo universal. Segundo ele, o acaso não participa nem no processo científico, nem na evolução econômica, e manifesta-se como tendência para um equilíbrio que elimina, não o próprio acaso mas as suas conseqüências. As formas de acaso mais "eficazes" em história seriam o acaso meteorológico, o assassinato, o nascimento de gênios.
Esboçada assim a questão das regularidades e da racionalidade em história, resta-me evocar os problemas da unidade e da diversidade, da continuidade e da descontinuidade em história. Como estes problemas estão no âmago da crise atual da história, voltarei a eles no final deste ensaio.
Limitar-me-ei a dizer que, se o objetivo da verdadeira história foi sempre o de ser uma história global ou total – integral, [pg. 046] perfeita como diziam os grandes historiadores do fim do século XVI –, a história, à medida que se constitui como corpo de disciplina científica e escolar, deve encarnar-se em categorias que, pragmaticamente, a fracionam. Estas categorias dependem da própria evolução histórica: a primeira parte do século XX viu nascer a história econômica e social, a segunda, a história das mentalidades. Alguns, como Perelman [1969, p. 13], privilegiam a história periodológica, outros, as categorias sistemáticas. Cada uma tem a sua utilidade, a sua necessidade. São instrumentos de trabalho e exposição. Não têm qualquer realidade objetiva, substancial. Por isso, a aspiração dos historiadores à totalidade histórica pode e deve adquirir formas diferentes que, também elas, evoluem com o tempo. O quadro pode ser constituído por uma realidade geográfica ou por um conceito: assim fez Fernand Braudel, primeiro, com o Mediterrâneo no tempo de Filipe II e, depois, com a civilização material e o capitalismo. Jacques Le Goff e Pierre Toubert [1975] procuraram, no quadro da história medieval, mostrar como o objetivo de uma história total parece hoje acessível, de modo pertinente, através de objetos globalizantes, construídos pelo historiador; por exemplo, o incastellamento, a pobreza, a marginalidade, a idéia de trabalho, etc. Não penso que o método das aproximações múltiplas – se não se alimentar de uma ideologia eclética superada – seja prejudicial ao trabalho do historiador. Ele é por vezes mais ou menos imposto pelo estado da documentação, dado que cada tipo de fonte exige um tratamento diferente, no interior de uma problemática de conjunto.
Ao estudar o nascimento do Purgatório dos séculos III e XIV no Ocidente, procurei em textos teológicos, em histórias de visões e em exempla, de uso litúrgico ou de práticas de devoção; e teria recorrido à iconografia, se o Purgatório não tivesse estado tanto tempo ausente dela. Analisei algumas vezes pensamentos individuais, outras mentalidades coletivas, ou ainda a mentalidade dos poderosos e das massas. Mas tive sempre presente que, sem determinismo nem fatalidade, com lentidões, perdas, desvios, a crença no Purgatório se tinha encamado no seio de um sistema e que este sistema só tinha sentido pelo seu funcionamento numa sociedade global [cf. Le Goff, 1981]. [pg. 047]
Um estudo monográfico, limitado no espaço e no tempo, pode ser um excelente trabalho histórico, se levantar um problema e se se prestar à comparação, se for conduzido como um case study. Só me parece condenada a monografia fechada em si mesma, sem horizontes, que foi a filha dileta do positivismo e não está completamente morta.
No que se refere à continuidade e à descontinuidade, já falei do conceito de revolução. Gostaria de acabar a primeira parte deste ensaio insistindo no fato de que o historiador deve respeitar o tempo que, de diversas formas, é a condição da história e que deve fazer corresponder os seus quadros de explicação cronológica à duração do vivido. Datar é e será sempre uma das tarefas fundamentais do historiador, mas deve fazer-se acompanhar de outra manipulação necessária da duração – a periodização – para que a datação se torne historicamente pensável.
Gordon Leff recordou com veemência: "A periodização é indispensável a qualquer forma de compreensão histórica" [1969, p. 130], acrescentando com pertinência: "A periodização, como a própria história, é um processo empírico, delineado pelo historiador" [ibid., p. 150]. Acrescentarei apenas que não há história imóvel e que a história também não é a pura mudança, mas sim o estado das mudanças significativas. A periodização é o principal instrumento de inteligibilidade das mudanças significativas.

2. A mentalidade histórica os homens e o passado

Anteriormente citei alguns exemplos do modo como os homens constroem e reconstroem o seu passado. É, em geral, o lugar que o passado ocupa nas sociedades, o que aqui me interessa. Adoto, neste ensaio, a expressão 'cultura histórica', usada por Bernard Guenée [1980]. Sob este termo, Guenée reúne a bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de obras históricas, o público e a audiência dos historiadores. Acrescento-lhes a relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, [pg. 048] mantém com o passado. A minha concepção não está muito afastada daquilo a que os anglo-saxônicos chamam historical mindedness. Conheço os riscos desta reflexão. Considerar como unidade uma realidade complexa e estruturada em classes ou, pelo menos, em categorias sociais distintas pelos seus interesses e cultura ou supor um "espírito do tempo" (Zeitgeist), isto é, um inconsciente coletivo; o que são abstrações perigosas. No entanto, os inquéritos e os questionários usados nas sociedades "desenvolvidas" de hoje mostram que é possível abordar os sentimentos da opinião pública de um país sobre o seu passado, assim como sobre outros fenômenos e problemas [cf. Lecuir, 1981].
Como estes inquéritos são impossíveis quanto ao passado, esforçar-me-ei por caracterizar – sem dissimular o aspecto arbitrário e simplificador deste procedimento – a atitude dominante de algumas sociedades históricas perante o seu passado e a sua história. Considerarei os historiadores como os principais intérpretes da opinião coletiva, procurando distinguir as suas idéias pessoais da mentalidade coletiva. Sei bem que ainda continuo a confundir passado com história na memória coletiva. Devo, pois, dar algumas explicações suplementares que tomam mais precisas as minhas idéias sobre a história.
A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica profissional mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica ou, melhor, a mentalidade história de uma época. Um estudo dos manuais escolares de história é um aspecto privilegiado, mas esses manuais praticamente só existem depois do século XIX. O estudo da literatura e da arte pode ser esclarecedor deste ponto. O lugar que Carlos Magno ocupa nas canções de gesta, o nascimento do romance no século XII e o fato de ter assumido a forma de romance histórico (argumento antigo: cf. o nº 238 da "Nouvelle Revue Française", Le roman historique, 1972), a importância das obras históricas no teatro de Shakespeare [Driver, 1960] são testemunhas do gosto de algumas sociedades históricas pelo seu passado. Integrado numa recente exposição de um grande pintor do século XV, Jean Fouquet, Nicole Reynaud mostrou [1981] como, a par do interesse pela história antiga, sinal do Renascimento [pg. 049] (miniaturas das Antiquités judaiques, da Histoire ancienne, de Tite-Live), Fouquet manifesta um gosto acentuado pela história moderna (Heures de Étienne Chevalier, Tapisserie de Tormisuy, Grandes Chroniques de France, etc.). Deveria acrescentar-se-lhe o estudo dos nomes próprios, dos guias de peregrinos e turistas, das inscrições, da literatura de divulgação, dos monumentos, etc. Marc Ferro [1977] mostrou como o cinema acrescentou à história uma nova fonte fundamental: o filme torna claro, aliás, que o cinema é "agente e fonte da história". Isto é verdadeiro para o conjunto dos media, o que bastaria para explicar que a relação dos homens com a história conhece, com os media modernos (imprensa de massas, cinema, rádio, televisão), um avanço considerável. É este alargamento da noção de história (no sentido de historiografia) que Santo Mazzarino defendeu no seu grande estudo Il pensiero storico classico [1966]. Mazzarino procura preferencialmente a mentalidade histórica – nos elementos étnicos, religiosos, irracionais, nos mitos, nas fantasias poéticas, nas histórias cosmogônicas, etc. Daí resulta mesmo uma nova concepção de historiador definida por Arnaldo Momigliano com rigor: "O historiador não é fundamentalmente para Mazzarino um profissional, investigador da verdade do passado, mas um vedor, "profético" intérprete do passado, condicionado pelas suas opiniões políticas, pela fé religiosa, características étnicas e, finalmente, mas não em exclusivo, pela situação social. Todas as evocações poéticas, míticas, utópicas, ou, de qualquer modo, fantásticas do passado entram na historiografia" [1967, ed. 1969, p. 61].
Ainda sobre este assunto devemos distinguir: o objeto da história da história é bem este sentido difuso do passado, que reconhece nas produções do imaginário uma das principais expressões da realidade histórica e nomeadamente da sua maneira de reagir perante o seu passado. Mas esta história indireta não é a história dos historiadores, a única que tem vocação científica.
O mesmo acontece com a memória. Tal como o passado não é a história mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica. A revista "Dialectiques" publicou recentemente (1980) um número especial consagrado às relações entre memória e história: Sousl'histoire, la mémoire. O [pg. 050] historiador inglês Ralph Samuel, um dos principais iniciadores das History Workshops, que irei referir adiante, faz considerações ambíguas sob um título não menos ambíguo: Déprofessionnaliser l'histoire [1980]. Se ele pretende que o recurso à história oral, às autobiografias, à história subjetiva amplie a base do trabalho científico, e venha a modificar a imagem do passado, dando a palavra aos esquecidos da história, tem inteiramente razão e sublinha um dos grandes progressos da produção histórica contemporânea. Se, pelo contrário, quer colocar no mesmo plano "produção autobiográfica" e "produção profissional", acrescentando que "a prática profissional não constitui nem um monopólio nem uma garantia" [ibid., p. 161, a afirmação parece-me perigosa. O certo (e voltarei a este aspecto) é que as fontes tradicionais do historiador nem sempre são mais "objetivas" – nem mais "históricas" – do que o que o historiador crê. A crítica das fontes tradicionais é insuficiente, mas o trabalho do historiador deve exercer-se em ambos os níveis. Uma ciência histórica autogerida não só seria um desastre como não faz sentido, pois a história, mesmo que só o consiga vagamente, é uma ciência e depende de um saber profissionalmente adquirido. É evidente que a história não atingiu o grau de tecnicismo das ciências da natureza ou da vida e não desejo que o atinja para que possa continuar a ser facilmente compreensível e até controlável pelo maior número de pessoas. A história já tem a sorte ou a infelicidade (única entre todas as ciências?) de poder ser feita convenientemente pelos amadores. De fato, ela tem necessidade de vulgarização – e os historiadores profissionais nem sempre se dignam aceder a esta função, no entanto essencial e digna, da qual se sentem incapazes; mas a era dos novos media multiplica a necessidade e as ocasiões para existirem mediadores semiprofissionais. Devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em ler – quando são bem feitos e escritos – os romances históricos e que reconheço aos seus autores a liberdade de fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se pedirem a minha opinião de historiador, não identifico com história as liberdades aí tomadas. E por que não, um setor literário da história-ficção na qual, respeitando os dados de base da história – costumes, instituições, mentalidades – fosse possível recriá-la, jogando com o acaso é com o événementiel? Teria então o duplo prazer da surpresa e [pg. 051] do respeito pelo que há de mais importante em história. Por isso me agradou o romance de Jean d'Onnesson La gloire de l'empire, que reescreve com talento e saber a história bizantina. Não uma intriga que desliza nos interstícios da história – como Ivanhoé, Os últimos dias de Pompéia, Quo vadis?, Os três mosqueteiros, etc. – mas a invenção de um novo curso dos acontecimentos políticos, a partir das estruturas fundamentais da sociedade. Este trabalho é muitas vezes bem-feito e útil. Mas deveríamos todos ser historiadores? Não reclamo poder para os historiadores fora do seu território, a saber, o trabalho histórico e o seu efeito na sociedade global – em especial, no ensino. O que deve acabar é o imperialismo histórico no desenvolvimento da ciência e no da política. No início do século XIX a história era quase nada. O historicismo, em diversos aspectos, quis fazer tudo. A história não deve reger as outras ciências e, menos ainda, a sociedade. Mas, tal como o físico, o matemático, o biólogo – e, de outro modo, os especialistas de ciências humanas e sociais –, o historiador também deve ser ouvido, ou seja, a história deve ser considerada como um ramo fundamental do saber.
Tal como as relações entre memória e história, também as relações entre passado e presente não devem levar à confusão e ao ceticismo. Sabemos agora que o passado depende parcial- mente do presente. Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só inevitável, como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e presente. Compete ao historiador fazer um estudo "objetivo" do passado sob a sua dupla forma. Comprometido na história, não atingirá certamente a verdadeira "objetividade", mas nenhuma outra história é possível. O historiador fará ainda progressos na compreensão da história, esforçando-se por pôr em causa, no seu processo de análise, tal como um observador científico tem em conta as modificações que eventualmente introduz no seu objeto de observação. Sabemos bem, por exemplo, que os progressos da democracia nos levam a procurar mais o lugar dos "pequenos" na história, a colocarmo-nos ao nível da vida cotidiana, e isso impõe-se segundo várias modalidades, a todos os historiadores. Sabemos também que a evolução do mundo nos leva a pôr a análise das sociedades em termos de poder [pg. 052] e esta problemática entrou assim na história. Sabemos também que a história se faz – em geral – da mesma maneira nos três grandes grupos de países que existem hoje no mundo: o mundo ocidental, o mundo comunista e o Terceiro Mundo. As relações entre a produção histórica destes três conjuntos dependem das relações de força e das estratégias políticas internacionais, mas também se desenvolve um diálogo entre especialistas, entre profissionais, numa perspectiva científica comum. Este quadro profissional não é puramente científico, ou melhor, exige um código moral, tal como a todos os cientistas e homens de ofício; exige aquilo a que Georges Duby chama uma ética [Duby e Lardreau, 1980, pp. 15-16], a que eu chamaria, mais "objetivamente", uma deontologia. Não insisto neste ponto, mas considero-o essencial; constato que, apesar de alguns desvios, esta deontologia existe e, bem ou mal, funciona.
A cultura (ou mentalidade) histórica não depende apenas das relações memória-história, presente-passado. A história é a ciência do tempo. Está estritamente ligada às diferentes concepções de tempo que existem numa sociedade e são um elemento essencial da aparelhagem mental dos seus historiadores. Voltarei à concepção de um contraste existente na Antiguidade, quer nas sociedades quer no próprio pensamento dos historiadores, entre uma concepção circular e uma concepção linear do tempo. Lembramos aos historiadores que a sua propensão para não considerar senão um tempo histórico "cronológico" deveria dar lugar a mais inquietação se tivessem em conta interrogações filosóficas sobre o tempo, das quais as Confissões de Santo Agostinho são representativas: "O que é o tempo? Se não me perguntarem,, sei; se me pedissem para o explicar, seria incapaz de o fazer" [Confissões, XI, 14-17; cf. Starr, 1966]. Elisabeth Eisenstein [1966], refletindo sobre o célebre livro de Marshall McLuhan The Gutenberg Galaxy [1962], insiste na dependência das concepções de tempo em relação aos meios técnicos de registro e à transmissão dos fatos históricos, vendo na imprensa um novo tempo, o dos livros, que assinalava uma ruptura de relações entre Clio e Cronos. Esta concepção está na transição do oral ao escrito. Historiadores e etnólogos chamaram a atenção para a importância da passagem do escrito ao oral. Jack Goody [1977] [pg. 053] também mostrou como as culturas dependem dos seus meios de tradução, estando o aparecimento da literacy ligado a uma mutação profunda de uma sociedade. Retificou algumas idéias sobre o "progresso" que marca a passagem do oral ao escrito. A escrita traria maior liberdade, enquanto que a oralidade conduziria a um saber mecânico, mnemônico intangível. Ora, o estudo da tradição num meio oral mostra que os especialistas dessa tradição podem inovar enquanto que a escritura pode, pelo contrário, apresentar um caráter "mágico" que a torna mais ou menos intocável. Não devemos pois opor uma história oral, que seria a da fidelidade e do imobilismo, a uma história escrita que seria a da maleabilidade e do perfectível. Num livro importante, Clanchy [1979], ao estudar a passagem da recordação memorizada ao documento escrito na Inglaterra medieval, pôs também em evidência que o essencial não é tanto o recurso ao escrito, como a mudança de natureza e de função do escrito, o deslizar do escrito de técnica sagrada para prática utilitária, a conversão de uma produção escrita elitista e memorizada numa produção escrita de massa, fenômeno que só se generalizou nos países ocidentais, no século XIX, mas cujas origens remontam aos séculos XII e XIII.
Sobre o par oral/escrito, fundamental para a história, gostaria de fazer duas observações.
É claro que a passagem do oral ao escrito é muito importante, quer para a memória, quer para a história. Mas não devemos esquecer que: 1) oralidade e escrita coexistem em geral nas sociedades e esta coexistência é muito importante para a história; 2) a história, se tem como etapa decisiva a escrita, não é anulada por ela, pois não há sociedades sem história.
Das "sociedades sem história", darei dois exemplos: por um lado, o de uma sociedade "histórica" que alguns consideram refratária ao tempo _e não suscetível de ser analisada e compreendida em termos históricos: a índia; por outro, o das sociedades ditas "pré-históricas" ou "primitivas".
A tese an-histórica sobre a índia foi brilhantemente defendida por Louis Dumont [19621, que recorda que Hegel e Marx deram à história da índia um destino à parte, colocando-a praticamente fora da história. Hegel, ao fazer das castas "hindus" o fundamento de uma "diferenciação inabalável"; Marx, ao considerar [pg. 054] que, em contraste com o desenvolvimento ocidental, a Índia conhece uma "estagnação", a estagnação de uma economia "natural" – por oposição à economia mercantil – à qual se sobrepunha um "despotismo" [1962, p. 49]. A análise de Louis Dumont leva-o a tirar conclusões próximas das de Marx, mas através de considerações diferentes e mais precisas. Depois de ter refutado a opinião dos marxistas vulgares que querem conduzir o caso da índia ao da imagem simplista de uma evolução milenária, ele mostra que o "desenvolvimento indiano, extraordinariamente precoce, pára cedo e não deixa manifestar-se o seu próprio quadro, a forma de integração não é a que, com razão ou sem ela, nós identificamos com a nossa história" [ibid., p. 64]. Louis Dumont vê a origem deste bloqueio em dois fenômenos do passado remoto da índia: a secularização precoce da função real e a afirmação – também ela prematura – do indivíduo. Por isso, "a esfera político-econômica, desligada dos valores pela secularização inicial da função real, manteve-se subordinada à religião" [ibid.]. Assim, a índia estagnou numa estrutura imóvel de castas em que o homem hierárquico [cf. Dumont, 1966] se diferencia radicalmente do homem das sociedades ocidentais, a que chamarei, por contraste, o homem histórico. Louis Dumont debruça-se finalmente sobre "a transformação contemporânea" da índia, fazendo notar que ela não pode ser esclarecida à luz dos conceitos ocidentais; destaca em especial o fato de a índia ter conseguido libertar-se do domínio estrangeiro "realizando o mínimo de modernização" [1962, p. 72]. Não tenho competência para discutir as idéias de Louis Dumont. Contento-me em assinalar que a sua tese não nega a existência de uma história indiana, embora lhe reivindique especificidade. Daí resulta, mais que a recusa, hoje banal, duma concepção milenária da história, o evidenciar de longas fases temporais sem evolução significativa, em certas sociedades e a resistência de certos tipos de sociedade à mudança.
Acontece o mesmo, penso, com as sociedades pré-históricas e "primitivas". Sobre as primeiras, um grande especialista como André Leroi-Gourhan sublinhou que as incertezas da sua história têm, acima de tudo, origem na insuficiência de investigações. "É evidente que se, de há meio século para cá, se tivesse [pg. 055] feito a análise exaustiva apenas de uns cinqüenta locais bem escolhidos, disporíamos hoje, para um certo número de etapas culturais da humanidade, de materiais de uma história substancial" [1974, I, p. 104]. Henri Moniot notava em 1974: "Havia a Europa e a ela se reduzia toda a história. Amontoadas e longínquas, algumas "grandes civilizações", cujos textos, ruínas, por vezes ligações de parentesco, trocas ou heranças da Antiguidade clássica, nossa mãe, ou a amplitude de massas humanas que opunham aos poderes e ao olhar europeus, eram admitidas nos confins do império de Clio. O resto, tribos sem história segundo o acordo unânime do homem da rua, dos manuais e da universidade". E acrescenta: "Tudo isso mudou. Desde há quinze anos que, por exemplo, a África negra entra em força no campo dos historiadores" [1974, p. 106]. Henri Moniot explica e define esta história africana que está por fazer. A descolonização permite- o, caso as novas relações de desigualdade entre antigos colonizadores e colonizados "não sejam aniquiladoras da história" e as antigas sociedades dominadas "se esforcem por tentarem tomar posse de si", o que "leva ao reconhecimento das heranças" [ibid., p. 75]. História que se beneficia de novos métodos das ciências humanas (história, etnologia, sociologia) que tem a vantagem de ser "uma ciência em campo', que utiliza todas as espécies de documentos e nomeadamente o documento oral.
Esforçar-me-ei por pôr à luz uma última oposição que se manifesta no campo da cultura histórica: a que existe entre mito e história. É útil distinguir aqui dois casos. Podemos estudar nas sociedades históricas o aparecimento de novas curiosidades históricas cujo início recorre muitas vezes ao mito. Assim, no Ocidente medieval, quando as linhagens nobres, as nações ou as comunidades urbanas se preocupam em adquirir uma história, é muitas vezes começando por antigos mitos que inauguram as genealogias dos heróis fundadores lendários: os Francos pretendem descender dos Troianos, a família Lusignan da fada Melusina, os monges de S. Dinis atribuem a fundação da sua abadia a Denis, o Areopagita (o ateniense convertido por S. Paulo). Nestes casos vê-se bem em que condições históricas nasceram estes mitos que passaram a fazer parte da história. [pg. 056]
O problema torna-se mais difícil quando se trata das origens das sociedades humanas ou das sociedades ditas "primitivas". A maior parte destas sociedades explicou a sua origem através de mitos e geralmente considerou-se que uma fase decisiva da evolução destas sociedades consistia em passar do mito à história.
Daniel Fabre [1978] mostrou bem como o mito, aparentemente "refratário à análise histórica", é recuperável pelo historiador, "pois que ele teve de se constituir num lugar qualquer, num período histórico preciso". Ou então, como Lévi-Strauss refere, o ritmo recupera e reestrutura as relíquias desusadas de "sistemas sociais antigos" ou então a longa vida cultural dos mitos permite, através da literatura, fazer deles uma "caça para o historiador", como, por exemplo, Vernant e Vidal-Naquet [1972] fizeram para os mitos helênicos, através do teatro trágico da Grécia antiga. Como Marcel Detienne disse: "À história événementielle do antiquário e do adeleiro que atravessam a mitologia com um gancho na mão, felizes por desencantarem aqui e ali um lampejo de arcaísmo ou a recordação fossilizada de algum acontecimento "real', a análise estrutural dos mitos, libertando algumas formas invariantes através de conteúdos diferentes, opõe uma história global que se inscreve na longa duração, mergulha por baixo das expressões conscientes e retém, sob a aparência movediça das coisas, as grandes correntes inertes que a atravessam em silêncio..." [1974, p. 74].
Assim, nas perspectivas da nova problemática histórica, o mito não só é objeto da história, mas prolonga em direção às origens, o tempo da história, enriquece os métodos do historiador e alimenta um novo nível da história, a história lenta.
Sublinharam-se, e com razão, as relações que existem entre a expressão do tempo nos sistemas lingüísticos e a concepção, para além do tempo, que tinham da história (ou têm) os povos que utilizam essas línguas. Um estudo exemplar de tal problema é o de Émile Benveniste intitulado Les relations de temps dans le verbe français [1959]. Um estudo minucioso da expressão gramatical do tempo, nos documentos utilizados pelo historiador e pela própria narração histórica, que traz contribuições preciosas à análise histórica. André Miquel [1977] forneceu um notável [pg. 057] exemplo deste aspecto no seu estudo sobre um conto das Mil e uma noites, onde reencontrou, como trama subjacente ao conto, a nostalgia do Islã árabe pelas origens.
Resta assinalar que a concepção do tempo é de grande importância para a história. O Cristianismo marcou uma viragem na história e na maneira de escrever história, porque combinou pelo menos três tempos: o tempo circular da liturgia, ligado às estações e recuperando o calendário pagão; o tempo cronológico linear, homogêneo e neutro, medido pelo relógio, e o tempo linear teleológico, o tempo escatológico. O iluminismo e o evolucionismo construíram a idéia de um progresso irreversível que teve a maior influência na ciência histórica do século XIX, principalmente no historicismo. Os trabalhos de sociólogos, filósofos, artistas e críticos literários tiveram, no século XX, um considerável impacto sobre novas concepções do tempo que a ciência histórica acolheu. Assim, a idéia da multiplicidade dos tempos sociais, elaborada por Maurice Halbwachs [1925; 1950], foi o ponto de partida da reflexão de Fernand Braudel [1958], concretizada num artigo fundamental sobre a "longa duração", que propõe ao historiador a distinção de três velocidades históricas, as do "tempo individual", do "tempo social" e do "tempo geográfico" – tempo rápido e agitado do événementiel e do político, tempo intermediário dos ciclos econômicos ritmando a evolução das sociedades, tempo muito lento, "quase imóvel", das estruturas. Ou, ainda, o sentido da duração expresso numa obra literária como a de Marcel Proust, que alguns filósofos e críticos propõem para a reflexão do historiador [Jauss, 1955; Kracauer, 1966]. Esta última orientação subentende uma das tendências atuais da história, a que se ocupa de uma história do vivido.
Como disse Georges Lefebvre [1945-46], "a história, como quase todo o nosso pensamento, foi criada pelos Gregos" (p. 36).
Mas, para nos limitarmos aos documentos escritos, os traços mais antigos da preocupação de deixar à posteridade testemunhos do passado encontram-se do início do IV milênio ao início do I milênio a.C. e referem-se, por um lado, ao Oriente Médio (Irã, Mesopotâmia, Ásia Menor) e, por outro, à China. No Oriente Médio, esta preocupação de acontecimentos datados [pg. 058] parece sobretudo ligada às estruturas políticas: à existência de um Estado e, mais especificamente, de um Estado monárquico. Inscrições que descrevem as campanhas militares e as vitórias dos soberanos, lista real suméria (cerca de 2000 a.C.), anais dos reis assírios, gestas dos reis do Irã antigo que se reencontram nas lendas reais da tradição medo-persa antiga [cf. Christensen, 1936], arquivos reais de Mari (século XIX a.C.), de Ugarit a Rãs Sarara, de Hattusa e Bogazkõy (século XV a XIII a.C.). Assim, os temas da glória real e do modelo real desempenharam muitas vezes um papel decisivo nas origens das histórias de diferentes povos e civilizações. Pierre Gilbert [1979] defendeu que, na Bíblia, a história aparece com a realeza, deixando aliás entrever, em torno das pessoas de Samuel, Saul e David uma corrente pró-monárquica e uma corrente antimonárquica [cf. Hölscher, 1942]. Quando os cristãos criaram uma história cristã, insistiram na imagem de um rei-modelo, o imperador Teodósio cujo topos se imporá na Idade Média, por exemplo, a Eduardo, o Confessor e a S. Luís [Chesnut, 1978, pp. 223-41].
De uma maneira geral, é às estruturas e à imagem do Estado que muitas vezes se ligará a idéia de história, à qual se oporá – positiva ou negativamente – a idéia de uma sociedade sem Estado e sem história. Não se encontrará uma manifestação desta ideologia da história ligada ao Estado no romance autobiográfico de Carlo Levi,Cristo se è fermato a Eboli? O intelectual antifascista piemontês, no seu exílio no Mezzogiorno, descobre um ódio a Roma em comum com o dos cidadãos abandonados pelo Estado e desliza para um estado de a-historicismo, de memória imóvel: "Fechado num quarto, e num mundo fechado – é-me grato recordar aquele outro mundo, encerrado na dor e nos costumes, negado à história e ao Estado, eternamente paciente; aquela minha terra sem conforto nem doçura, onde os camponeses vivem, na miséria e no afastamento, a sua civilização imóvel, o seu solo árido, em presença da morte". Das mentalidades históricas não-ocidentais falarei muito pouco e não gostaria de reduzi-las a estereótipos nem fazer pensar que, como a indiana (e, mesmo aí, como se viu, é discutível a idéia de uma civilização indiana "sem história"), elas se teriam encerrado numa tradição esclerosada, pouco acolhedora do espírito histórico. [pg. 059]
Consideremos o caso hebraico. É evidente que, por razões históricas, nenhum outro povo sentiu mais a história como destino, nem a viveu como um drama de identidade coletiva. No entanto, o sentido da história conheceu, no passado próximo dos Judeus, importantes vicissitudes e a recriação do Estado de Israel levou-os a reavaliarem a sua história [cf. Ferro, 1981]. Para nos limitarmos ao passado, vejamos a apreciação de Butterfield: "Nenhuma nação – nem sequer a Inglaterra com a Magna Carta – esteve alguma vez tão obcecada pela história, e não é estranho que os Antigos Judeus tenham revelado poderosos dotes narrativos e tenham sido os primeiros a produzir uma espécie de história nacional, os primeiros a fazer o esboço da história da humanidade desde a Criação. Atingiram uma grande qualidade na construção da pura narrativa, especialmente na de acontecimentos recentes, como no caso da morte de David e da sucessão ao seu trono. Depois do Exílio concentraram-se mais no Direito que na história e voltaram a atenção para a especulação sobre o futuro, em especial sobre o fim da ordem terrestre. Em certo sentido, perderam o contato com a terra. Mas só muito lentamente adquiriram o dom da narração histórica, como se vê pelo primeiro livro dos Macabeus antes da era cristã e os escritos de Flavio José do século I d.C." [1973, p. 4661. Sendo esta fuga para o Direito e para a Escatologia inegáveis, devemos no entanto introduzir-lhes ainda nuances. Vejamos o que diz R.R. Geis da imagem da história do Talmfsd: O terceiro século marca uma viragem no ensino da história. As suas causas são, por um lado, a melhoria da situação dos Judeus, graças à outorga do direito de cidadania romana em 212 e à pacificação que se lhe seguiu e, por outro, as influências cada vez mais fortes das escolas babilônicas que desviam a representação do fim da história do seu caráter terreno. No entanto, a crença bíblica num aquém continua reconhecível, como o mostra a imagem da história dos primeiros mestres, os tannãim. A renúncia à história não será definitiva. O que Rabbi Meir (130-60) diz, na sua interpretação de Roma, nunca foi abandonado: "Virá o dia em que a supremacia será restituída ao seu real possuidor (Koh. r. 1) para que o reino de Deus se cumpra neste mundo" [1955, p. 124].
Tal como a índia, o povo Judeu e, como veremos, o Islã, também a China parece ter tido uma espécie de sentido precoce [pg. 060] da história que se bloqueou rapidamente. Mas Jacques Gernet contestou que os fenômenos culturais que fizeram crer numa cultura histórica muito antiga possam ser considerados sem história. Desde a primeira metade do primeiro milênio antes da era cristã, que aparecem recolhas de documentos, classificados por ordem cronológica, tais como os Annali di Lou e o Chou King. A partir de Ssu-ma Ch'ien, a quem se chamou "o Heródoto chinês", desenvolvem-se histórias dinásticas segundo o mesmo esquema: são recolhas de atos solenes, reunidas por ordem cronológica: "A história chinesa é um mosaico de documentos" [Gemet, 1959, p. 32]. Temos, pois, a impressão que desde muito cedo os Chineses cumpriram dois gestos constitutivos do procedimento histórico: formar arquivos, datar documentos. Mas se examinarmos a natureza e a função destes textos e as atribuições daqueles que os produzem ou os guardam, aparece-nos uma imagem diferente. Na China, a história está estritamente ligada à escrita: "Só há história, no sentido chinês da palavra, daquilo que está escrito" [ibid.]. Mas estes escritos não têm função de memória, mas sim uma função ritual, sagrada, mágica. São meios de comunicação com as potências divinas. São anotados para que os deuses os observem e assim se tornem eficazes num eterno presente. O documento não é feito para servir de prova, mas para ser um objeto mágico, um talismã. Não é produzido para ser dedicado aos homens, mas aos deuses. A data tem apenas como finalidade indicar o caráter fasto ou nefasto do tempo em que foi produzido o documento: "Não assinala um momento, mas um aspecto do tempo". Os anais não são documentos históricos mas escritos rituais que, "ao contrário de implicarem a noção de um devir humano, assinalam correspondências válidas para sempre" [ibid.]. O Grande Escriba que as conserva não é um arquivista, mas um padre do tempo simbólico, que está também encarregado do calendário. Na época dos Han, o historiador da corte é um mágico, um astrólogo que estabelece com precisão o calendário.
Mas a utilização, pelos historiadores atuais, desses falsos arquivos não é apenas uma astúcia da história, para mostrar que o passado é uma criação constante da história. Os documentos chineses não só revelam um sentido e uma função diferentes da história, segundo as civilizações, como também a evolução da [pg. 061] historiografia chinesa sob os Sung, por exemplo, e a sua renovação na época de Ch'ien Lung – da qual nos dá testemunho a original obra de Chang Hsüeh-ch'eng – mostrando que a cultura histórica chinesa não foi imóvel [cf. Gardner, 1938; Hölscher, 1942].
O Islã deu origem em primeiro lugar a um tipo de história ligada à religião e mais especialmente à época do seu fundador, Maomé e ao Corão. A história árabe tem como berço Medina e como motivação a recolha das recordações sobre as origens, destinadas a tornarem-se "um depósito sagrado e intangível". Com a conquista, a história adquire um duplo caráter: o de uma história de fatos soltos, do tipo dos anais, e o de uma história universal, cujo melhor exemplo é a história de at-Tabari e de al-Mas'üdi, escrita em árabe e de inspiração xiita [Miquel, 1968, p. 155]. No entanto, na grande recolha de obras de velhas culturas (indiana, iraniana, grega) em Bagdá, no tempo dos Abássidas, os historiadores gregos foram esquecidos. Nos domínios dos Zeugit e dos Ayyubiti (Síria, Palestina, Egito), no século XII a história domina a produção literária, nomeadamente com a biografia. A história floresce também na corte da Mongólia, com os Mamelucos, sob o domínio turco. Falarei à parte de Ibn Khaldün, um gênio solitário (cf. p. 201). Se Ibn Khaldiin domina com o seu gênio os historiadores e geógrafos muçulmanos da Baixa Idade Média, a sua filosofia da história é fundamentalmente a dos seus contemporâneos, distinguindo-se pela nostalgia da unidade do Islã, a obsessão do declínio. No entanto, a história nunca ocupou no mundo muçulmano o lugar de eleição que conquistou na Europa e no Ocidente. Ela manteve-se "tão poderosamente centrada no fenômeno da revelação do Corão, na sua aventura ao longo dos séculos, e os inúmeros problemas que ela põe, que hoje parece só se abrir com dificuldades, senão com reticências, a um tipo de estudo e métodos históricos inspirados no Ocidente" [Miquel, 1967, p. 461]. Se, para os judeus, a história desempenhou o papel de fator essencial da identidade coletiva – papel desempenhado pela religião no Islã –, para os Árabes e os muçulmanos a história foi sobretudo "a nostalgia do passado", a arte e a ciência da lamentação [cf. Rosenthal, 1952 e os textos que apresenta]. Resta que, se o Islã teve um sentido [pg. 062] da história diferente do Ocidente, não conheceu os mesmos desenvolvimentos metodológicos em história e o caso de Ibn Khaldiin é especial [cf. Spuler, 1955].
O saber ocidental considera pois que a história nasceu com os Gregos. Está ligada a duas motivações principais. Uma, de ordem étnica, que consiste em distinguir os Gregos dos bárbaros. À concepção de história está ligada a idéia de civilização. Heródoto considera os Líbios, os Egípcios e principalmente os Citas e os Persas. Lança sobre eles um olhar de etnólogo. Por exemplo, os Citas são nômades – e o nomadismo é difícil de pensar. No centro desta geo-história há a noção de fronteira: e deste lado, civilização; do outro, barbárie. Os Citas que atravessaram a fronteira e quiseram helenizar-se – civilizar-se – foram mortos pelos seus, porque os dois mundos não se podem misturar. Os Citas não passam de um espelho em que os Gregos se vêem ao contrário (Hartog, 1980].
O outro estímulo da história grega é a política ligada às estruturas sociais. Finley nota que não há história na Grécia antes do século V a.C. Nem anais comparáveis aos dos reis da Assíria, nem interesse por parte dos poetas e filósofos, nem arquivos. É a época dos mitos, fora do tempo, transmitidos oralmente. No século V a memória nasce do interesse das famílias nobres (e reais) e de padres de templos como os de Delfos, Eleusis ou Delos.
Santo Mazzarino considera pelo seu lado que o pensamento histórico nasceu em Atenas no meio órfico, no seio de uma reação democrática contra a velha aristocracia e, nomeadamente, a família dos Alcmeónidas: "A historiografia nasce no interior de uma seita religiosa, em Atenas, e não entre os livres pensadores da Jônia" [Momigliano, 1967, ed. 1969, p. 63]. "O orfismo tinha... exaltado, através da figura de Filos, o ghénos por excelência contrário aos Alcmeónidas: o ghénos de onde nasceu Temístocles, o homem da armada ateniense... A revolução ateniense contra a parte conservadora da velha aristocracia terratenente teve certamente origem, já em 630 a.C., nas novas exigências do mundo comercial e marítimo que dominava a cidade... A "profecia do passado" era a principal arma desta política" [Mazzarino, 1966, I, pp. 32-33]. [pg. 063]
A história, arma política. Esta motivação absorve finalmente a cultura histórica grega, pois que a oposição aos bárbaros mais não é que uma maneira de exaltar a cidade; elogio que inspira aos Gregos a idéia de um certo progresso técnico: "O orfismo, que tinha dado o primeiro impulso ao pensamento histórico, tinha também "descoberto" a própria idéia de progresso técnico, do modo que os Gregos a conceberam. Dos Anões do Ida, descobridores da metalurgia ou "arte (téchne) de Efesto", tinha já falado a poesia épica de espírito mais ou menos órfico (Ia Foronide)" [ibid., p. 240].
Por isso, quando desapareceu a idéia de cidade, também desapareceu a consciência da historicidade. Os sofistas, mantendo a idéia de progresso técnico, rejeitam toda a noção de progresso moral, reduzem o devir histórico à violência individual, desfazem-no numa coleção de "anedotas escabrosas". É a afirmação de uma anti-história que já não considera o devir como uma história, uma sucessão inteligível de acontecimentos, mas antes como uma coleção de atos contingentes, obras de indivíduos ou grupos isolados [Châtelet, 1962, pp. 9-86].
A mentalidade histórica romana não foi muito diferente da grega, que aliás a formou. Políbio, o mestre grego que iniciou os romanos no pensamento da história, vê no imperalismo romano a dilatação do espírito da cidade e, perante os bárbaros, os historiadores romanos exaltarão a civilização encarnada por Roma que Salústio exalta perante Jugurta, o africano que aprendeu em Roma os meios de a combater, a mesma que Tito Lívio ilustra perante os selvagens de Itália e os Cartagineses, esses estrangeiros que tentaram reduzir os Romanos à escravatura, como os Persas o tinham tentado com os Gregos, que César encarna contra os Gauleses, que Tácito parece abandonar no seu despeito anti-imperial para admirar esses bons selvagens bretões e germanos, que ele vê com os traços dos antigos romanos virtuosos, anteriores à decadência. Com efeito, a mentalidade histórica romana é – como o será mais tarde a islâmica – dominada pela nostalgia dos costumes ancestrais, do mos maiorum. A identificação da história com a civilização greco-romana só é temperada por essa crença na decadência, da qual Políbio fez uma teoria baseada na semelhança entre as sociedades humanas e os indivíduos. [pg. 064] As instituições desenvolvem-se, declinam e morrem tal como os indivíduos, pois estão submetidas como eles às leis da natureza e a própria grandeza romana morrerá – teoria que Montesquieu relembrará. A lição da história, para os Antigos, resume-se a uma negação da história. O que ela lega de positivo são os exemplos dos antepassados, heróis e grandes homens. Devemos combater a decadência, reproduzindo a título individual os grandes feitos dos mestres, repetindo os eternos modelos do passado – a história, fonte de exempla, não está longe da retórica das técnicas de persuasão, que freqüentemente recorrem aos discursos. Ammiano Marcellino, no fim do século IV, assume, no seu estilo barroco e com o seu gosto pelo extravagante e pelo trágico, os traços essenciais da mentalidade histórica antiga. Este sírio idealiza o passado, evoca a história romana através de exempla literários e tem como único horizonte – embora tenha viajado pela maior parte do Império Romano, com exceção da Bretanha, da Espanha e da África do Norte, a oeste do Egito – a Roma eterna (Roma aeterna) [cf. Momigliano, 1974].
O Cristianismo foi visto como uma ruptura, uma revolução na mentalidade histórica. Dando à história três pontos fixos: a Criação, início absoluto da história, a Encarnação, início da história cristã e da história da salvação, o Juízo Final, fim da história; o Cristianismo teria substituído as concepções antigas de um tempo circular pela noção de um tempo linear e teria orientado a história, dando-lhe um sentido. Sensível às datas, procura datar a Criação, os principais pontos de referência do Antigo Testamento e, com a maior precisão possível, o nascimento e morte de Jesus – religião histórica, apoiada na história, o Cristianismo teria imprimido à história do Ocidente um impulso decisivo. Guy Lardreau e Georges Duby ainda recentemente insistiram na ligação entre o cristianismo e o desenvolvimento da história no Ocidente. Guy Lardreau lembra as palavras de Marc Bloch: "O Cristianismo é uma religião de historiadores"; e acrescenta: "Estou convencido, pura e simplesmente, que nós fazemos história porque somos cristãos". Ao que Georges Duby respondeu: "Tem razão: há uma maneira cristã de pensar que é a história. Não é a ciência histórica ocidental? O que é a história na China, nas índias, na África negra? O Islã teve admiráveis [pg. 065] geógrafos, mas historiadores?" [Duby e Lardreau, 1980, p. 138-39]. O Cristianismo favoreceu uma certa propensão para raciocinar em termos históricos, característica dos hábitos do pensamento ocidental, mas o estreitar de relações entre o cristianismo e a história parece-me dever ser esclarecido. Em primeiro lugar, estudos recentes mostraram que não devíamos reduzir a mentalidade antiga – e nomeadamente a grega – à idéia de um tempo circular [Momigliano, 1966b; Vidal-Naquet, 1960]. Pelo seu lado, o Cristianismo não pode ser reduzido à idéia de um tempo linear: um tipo de tempo circular, o tempo litúrgico, desempenha nele um papel de primeiro plano. A sua supremacia levou durante muito tempo o Cristianismo a datar apenas os dias e os meses sem mencionar o ano, de maneira a integrar os acontecimentos no calendário litúrgico. Por outro lado, o tempo teleológico e escatológico não conduz necessariamente a uma valorização da história. Podemos considerar que a salvação tanto se realizará fora da história, pela recusa da história, como através da história e pela história. As duas tendências existiram e existem ainda no Cristianismo (cf. o artigo "Escatologia" neste volume da Enciclopédia). Se o Ocidente prestou especial atenção à história, desenvolvendo especialmente a mentalidade histórica e atribuindo um lugar importante à ciência histórica, o fez em função da evolução social e política. Muito cedo, alguns grupos sociais e políticos e os ideólogos dos sistemas políticos tiveram interesse em se pensarem historicamente e em imporem quadros de pensamento históricos. Como se viu, este interesse apareceu primeiro no Oriente Médio e no Egito, nos Hebreus e depois nos Gregos. É apenas pelo fato de ser desde há muito a ideologia dominante do Ocidente que o Cristianismo lhe forneceu algumas formas de pensamento histórico. Quanto às outras civilizações, se elas parecem dar menos importância ao espírito histórico, isso deve-se ao fato de, por um lado, reservarmos o nome de história para concepções ocidentais e não reconhecermos como tais outras maneiras de pensar a história e, por outro lado, porque as condições sociais e políticas que favoreceram o desenvolvimento da história no Ocidente nem sempre se produziram em outros lados.
Para concluir, o Cristianismo trouxe importantes elementos à mentalidade histórica, mesmo fora da concepção agostiniana [pg. 066] da história (cf. infra, p. 200), que teve grande influência na Idade Média e mais tarde. Alguns historiadores cristãos orientais dos séculos IV e V tiveram assim grande influência sobre a mentalidade histórica não só no Oriente, mas também, indiretamente, no Ocidente. É o caso de Eusébio de Cesaréia, de Sócrates, o Escolástico, de Evágrio, de Sozomeno, de Teodoreto de Ciro. Acreditavam no livre-arbítrio (Eusébio e Sócrates eram mesmo seguidores de Orígenes) e pensavam que o destino cego, o fatum, não tinha uma função histórica, ao contrário do que pensavam os historiadores greco-romanos. Para eles, o mundo era governado pelo logos ou Razão divina, também chamada Providência, que constituía a estrutura de toda a natureza e de toda a história: "Podia-se pois analisar a história e considerar a lógica interna das suas cadeias de acontecimentos" [Chesnut, 1978, p. 244]. Alimentado pela cultura antiga, este humanismo histórico cristão tinha adotado a noção de Fortuna para explicar os "acidentes" da história. Reencontrava-se em história o caráter fortuito da vida humana e dava também origem à idéia da roda da fortuna, tão popular na Idade Média, que introduziu outro elemento circular na concepção de história. Estes cristãos mantiveram também duas idéias essenciais do pensamento histórico pagão, transformando-o profundamente: a idéia do imperador, mas segundo o modelo de Teodósio, o Jovem, foi a imagem de um imperador meio-guerreiro, meio-monge, e a idéia de Roma, mas rejeitando tanto a idéia do declínio de Roma, como a de uma Roma eterna. O tema de Roma tornou-se na Idade Média quer o conceito do Santo Império Romano ao mesmo tempo cristão e universal [cf. Falco, 1942], quer a utopia de uma Europa dos Últimos Dias, os sonhos chiliásticos de um imperador do fim dos tempos.
Ao pensamento histórico cristão o Ocidente deve ainda duas idéias que se desenvolveram na Idade Média: o quadro, pedido aos Judeus, de uma crônica universal [cf. Brincken, 1957; Krüger, 1976]; a idéia de tipos privilegiados de história: bíblica (cf. Historia scholastica de Pietro Mangiadore, c. 1170) e eclesiástica.
Evocarei agora alguns tipos de mentalidade e de prática históricas, ligados a certos interesses sociais e políticos, em vários períodos da história ocidental. [pg. 067]
Às duas grandes estruturas sociais e políticas da Idade Média, o feudalismo e as cidades, estão ligados dois fenômenos de mentalidade histórica: as genealogias e a historiografia urbana. Devemos acrescentar-lhes – na perspectiva de uma história nacional monárquica – as crônicas reais, das quais as mais importantes foram, desde o fim do século XII, as Grandes Chroniques de France, "em que os Franceses acreditaram como na Bíblia" [Guenée, 1980, p. 339].
O interesse que têm as grandes famílias de uma sociedade no estabelecimento de uma genealogia, quando as estruturas sociais e políticas dessa sociedade atingiram um certo estágio, é bem conhecido. Já os primeiros livros da Bíblia desenrolavam a litania das genealogias dos patriarcas. Nas sociedades ditas "primitivas", as genealogias são muitas vezes a primeira forma de história, o produto do momento em que a memória tem tendência a organizar-se em séries cronológicas. Georges Duby mostrou como no século XI – e sobretudo no século XII – os senhores, grandes e pequenos, tinham patrocinado no Ocidente, sobretudo na França, uma abundante literatura genealógica, "para enaltecer a reputação da sua linhagem, mais precisamente para apoiar a sua estratégia matrimonial e poder assim contrair alianças mais lisonjeiras" [ibid., p. 64; cf. também Duby, 1967]. Com maior força de razão, as dinastias reinantes mandaram estabelecer genealogias imaginárias ou manipuladas para consolidarem o seu prestígio e a sua autoridade. Assim, os Capetíngeos conseguiram, no século XII, ligar-se aos Carolíngeos [Guenée, 1978]. Deste modo, o interesse dos príncipes e dos nobres produz uma memória organizada em torno da descendência das grandes famílias [cf. Génicot, 1975]. O parentesco diacrônico torna-se um princípio de organização da história. Caso particular: o do papado que, quando a monarquia pontifícia se afirma, sente necessidade de ter uma história própria, que não pode, evidentemente, ser dinástica, mas que pretende distinguir-se da história da Igreja [Paravicini-Bagliani, 1976].
Por outro lado, as cidades, quando se constituíram como organismos políticos conscientes da sua força e do seu prestígio, também quiseram exaltar esse prestígio, valorizando a sua antiguidade, a glória das suas origens e dos seus fundadores, a gesta dos seus antigos filhos, os momentos excepcionais em que eles [pg. 068] foram favorecidos com a proteção de Deus, da Virgem ou do seu santo padroeiro. Algumas destas histórias adquiriram um caráter oficial, autêntico. Assim, a 3 de abril de 1262 a crônica do notário Rolandino é lida publicamente no claustro de Santo Urbano de Pádua perante mestres e estudantes da Universidade, que conferem a esta crônica o caráter de história verdadeira da cidade e da comunidade urbana [Arnaldi, 1963, pp. 85-107]. Florença ilustra a sua fundação atribuindo-a a Júlio César [Rubinstein, 1942; Del Monte, 1950]. Gênova possuía uma história própria autêntica, desde o século XII [Balbi, 1974]. É natural que a Lombardia, região de importantes cidades, tenha conhecido uma poderosa historiografia urbana [Martini, 1970] e que Veneza, como nenhuma outra cidade, tenha dado origem, na Idade Média, a um maior interesse pela sua própria história. A auto-historiografia veneziana medieval conheceu, no entanto, muitas vicissitudes reveladoras. Em primeiro lugar, mais que a unidade e a segurança finalmente conquistadas, há um contraste flagrante entre a historiografia antiga que reflete as divisões e as lutas internas da cidade: "A historiografia... refletirá uma realidade em movimento, as lutas e as conquistas parciais que a assinalam, uma ou mais forças que nela agem; e não a serenidade satisfatória de quem contempla um processo concluído" [Cracco, 1970, pp. 45-46]. Por outro lado, os anais do doge Andrea Dandolo, no meio do século XIV, adquiriram tal reputação que obliteraram a historiografia veneziana anterior [Fasoli, 1970, pp. 11-12]. É o início da "pubblica storiografia" ou "storiografia comandata", que culmina, no início do século XVI, com os Diários de Marin Sanudo, o Jovem.
O Renascimento é a grande época da mentalidade histórica. É assinalado pela idéia de uma história nova, global, a história perfeita, e por progressos importantes de métodos e de crítica histórica. Das suas relações ambíguas com a Antiguidade (ao mesmo tempo modelo paralisante e pretexto inspirador), a história humanista e renascentista assume uma atitude dupla e contraditória perante a história. Por um lado, o sentido das diferenças e do passado, da relatividade das civilizações, mas também da procura do homem, de um humanismo e de uma ética em que a história, paradoxalmente, se torna magistra vitae, negando-se a si própria, fornecendo exemplos e lições atemporalmente válidos [pg. 069] [cf. Landfester, 1972]. Ninguém melhor que Montaigne [1580-92] manifestou este aspecto ambíguo da história: "Os historiadores são os que mais me agradam, são agradáveis e naturais;... o homem em geral, que eu procuro conhecer através deles, parece mais vivo e mais inteiro que em qualquer outro lugar, a diversidade e verdade das suas condições internas em todas as circunstâncias, a variedade dos seus modos de ligação e dos acidentes que o ameaçam" (pp. 117-19). Nestas condições, não é de admirar que Montaigne declare que, em história, "o seu homem" seja Plutarco, mais considerado hoje um moralista que um historiador.
Por outro lado, a história alia-se, neste período, com o Direito e esta tendência culmina com a obra do protestante François Baudoin, aluno do grande jurista Dumoulin, De institutione historiae universae et eius cum jurisprudentia conjunctione (1561). Esta aliança tem por fim unir o real e o ideal, o costume e a moralidade. Baudoin juntar-se-á aos teóricos que sonham com uma história "integral", mas a visão da história continua "utilitária" [Kelley, 1970].
Gostaria de evocar aqui as repercussões, no século XVI e no início do século XVII, de um dos mais importantes fenômenos desta época: a descoberta e a colonização do Novo Mundo. Mencionarei dois exemplos: um relativo aos colonizados, outro aos colonizadores. Num livro pioneiro, La vision des vaincus, Nathan Wachtel estudou [1971] as reações da memória índia à conquista espanhola do Peru. Wachtel lembra primeiro que a conquista não afeta uma sociedade sem história, pois "não se pode imaginar um gênio maligno em história: todos os acontecimentos se produzem num campo já constituído, feito de instituições, costumes, práticas, significações e traços múltiplos que ao mesmo tempo resistem e apóiam a ação humana" [1971, p. 300]. O resultado da conquista parece ser, para os índios, a perda da sua identidade. A morte dos deuses e do Inca, a destruição dos ídolos constituem para os índios um "traumatismo coletivo" – noção muito importante em história, pelo que lembro aqui ela deve alinhar-se entre as formas principais de descontinuidade histórica: os grandes acontecimentos – revoluções, conquistas, derrotas – são sentidos como "traumatismos coletivos". Os vencidos [pg. 070] reagem a esta desestruturação, inventando uma "práxis reestruturante" cuja principal expressão é, neste caso, "a Dança da Conquista": é "uma reestruturação dançada, em termos imaginários, pois as outras formas de práxis falharam" [ibid., pp. 305-6]. Nathan Wachtel faz aqui uma reflexão importante sobre a racionalidade em história: "Quando falamos de uma lógica ou de uma racionalidade da história, estes termos não implicam que pretendamos definir leis matemáticas, necessárias e válidas para todas as sociedades, como se a história obedecesse a um determinismo natural; mas a combinação dos fatores que formam o non-événementiel do acontecimento designa uma paisagem original e distinta, que sustenta um conjunto de mecanismos e de regularidades, isto é, uma coerência muitas vezes subconsciente nos contemporâneos, cuja reconstituição se torna indispensável para a compreensão do acontecimento" [ibid., p. 307]. Esta concepção permite a Wachtel definir a consciência histórica dos vencedores e dos vencidos: "A história só aos vencedores parece racional; os vencidos vivem-na como irracionalidade e alienação" [ibid., p. 309]. Entretanto, uma última astúcia da história aparece – os vencidos, em lugar de uma verdadeira história, formam uma "tradição como meio de recusa". Uma história lenta dos vencidos é também uma forma de oposição, de resistência à história rápida dos vencedores. E paradoxalmente, "na medida em que os estilhaços da antiga civilização Inca atravessaram os séculos até os nossos dias, podemos dizer que mesmo este tipo de revolta, esta práxis impossível triunfou de certo modo" [ibid., p. 314]. Dupla lição para o historiador: por um lado, a tradição é com certeza história e, mesmo que transporte os despojos de um passado longínquo, ela é uma construção histórica relativamente recente, uma reação a um traumatismo político ou cultural e, na maior parte dos casos, aos dois simultaneamente; por outro lado, esta história lenta que encontramos na cultura "popular" é, com efeito, uma espécie de anti-história, na medida em que se opõe à história ostentatória e animada dos dominadores.
Bernardette Bucher, através do estudo da iconografia da coleção As Grandes Viagens, publicada e ilustrada pela família De Bry, entre 1590 e 1634, definiu as relações que os Ocidentais [pg. 071] estabeleceram entre a história e o simbolismo ritual, segundo o qual representaram e interpretaram a sociedade índia, que tinham descoberto. Transpuseram as suas idéias de europeus e de protestantes às estruturas simbólicas das imagens dos índios. É assim que as diferenças culturais entre índios e Europeus – nomeadamente nos hábitos culinários – aparecem, num dado momento, aos De Bry "como o sinal de que os índios tinham sido enjeitados por Deus" [Bucher, 1977, pp. 227-28]. Conclui-se que as estruturas simbólicas são obra de uma combinatória em que a adaptação ao meio, aos acontecimentos e a iniciativa humana entram constantemente em jogo por meio de uma dialética entre estrutura e acontecimento [ibid., pp. 229-30]. Deste modo, os Europeus do Renascimento reencontram o processo seguido por Heródoto e estendem aos índios um espelho, no qual se olham a si próprios. Por isso, os encontros de culturas fazem nascer respostas historiograficamente diversas do mesmo acontecimento.
Resta dizer que – apesar de uma história nova, independente e erudita – a história do Renascimento está estritamente dependente dos interesses sociais e políticos dominantes, neste caso do Estado. Dos séculos XII ao XIV, o protagonista da produção historiográfica tinha sido, no meio senhorial e monárquico, o protegido dos grandes (um Gudofredo de Monmouth ou um Guilherme de Malmesbury dedicam a sua obra a Roberto de Gloucester, os monges de Saint-Denis trabalham para a glória do Rei da França, protetor da sua abadia, Froissart escreve para Filipa de Hainaut, rainha da Inglaterra, etc.), enquanto que, no meio urbano, aparece o notário cronista [Arnaldi, 1966].
Para além disso, no meio urbano, o historiador é um membro da alta burguesia no poder, como Leonardo Bruni, chanceler de Florença, de 1427 a 1444, ou são altos funcionários do Estado, dos quais, os dois mais célebres exemplos foram, em Florença, Maquiavel, da chancelaria florentina (embora tenha escrito as suas maiores obras depois de 1512, data em que foi expulso da chancelaria, quando do regresso dos Médicis) e Guicciardini, embaixador da república florentina e depois servidor, sucessivamente, do papa Leão X e de Alexandre, Duque da Toscana. [pg. 072]
É na França que podemos seguir melhor a tentativa de domesticação da história pela monarquia, nomeadamente no século XVII em que os defensores da ortodoxia católica e os partidários do absolutismo real condenaram como "libertia" (libertina) a crítica histórica dos historiadores do século XVI e do reinado de Henrique IV [Hupert, 1970]. Esta tentativa manifestou-se no ataque feito a historiógrafos oficiais desde o século XVI à Revolução.
Embora a palavra tivesse sido usada pela primeira vez por Alain Chartie na corte de Carlos, tratava-se, então, "mais de uma distinção do que de um cargo preciso". O primeiro historiógrafo real é Pierre de Pascal em 1554. Daí em diante, o historiógrafo é um apologista. Ocupa apenas um lugar modesto, apesar de Charles Sorel ter tentado definir, em 1546, no Avertissement à l'Histoire du roy Louis XIII de Charles Bernard, o cargo de historiógrafo da França, de forma a atribuir-lhe importância e prestígio. Põe em destaque a sua utilidade e a sua função: provar os direitos do rei e do reino, louvar as boas ações, dar exemplos à posteridade; tudo isso para glória do rei e do reino. No entanto, o cargo manteve-se relativamente obscuro e a tentativa de Boileau e de Racine, em 1677, falhará. Os filósofos criticaram fortemente a instituição, e o programa de reformas da função, exposto por Jacob-Nicolas Moreau numa carta de 22 de agosto de 1774 ao primeiro presidente do Tribunal de Contas da Provença, J.-B. Albertas, chegará tarde demais. A Revolução suprime o cargo de historiógrafo [Fossier, 1977].
O espírito das Luzes, um pouco como o do Renascimento, terá uma atitude ambígua perante a história. É certo que a história filosófica – sobretudo com Voltaire (principalmente no Essai sur les moeurs et l'esprit des nations, concebido em 1740 e cuja edição definitiva é de 1769) – traz para o desenvolvimento da história "um considerável aumento da curiosidade e principalmente o progresso do espírito critico" [Ehrard e Palmade, 1964, p. 37]. Mas o "racionalismo dos filósofos trava o desenvolvimento do sentido histórico. É melhor racionalizar o irracional ou cobri-lo de sarcasmos à maneira de Voltaire? Em ambos os casos a história é passada pelo crivo de uma razão atemporal" [ibid., p. 36]. A história é uma arma contra o "fanatismo" e as [pg. 073] épocas em que este reinou, como a Idade Média, não merecem mais que o desprezo e o esquecimento: "Só devemos conhecer a história desse tempo, para a desprezar" [Voltaire, 1756, cap. XCIV]. Na véspera da Revolução Francesa, a Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans lês deux Indes (1770) do abade Raynal teve grande sucesso: "Para Raynal, como para todo o partido "filosófico", a história é o campo fechado onde razão e preconceitos se defrontam" [Ehrard e Palmade, 1964, p. 36].
Paradoxalmente, a Revolução Francesa, no seu tempo, não estimulou a reflexão histórica. Georges Lefebvre [1945-46, pp. 154-561 apontou várias razões para esta indiferença: os revolucionários não se interessam pela história, fazem-na; gostavam de destruir um passado detestado e não pensavam em lhe dedicar o seu tempo, melhor empregado em tarefas criativas. Tal como a juventude tinha sido atraída pelo presente e o futuro, "o público que no Antigo Regime se tinha interessado pela história, tinha-se dispersado ou desaparecido ou estava economicamente arruinado" [ibid., p. 151].
No entanto, Jean Ehrard e Guy Palmade lembraram com razão a obra da Revolução em favor da história, no campo das instituições, do equipamento documental e do ensino. Voltarei a este ponto. Napoleão, apesar de ter tentado pôr a história ao seu serviço, continuou e desenvolveu, neste aspecto, como em muitos outros, a obra da Revolução. Esta obra consistiu, no campo da mentalidade histórica, em ter constituído uma ruptura e dado a muitos, na França e na Europa, o sentimento que não só tinha marcado o início de uma nova era, mas também que a história tinha começado com ela, pelo menos a história da França: "Só temos, para falar com propriedade, uma história da França, depois da Revolução" escreve o jornal "La Décade philosophique", no Germinal, ano X. E Michelet diz: "Saibam que, perante a Europa, a França só terá um nome inexpiável, o seu verdadeiro e eterno nome: a Revolução" [citado em Ehrard e Palmade, 1964, p. 62]. Assim se estabelece, positivo para uns e negativo para outros (contra-revolucionários e reacionários: veja-se o artigo "Progresso/reação", neste volume da Enciclopédia), um grande traumatismo histórico: o mito da Revolução Francesa. [pg. 074]
Evocarei mais adiante o clima ideológico e a atmosfera da sensibilidade romântica em que nasceu e se desenvolveu a hipertrofia do sentido histórico em que foi o historicismo. Apenas mencionarei aqui duas correntes, duas idéias que contribuem em primeiro plano para á promoção da paixão pela história, no século XIX: a inspiração burguesa a que estão então ligadas as noções de classe e democracia e o sentimento nacional. O grande historiador da burguesia foi Guizot. No movimento comunal do século XII, Guizot vê já anunciados a vitória dos burgueses e o nascimento da burguesia: "A formação da grande classe social, a burguesia, era a conseqüência necessária da libertação local dos burgueses" [1829]. Daqui resulta a luta de classes, motor da história: "A terceira grande conseqüência da libertação das Comunas foi a luta de classes, luta essa que ocupou toda a história moderna". A Europa moderna nasce da luta entre as várias classes da sociedade" [ibid., p. 212]. Guizot e Thierry (principalmente Thierry no Essai sur l'histoire de la formation et des progrès dá Tiers État, 1850) tiveram um leitor atento, Karl Marx [1852]: "Muito tempo antes de mim, os historiógrafos burgueses tinham já descrito o desenvolvimento histórico desta luta de classes e os economistas burgueses, a sua anatomia econômica". A democracia que surgiu das vitórias burguesas foi observada com argúcia por Tocqueville: "Tenho pelas instituições democráticas uma predileção racional, mas sou aristocrata por instinto, isto é, desprezo e temo a multidão. Amo apaixonadamente a liberdade, a legalidade, o respeito pelos direitos, mas não a democracia" [citado em Ehrard e Palmade, 1964, p. 61]. Tocqueville estuda a evolução da democracia na França do Ancien Régime, durante o qual ela se prepara para desembocar na Revolução (que deste modo deixa de ser um cataclismo, uma novidade lancinante, para se tornar na conclusão de uma longa história) e na América do princípio do século XIX, em que há um misto de avanço e de recuo. Há, no entanto, em Tocqueville fórmulas que ultrapassam as de Guizot: "Acima de tudo pertencemos à sua classe, antes de sermos da sua opinião"; ou então "Podem contrapor-me indivíduos, mas é de classes que falo e só elas devem ocupar a história" [citado ibid.].
A outra corrente é a do sentimento nacional que deflagra na Europa do século XIX e contribui intensamente para difundir [pg. 075] o sentido histórico. Michelet exclama: "Franceses de todas as condições sociais, classes e partidos, notai bem que só tendes um amigo seguro nesta terra – e esse amigo é a França" [citado ibid., p. 62]. Chabod lembra que a idéia de nação vem desde a Idade Média, mas a religião da pátria é uma novidade que data da Revolução Francesa: "A nação transforma-se na pátria e a pátria, na nova divindidade do mundo moderno. Nova divindade: como tal, sagrada. Esta é a grande novidade que surge na época da Revolução Francesa e do Império. Rouget de Lisle o diz em primeiro lugar na penúltima estrofe da Marselhesa: "Amour sacré de la patrie / conduis, soutiens nos bras vengeurs" e repete-o quinze anos mais tarde no final de Sepulcros:"Onde sagrado e chorado corre o sangue pela pátria derramado" [1943-47, pp. 61-62]. Acrescenta que este sentimento esteve sempre vivo nas nações e nos povos que ainda não tinham podido concretizar a sua unidade nacional: "A idéia de nação, como é natural, é especialmente querida dos povos que ainda não estão politicamente unidos. Por isso, a idéia nacional encontra, muito especialmente na Itália e na Alemanha, defensores entusiastas e persistentes, tal como noutros povos dispersos e divididos, in primis os polacos" [ibid., p. 55]. De fato, a França não foi menos tocada por esta influência do nacionalismo na história. O sentimento nacional inspirou uma grande obra clássica, a Histoire de France, publicada sob a direção de Ernest Lavisse entre 1900 e 1912, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. O programa que Ernest Lavisse propõe para o ensino da história é o seguinte: "Cabe ao ensino da história o glorioso dever de fazer amar e compreender a pátria... os nossos antepassados gauleses e as florestas com druidas, Carlos Martel em Poitiers, Rolando em Roncesvaux, Godofredo de Bulhão em Jerusalém, Joana d'Arc, todos os nossos heróis do passado, reais ou lendários... Se o estudante não levar consigo uma recordação viva das nossas glórias nacionais, se não souber que os nossos antepassados combateram em mil campos de batalha, por mil causas, se não aprender o que custou, em sangue e esforços, construir a unidade da nossa pátria e libertar do caos das nossas envelhecidas instituições as leis sagradas que nos tornaram livres, se não vier a ser um cidadão compenetrado dos seus deveres e um soldado que ama a sua bandeira, então o professor perdeu [pg. 076] o deu o seu tempo" [citado em Nora, 1962, p. 102-3]. Não evidenciei ainda a inexistência, no fim do século XIX, de um elemento essencial à formação da mentalidade histórica. A história não é objeto de ensino. Aristóteles tinha retirado-a do mundo das ciências. As Universidades medievais não a integraram entre as disciplinas lecionadas [cf. Grundmann, 1965]. Jesuítas e Oratorianos deram-lhe algum espaço nos seus colégios [cf. Dainville, 1954]. Mas foi a Revolução Francesa que o impulsionou e foram os progressos do ensino escolar – primário, secundário e superior – que asseguraram às massas, no século XIX, a difusão de uma cultura histórica. Daqui em diante, os melhores postos de observação para o estudo da mentalidade histórica são os compêndios escolares (cf. infra).

3. As filosofias da história

Partilho com a maioria dos historiadores de uma desconfiança, nascida do sentimento da nocividade de misturar os gêneros e dos malefícios de todas as ideologias que façam recuar a reflexão histórica, no difícil caminho da cientificidade. Direi de bom grado com Foustel de Coulanges: "Há filosofia e há história, mas não há filosofia da história" [citado em por Ehrard e Palmade, 1964, p. 72]; e com Lucien Febvre: "Filosofar significa... dito por um historiador... o crime capital". Mas, também com ele, direi: "Dois espíritos, é certo: a filosofia e a história. Dois espíritos irredutíveis. Mas não se pretende "reduzir" um ao outro. Pretende-se sim, agir de tal modo que, mantendo-se embora nas suas posições, não se ignorem a ponto de serem, senão hostis, pelo menos estranhos" [1938, ed. 1953, p. 282].
Acrescentarei que na medida em que a ambigüidade – provocada pelo vocabulário – entre história decorrer do tempo dos homens e das sociedades e história ciência deste decorrer continua a ser fundamental, na medida em que a filosofia da história correspondeu muitas vezes à vontade de preencher – provavelmente em termos inadequados – o lamentável desinteresse dos historiadores "positivistas" (que se consideravam a si próprios [pg. 077] puros eruditos) pelos problemas teóricos e a sua recusa em tomar consciência dos preconceitos "filosóficos" subjacentes ao seu trabalho, que se pretendia puramente científico, "os historiadores que se recusam a avaliar não conseguem abster-se de fazer juízos. Apenas conseguem esconder a si mesmos os princípios que os fundamentam" [Keith Hancockeité, citado em Barraclough, 1955, p. 157]. O estudo das filosofias da história não só faz parte de uma reflexão sobre a história, como impõe a todos o estudo de historiografia. Não tentarei porém ser exaustivo e colocar-me-ei resolutamente na descontinuidade das doutrinas, pois que o que aqui me interessa são os modelos intelectuais e não a evolução do pensamento, mesmo tendo em conta que a inserção dos exemplos escolhidos no seu contexto requer a minha atenção. Escolherei exemplos de pensamentos individuais (Tucídides, Agostinho, Bossuet, Vico, Hegel, Marx, Croce, Gramsci), de escolas (agostinismo, materialismo histórico) e de correntes (historicismo, marxismo, positivismo). Distinguirei dois casos de teóricos que foram, ao mesmo tempo, historiadores e filósofos da história que, sem terem atingido um alto nível em nenhuma destas disciplinas, suscitaram reações significativas no século XX: Spengler e Toynbee. Falarei à parte de um grande espírito não-ocidental, Ibn Khaldün, e de um grande intelectual contemporâneo que é ao mesmo tempo um grande historiador e um grande filósofo e que desempenhou um papel de primeiro plano na renovação da história: Michel Foucault. Carr parece ter razão, em linhas gerais, ao escrever [1961]: "As civilizações clássicas (da Grécia e de Roma) eram fundamentalmente an-históricas... Heródoto, o pai da história, não teve muitos filhos; os escritores da Antiguidade clássica, no seu conjunto, preocupavam-se tão pouco com o futuro, como com o passado. Tucídides pensava que nada de significativo se tinha passado antes do acontecimento que estava a descrever e que seria pouco provável que viesse a acontecer depois" (p. 103-5). Talvez se devesse aprofundar mais o panorama da história grega (a arqueologia) e os principais acontecimentos posteriores às guerras medas (a pentecontaitria) que precedem a História da Guerra do Peloponeso.
Tucídides tinha escrito uma história da guerra do Peloponeso desde o início, em 431 até o fim, em 411. "Pretende ser [pg. 078] positivista" [Romilly, 1973, p. 82], expondo "os fatos por ordem e sem comentários". A sua filosofia está, pois, implícita. "A guerra do Peloponeso é estilizada e, por assim dizer, idealizada [Aron, 1961a, p. 164]. O grande motor da história é a natureza humana. Romilly pôs bem em destaque as frases em que Tucídides indica que a sua obra será "uma aquisição para todo o sempre", válida "enquanto a natureza humana for a mesma" e esclarece não só os acontecimentos gregos do século V, mas também "os que, no futuro, devido ao seu caráter humano, forem semelhantes ou análogos" [1973, p. 82]. A história seria assim imóvel, eterna ou, melhor, com possibilidade de ser o recomeço eterno do mesmo modelo de mudança. Este modelo de mudança é a guerra: "Depois de Tucídides não restam dúvidas que a guerra representa o fator mais evidente de mudança" [Momigliano, 1972, ed. 1975, p. 18]. A guerra é "uma categoria da história" [Châtelet, 1962, pp. 216 ss.]. É provocada por reações de medo e de inveja dos outros gregos perante o imperialismo ateniense. Os acontecimentos são produto de uma racionalidade que o historiador deve tornar inteligível: "Tucídides, ao alargar progressivamente a inteligibilidade da ação consciente de um ator ao acontecimento que não foi desejado por ninguém, eleva o acontecimento, quer tenha sido ou não conforme as intenções dos atores, acima da particularidade histórica, esclarecendo-a com a utilização de termos abstratos, sociológicos ou psicológicos" [ibid.]. Tucídides, tal como quase todos os historiadores da Antiguidade, considera a escrita histórica estritamente ligada à retórica. Dá importância primordial ao discurso (oração fúnebre dos soldados atenienses feita por Péricles, diálogo dos atenienses com os Mélios) e o papel que atribui – com um pessimismo de fundo – à moral individual e à política fez dele um precursor de Maquiavel, um dos principais expoentes máximos da filosofia ocidental da história. Ranke dedica-lhe o seu primeiro trabalho histórico – a "tese".
Mesmo que se exagere o contraste entre uma história pagã que rodava em torno de uma concepção circular da história e uma história cristã que se orientava para um fim, seguindo um curso linear do tempo, a tendência dominante do pensamento judaico-cristão operou uma mudança radical no pensamento – e na escrita – da história. "Os Judeus e depois os Cristãos introduziram [pg. 079] um elemento totalmente novo ao postularem um fim para o qual tenderia o processo histórico: nascia assim uma concepção teleológica da história. A história passava a ter um significado e um projeto, mas perdia o seu caráter secular: a história transformou-se numa teodicéia" [Carr, 1961, p. 104]. Mais que os historiadores cristãos antigos, quase sem o querer, o grande teórico da história cristã foi Santo Agostinho, levado a ocupar-se da história pelas tarefas do seu apostolado e pelos acontecimentos. Foi levado a refutar o filósofo neo-platônico Porfírio, "o mais ilustre filósofo pagão", o mais erudito do seu tempo, por ter afirmado que "a via universal da salvação" tal como era reivindicada pelos cristãos "não era confirmada pelo conhecimento histórico" [Brown, 1967, p. 347]. Quis em seguida refutar as acusações feitas (após o saque de Rama por Alarico e os Godos, em 410) pelos pagãos aos cristãos que, segundo eles, tinham minado as tradições e a força do mundo Romano, encarnação da civilização. Agostinho refutou a idéia de que o ideal da humanidade consistia na oposição à mudança. A salvação dos homens não dependia da perenidade de Roma. Havia dois esquemas históricos que operavam na história humana, cujos protótipos eram Caim e Abel. O primeiro estava na base de uma história humana, de uma cidade do mal – Babilônia – que servia o Diabo e os seus sequazes; o segundo, na origem "da antiga De civitate Dei... anseia atingir o céu – o seu nome é Jerusalém ou Sião". Na história humana as duas cidades estão intimamente ligadas e nelas os homens são estrangeiros, "peregrinos" [ibid., cap. XXVII], até o fim dos tempos quando Deus separar as duas cidades. A história humana começou por ser uma cadeia sem significado, "esse tempo ao longo do qual os que morrem dão lugar aos que nascem e lhes sucedem" [Agostinho, De civitate Dei, XV, I, 1], até que a Encarnação lhe venha dar sentido: "Os séculos passados de história seriam como jarras vazias, se Cristo os não tivesse vindo preencher" [In Joannis Evangelium Tractatus, IX, 6]. A história da cidade terrena assemelha-se à evolução de um organismo único, de um corpo individual. Passa pelas seis idades da vida e entra na velhice com ~ Encarnação, o mundo envelhece (mundus senescit) mas a humanidade encontrou o sentido do imenso concerto que a transporta até se revelar "o esplendor do ciclo completo do tempo"; a "diligência histórica" [pg. 080] mostra sempre "a mesma sucessão de acontecimentos enquanto que existem alguns momentos privilegiados que permitem entrever a sua verdade profética", a possibilidade de salvação. É este o quadro que a De civitate Dei [XXII; cf. Brown, 1967] traça ao misturar a esperança de salvação com o sentido trágico da vida [Marrou, 1950].
As ambigüidades do pensamento histórico de Santo Agostinho deram lugar, sobretudo na Idade Média, a toda uma série de deformações e simplificações: "É possível seguir ao longo dos séculos as metamorfoses que, na sua maioria, mais não são que caricaturas do esquema agostiniano da De civitate Dei" [Marrou, 1961, p. 20]. A primeira caricatura foi feita pelo padre espanhol Orósio, cuja obra Adversus Paganos, inspirada no ensino direto de Agostinho em Hipona, teve grande influência na Idade: Média. Assim nasceu a confusão entre a noção mística da Igreja, prefiguração da cidade divina, e a instituição eclesiástica que pretendia submeter a sociedade terrena, a pseudo explicação da história por uma Providência imprevisível, mas sempre bem orientada, a crença numa decadência progressiva da humanidade infalivelmente arrastada para o fim querido por Deus, o dever de converter a não-cristandade por qualquer preço para fazê-la entrar numa história da salvação, reservada apenas aos cristãos.
Enquanto que a história ocidental medieval prosseguia lenta e humildemente as tarefas do ofício de historiador, à sombra da teoria "agostiniana" do homem, o Islã produzia tardiamente uma obra genial no campo da filosofia da história – a Mugaddima de Ibn Khaldün. Mas, ao contrário da De civitate Dei, e sem ter exercido influência imediata, a Mugaddima revelava já algumas das futuras práticas que viriam a fazer parte do estado de espírito da história científica moderna.
Todos os especialistas concordam em considerar Ibn Khaldün como "um espírito crítico excepcional para o seu tempo" [Monteil, 1967-68, p. XXV], "um gênio, isto é, um desses seres de intuição sem par" [ibid., p. XXXVI], "avançado em relação ao seu tempo pelas idéias e pelo método" [ibid., p. XXXII]; Toynbee vê na Muqaddima "sem dúvida a maior obra no seu gênero alguma vez criada em qualquer tempo e lugar" [citado ibid., p. XXXV]. [pg. 081]
Sem poder analisá-la na relação com o seu tempo, evoco-a aqui pois que pertence, desde então, a uma componente da produção histórica da humanidade e porque é ainda hoje capaz de influenciar diretamente a reflexão histórica sobre o mundo muçulmano e o Terceiro Mundo. Segue-se a opinião de um intelectual argelino, um médico aprisionado pelos franceses durante a guerra da Argélia, que leu Ibn Khaldiin na prisão: "Fiquei emocionado com a finura e penetração das reflexões sobre o Estado e o seu papel, sobre a história e sua definição. Abriu grandes perspectivas à psicologia... tal como à sociologia política, ao pôr a tônica na oposição entre cidadãos e camponeses ou no papel do espírito de corpo, na constituição dos Impérios e do luxo, na sua decadência" [1959, p. 98]. O geógrafo francês Yves Lacoste vê na Mugaddima "uma contribuição fundamental para a história do subdesenvolvimento, que assinala o nascimento da história como ciência e nos transporta a uma etapa essencial do passado do atual Terceiro Mundo" [1966, p. 17].
Ibn Khaldün nasceu em Tunis em 1332 e morreu no Cairo em 1406; escreveu a Mugaddima no exílio, na Argélia, perto de Biskra em 1377, antes de morrer no Cairo como 'juiz' (entre 1382 e 1406). A sua obra é uma introdução (Muqaddima) à história universal. Sob este aspecto, coloca-se na linha de uma grande tradição muçulmana e reivindica abertamente essa filiação. Para um leitor ocidental moderno, o início da Mugaddima evoca o que no Renascimento ocidental, um ou dois séculos mais tarde, se escrevia e o que alguns historiadores da Antiguidade tinham já escrito: "A história é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas, que se traduzem no seu caráter nacional. Transmite-nos a biografia dos profetas, a crônica dos reis, suas dinastias e política. Assim, quem quiser pode obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos. Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo: para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro" [Ibn Khaldün, al-Mugaddima, introdução].
Ibn Khaldún apresenta a sua obra como sendo "um comentário sobre a civilização" rumrãh); põe em evidência a mudança [pg. 082] e a sua explicação. Distingue-se dos historiadores que se contentam em falar dos acontecimentos e das dinastias, sem os explicarem. Ibn Khaldin "dá as causas dos acontecimentos" e pensa que consegue apreender "a filosofia (kikma) da história". Viu-se em Ibn Khaldün o primeiro sociólogo. Parece-me mais uma mistura de antropólogo e de filósofo da história. Distancia-se da tradição: "A investigação histórica alia o erro à superficialidade. A fé cega na tradição (taglid) é congênita..." Graças ao seu livro, "já não precisamos acreditar cegamente na tradição" [ibid., Advertência]. Nas suas explicações são notáveis as referências à sociedade e à civilização, estruturas e domínios essenciais, sem negligenciar a técnica e a economia. Vejamos que tipo de testemunho constituem para o historiador os monumentos edificados por uma dinastia: "Todos estes trabalhos dos Antigos só foram possíveis pela técnica e o trabalho de uma numerosa mão-de-obra... Não devemos dar crédito à crença popular de que os Antigos eram maiores e mais fortes que nós... O erro dos narradores vem de admirarem as grandes proporções dos monumentos antigos, sem compreenderem as diferentes condições da organização social [itgimã e de cooperação. Não vêem que tudo dependeu da organização social e técnica (hindam). Por conseguinte, imaginam erradamente que os monumentos antigos se devem à força e à energia de seres de estatura superior" [ibid., I, III, 16]. Como é natural num muçulmano, dado o que vê e sabe do passado do Islã, dá grande importância à oposição nômades-sedentários, beduínos e citadinos. Homem do Magrebe urbanizado, interessa-se principalmente pela vida urbana, mas também considera o fenômeno dinástico e monárquico e constata que não se trata de uma conseqüência da urbanização: "A dinastia precede a cidade", mas está-lhe muito ligada: "A monarquia chama a cidade" [ibid., H, Iv, pp. 1-2].
Revela-se um grande filósofo da história com a teoria (que anuncia Montesquieu, mas que é já tradicional na sua época entre os historiadores e geógrafos muçulmanos) da influência dos climas, não-desprovida de racismo (perante os negros) e principalmente a teoria do declínio (cf. o artigo "Decadência", neste volume da Enciclopédia). As organizações sociais e políticas duram um certo tempo e encaminham-se para o declínio, com mais ou menos rapidez: por exemplo, o prestígio de uma linhagem [pg. 083] só dura quatro gerações. Este mecanismo é especialmente flagrante nas monarquias: por natureza, a monarquia quer a glória, o luxo e a paz, mas uma vez gloriosa, luxuosa e pacífica, a monarquia entra em declínio. Ibn Khaldiin não separa, neste processo, os aspectos morais e sociais: "Regra geral, uma dinastia não dura mais de três gerações: a primeira mantém as virtudes dos beduínos, a rudeza e a selvageria do deserto... conserva o espírito de clã. Os seus membros são decididos e temidos e as pessoas obedecem-lhes... A segunda geração, sob a influência da monarquia e do bem-estar passa à vida sedentária, da privação ao luxo, da glória comum à partilhada e à de um só... O vigor do espírito tribal corrompe-se um pouco. As pessoas habituam-se ao servilismo e à obediência... A terceira geração esqueceu-se completamente da época da rude vida beduína... Perdeu todo o gosto pela glória e pelos laços de sangue, porque é governada pela força... Os seus membros dependem da dinastia que os protege, como se fossem mulheres ou crianças. O espírito de clã desapareceu completamente. O soberano tem de apelar para a sua clientela, o seu séquito. Mas um dia Deus permitirá a destruição da monarquia" [ibid., I, lu, 12]. Esta teoria subentende a identificação de uma forma sóciopolítica com uma pessoa humana, um modelo organicista e biológico da história. Como disse Jacques Berque: é "um pensamento de magrebe, islâmico e mundial... a alegria amarga do inteligível marcou, através deste homem caído em desgraça, a história que se vivia nesse mesmo momento e que teve o mérito de ser o primeiro a enquadrar em tão vastas perspectivas" [1970, p. 327].
Voltemos ao Ocidente. A Antiguidade greco-romana não teve verdadeiramente o sentido da história. Avançou apenas, como esquemas explicativos gerais, a natureza humana (isto é, a imutabilidade), o destino e a Fortuna (isto é, a irracionalidade), o desenvolvimento orgânico (isto é, o biologismo). Situou o gênero histórico no domínio da arte literária e atribuiu-lhe as funções de distração e utilidade moral. Mas previu uma concepção e uma prática "científica" da história (Tucídides), a investigação das causas (Políbio), a procura e o respeito pela verdade (todos e principalmente Cícero). O Cristianismo tinha dado um sentido à história, mas tinha-a submetido à teologia. No século XVIII e sobretudo no XIX, queriam assegurar o triunfo da história [pg. 084] dando-lhe um sentido secularizado pela idéia de progresso, unindo as funções de saber e sabedoria, através de concepções (e práticas) científicas que a identificavam com a realidade, e não só com a verdade (historicismo) e com a práxis (marxismo).
Mas o intervalo que separa a teologia da história medieval do historicismo triunfante do século XIX não é desprovido de interesse do ponto de vista da filosofia da história.
Segundo George Nadei [1964], a idade do ouro da filosofia da história teria sido o período entre 1550 e 1750, aproximadamente. O seu ponto de partida seria a afirmação de Políbio: "A melhor educação e a melhor aprendizagem para a vida política ativa é o estudo da história" [Histórias, I, p.1].
Faço aqui uma observação. Podemos destacar aqui a influência de Maquiavel e de Guicciardini com a condição de referir a posição original destes pensadores sobre as relações entre a história e a política [Gilbert, 1965]. Para Maquiavel, a idéia fundamental é a da especificidade da política e, de certo modo, a política deve ser uma procura da estabilidade da sociedade, opondo-se à história que é um fluxo perpétuo, submetido aos caprichos da Fortuna, como defendiam Políbio e os escritores da Antiguidade. Para Maquiavel, os homens deviam dar-se conta da "impossibilidade de basear uma ordem social permanente, que respeite a vontade de Deus, e em que a justiça seja distribuída de modo a responder a todas as exigências humanas". Por conseguinte, "Maquiavel agarra-se firmemente à idéia de que a política tinha as suas leis próprias, logo, era ou deveria ser uma ciência; o seu objeto era apreender em vida a sociedade no perpétuo fluir da história". A conseqüência desta concepção era "o reconhecimento da necessidade da coesão política e a tese da autonomia da política, desenvolvendo em separado o conceito de Estado" [Gilbert, 1965].
Guicciardini, pelo contrário, quer e realiza a autonomia da história a partir da constatação da mudança (dela se disse, com humor, ser a única lei discernível em história). Especialista do estudo da mudança, "o historiador conquistou assim a sua função peculiar e a história assumia uma função autônoma no mundo do conhecimento; desse modo, o significado da história só era procurado na própria história. O historiador era simultaneamente [pg. 085] registro e intérprete. A Storia d'Italia, de Guicciardini é a última grande obra da história organizada segundo o esquema clássico, mas é também a maior obra da historiografia moderna" [ibid., p. 255].
Para Nadel, a concepção dominante da história, do Renascimento às Luzes, foi a concepção de história exemplar, didática, e o próprio método usado baseia-se em lugares-comuns tirados dos estóicos, reitores e historiadores romanos. A história volta a ser um ensinamento para os governantes, como no tempo de Políbio. Esta concepção da história magistra vitae inspirou estudos parciais, tratados de história, de artes historicae (foi publicada em Basiléia, em 1579, uma coleção desses tratados, a Artis Historicae Penus, em dois volumes), sendo os mais importantes do século XVI, o Methodus ad facilem historiaram cognitionem de Jean Bodin (1566), no século XVII, a Ars historica (1623) de Voss, para quem a história era o conhecimento do particular que é útil lembrar "ad bene beateque vivendum", no século XVIII, o Méthode pour étudier l'histoire de Lenglet du Fresnoy, que teve a 1á edição em 1713, seguida de outras.
A história dos filósofos das Luzes que se esforçaram por torná-la racional, aberta às idéias de civilização e de progresso, não substituiu a concepção de história exemplar e a história ficou de fora da grande revolução científica dos séculos XVII e XVIII. Sobreviveu nestes termos até a sua substituição pelo historicismo que apareceu na Alemanha, em Gõttingen. No fim do século XVIII, início do século XIX, universitários que não precisavam se preocupar com um público para quem a história era uma ciência ética, transformaram a história numa matéria de profissionais e especialistas. "A luta entre o historiador-antiquário e o historiador-filósofo, o sábio pedante e o "gentleman" bem-educado, acabou com a vitória do erudito sobre o filósofo" [Nadel, 1964, p. 315]. Já em 1815 Savigny dissera: "A história não é apenas uma coleção de exemplos, mas a única via para o conhecimento verdadeiro da nossa condição específica". A declaração mais clara é a de Ranke, que ficou célebre: "Atribui-se à história a função de julgar o passado e instruir o presente para ser útil ao futuro; a minha tentativa não pretende ter tão gigantescas funções, mas apenas mostrar como as coisas foram realmente" [1824, ed. 1957, p. 4]. [pg. 086]
Antes de examinar as novas concepções da história erudita alemã no século XIX, isto é, do historicismo, gostaria de retificar a interessante idéia de Ranke em dois pontos. O primeiro é que a idéia dos principais historiadores do final do século XVII não pode ser reduzida à de um história exemplar; a teoria da história perfeita ou integral ultrapassa em muito esse tipo de história. O segundo – a que Nadel alude – é que a teoria providencialista cristã da história continua ao longo do século XVII e encontra a sua expressão mais relevante no Discours sur l'histoire universelle (1681).
Alguns historiadores franceses, na segunda metade do século XVI, exprimiram uma visão muito ambiciosa da história: a história integral, acabada ou perfeita. Encontramos esta concepção em Bodin, em Nicolas Viguer, autor de um Sommaire de l'histoire des français (1579), de uma Bibliothèque historiale (1588), em Louis le Roy, De la vicissitude ou variété des choses en l'univers... (1575) e em Lancelot-Voisin de la Popelinière, com um volume em três tratados, L'Histoire de l'Histoire, L'idée de l'histoire accomplie, Le Dessein de l'histoire nouvelle des français (1599). Bodin tornou-se conhecido por ter introduzido a idéia da influência do clima na história, que prenuncia Montesquieu e a sociologia histórica. Mas Methodus (1566) não passa de uma introdução ao grande tratado La République (1576). É um filósofo da história e da política e não um historiador. Baseia o conceito de história no ideal humanista de utilidade.
Em todos estes sábios há três idéias comuns expostas por La Popelinière, nos seguintes termos: 1° – A história não é pura narração ou obra literária. Deve procurar as causas; 2º – O objeto da história é constituído pelas civilizações e a civilização (e esta é a idéia mais inovadora e a mais importante). A história começa antes da escrita. "Na sua forma mais primitiva", defende La Popelinière, "a história deve procurar-se em tudo: nas canções e nas danças, nos símbolos e outras atuações menmônicas" [citado em Huppert, 1970, p. 1371. É também a história dos tempos em que os homens eram "rurais e não-civilizados" [ibid.]; 32 – A história deve ser universal, no sentido mais completo do termo: "A história digna desse nome deve ser geral" [pg. 087] [ibid., p. 139]. Myriam Yardeni [1964] sublinhou com razão que a história é um fato novo e que La Popelinière pôs em evidência a sua novidade. Mas o pessismismo da sua concepção cristã bloqueava-o.
O Agostinismo histórico, que em La Popelinière ainda tem peso, teve como última obra-prima o Discours sur l'histoire universelle de Bossuet (1681). Depois de ter escrito um Abregé de l'Histoire de France para o seu aluno, o Delfim, filho de Luís XIV, começou a escrever oDiscours que também lhe dedicou: a primeira parte da obra, uma espécie de panorama da história até Carlos Magno, é um verdadeiro discurso; a segunda, a "demonstração da verdade da religião católica nas suas relações com a história, é um sermão" [Lefebvre, 1945-46, p. 97]; a terceira parte, o exame do destino dos Impérios, é mais interessante. De fato, sob a afirmação geral do reinado imprevisível da Providência na história, surge uma racionalidade da História, pelo fato de os acontecimentos particulares se integrarem em sistemas gerais, globalmente determinados, sendo a intervenção de Deus (rara) feita por intermédio de camas secundárias. Mas, não só Bossuet, embora tenha lido os trabalhos dos eruditos, oscila entre a apologética e a polêmica, como lhe é estranha a idéia de uma verdade que se desenvolve no tempo. "Para ele a mudança é sempre sinal de erro. Falta a este historiador, prisioneiro de uma certa teologia, o sentido do tempo e da evolução" [Ehrard e Palmade, 1964, p. 33].
Resta evocar uma filosofia da história original, isolada no seu tempo mas que ainda tem uma surpreendente influência póstuma, a de Giambattista Vico, professor da Universidade de Nápoles, cuja obra principal é a Scienza Nuova (ou mais rigorosamente, Principi di scienza nuova d' intorno alla commune natura delle nazioni) que teve várias edições entre 1725 e 1740. É católico e anti-racionalista. "Introduziu uma espécie de dualismo muito seu, entre a história sagrada e a profana. Colocava toda a moralidade e racionalidade ao lado da história sagrada e via na história profana o desenvolvimento de instintos irracionais, de uma imaginação cruel, de uma injustiça violenta" [Momigliano, 1966c, p. 1561. As paixões humanas levam as nações e os povos à decadência. Uma espécie de luta de classes entre os [pg. 088] "eroi", conservadores e os "bestioni", plebeus e partidários da mudança, acaba em geral com a vitória dos "bestioni"; a decadência sucede ao apogeu e dá-se a passagem a outro povo que; por sua vez, cresce e declina: "Foi o homem que fez este mundo histórico".
Esta filosofia da história inspirou múltiplas admirações. Michelet traduziu para o francês a Scienza Nuova em 1836 e afirmou: "A mensagem da Scienza Nuova é esta: A humanidade é a sua própria obra". Croce formou parcialmente o seu pensamento histórico através da leitura e comentário de Vico (La filosofia di Giambattista Vico, 1911). Há uma interpretação marxista de Vico (Marx, em 1861, recomendava a sua leitura a Lassalle) desenvolvida por Georges Sorel (Études sur Vico, em "Le devenir social", 1896). António Labriola, Paul Lafargue, a citação de Trotsky na primeira página de A História da Revolução Russa (Istorija russkoj revoljucii, 1931-33), que inspirou a Introduzione a G.B. Vico (1961) de Nicola Badaloni. Ernest Bloch escreveu: "Com Vico reaparece pela primeira vez, desde a De civitate Dei de Agostinho, uma filosofia da história sem história da salvação, mas apoiada na afirmação aplicada a toda a história, que não haveria comunidade humana sem a ligação da religião" [1972, p. 154].
O historicismo foi definido por Nadei da seguinte maneira: "O seu fundamento é o reconhecimento de que os acontecimentos históricos devem ser estudados, não como anteriormente se fazia, como ilustrações da moral e da política, mas corro fenômenos históricos. Na prática, manifestou-se pelo aparecimento da história como disciplina universitária independente, no nome e na realidade. Na teoria, expressou-se através de duas proposições: 1) o que acontece deve ser explicado em função do momento em que acontece; 2) para o explicar existe uma ciência específica, usando processos lógicos, a ciência da história. Nenhuma destas proposições era nova, mas sim a insistência que nelas era posta, que levou a exagerar, em termos doutrinais, as duas proposições: da primeira, tirou-se a idéia de que fazer história de algo é dar uma explicação suficiente e os que viam uma ordem lógica na ordem cronológica dos acontecimentos consideraram a ciência histórica capaz de predizer o futuro [1964, p. 291]. [pg. 089] O historicismo deve ser integrado no conjunto das correntes filosóficas do século XIX, como fez Maurice Mandelbaum [1971], que lhe atribui duas fontes distintas e talvez opostas. Urra é a revolta romântica contra as Luzes, sendo a outra, sob certos aspectos, a continuação da tradição das Luzes. A primeira tendência apareceu no fim do século XVIII, mais vincadamente na Alemanha, e considera o desenvolvimento histórico com base no modelo de crescimento dos seres vivos. Hegel surge com esta tendência, tendo no entanto chegado muito mais longe. A segunda esforça-se por estabelecer uma ciência da sociedade baseada em leis de desenvolvimento social e teve como mestres Saint-Simon e Comte; o marxismo também se integra nesta tendência. De fato, o historicismo marcou todas as escolas de pensamento do século XIX, conseguindo finalmente triunfar, devido à teoria de Darwin sobre o evolucionismo em The Origin of Species (1859). O conceito central desta teoria é o de desenvolvimento, muitas vezes tornado mais rigoroso pelo apoio do conceito de progresso. O historicismo esbarrou com o problema da existência de leis em história, leis que têm um sentido e com o problema de um modelo único de desenvolvimento histórico.
Evocarei com Georg Iggers – sumariamente – os fundamentos teóricos do historicismo alemão em Wilhelm von Humboldt e Leopold von Ranke, o apogeu do otimismo historicista na escola prussiana, a crise do historicismo na filosofia crítica da história de Dilthey e Max Weber e o relativismo histórico de Troeltsch e Meinecke.
Wilhelm von Humboldt, filósofo da linguagem, diplomata, fundador da Universidade de Berlim em 1810, escreveu inúmeras obras históricas e resumiu o seu pensamento sobre a história, no tratado O dever do historiador (Über die Aufgabe des Geschichtschreibers [1821]. Humboldt, muito perto do romantismo, influenciado (positiva e negativamente) pela Revolução Francesa, criou a "teoria das idéias históricas"; insiste na importância do indivíduo na história, no lugar central da política em história, princípios da filosofia da história que inspiraram a ciência histórica alemã, de Ranke a Meinecke [cf. Iggers, 1971, pp. 8485]. As suas idéias não são metafísicas, platônicas, são idéias historicamente encarnadas num indivíduo, num povo (espírito do povo, Volksgeist), numa época (espírito do tempo, [pg. 090] Zeitgeist), mas permanecem vagas. Embora não seja "nem niilista, nem relativista" tem uma concepção fundamentalmente "irracional" da história.
O maior e mais importante dos historiadores e teóricos alemães da história do século XIX é Leopold Ranke. A sua obra histórica trata sobretudo da história européia dos séculos XV e XVII e da história prussiana, dos séculos XVIII e XIX. No fim da vida escreve uma História Universal (Weltgeschichte), que ficou inacabada. Ranke foi mais um metodólogo que um filósofo da história. Foi "o maior mestre do método crítico-filológico" [Fueter, 1911, p. 113]. Lutando contra o anacronismo, denunciou o falso romanesco histórico, por exemplo, nos romances de Walter Scott e afirmou que a grande tarefa do historiador consistia em dizer o que de fato existira". Ranke empobreceu o pensamento histórico, atribuindo excessiva importância à história política e diplomática. O seu pensamento foi porém deformado em dois sentidos: um positivista e um idealista. Os historiadores franceses [Langlois e Seignobos, 1898] e principalmente americanos [Adams, 1884] viram nele "o pai da história", de uma história que se limitava à "estrita observação dos fatos, à ausência de moralização e de ornamentos, à pura verdade histórica" [ibid., pp. 104 ss.; cf. Iggers, 1971, pp. 86 ss.].
Ora, Ranke colocou-se na linha de Humboldt enquanto defensor (prudente) da doutrina das idéias históricas e acreditou também no progresso da cultura como conteúdo da história, deu grande importância à psicologia histórica, como mostrou na sua Histoire des Papes Romains [183436]. Mas, embora se tenha utilizado com freqüência frases suas em que dizia que "cada povo está diretamente ligado a Deus", foi "adversário das teorias históricas nacionais" [Fueter, 1911, p. 109].
O otimismo historicista atingiu o seu apogeu com a escola prussiana cujas figuras mais notáveis foram Johann Gustav Droysen, que exprime as suas teorias no Sumário de História (Grundriss der Historik, 1858), e Heinrich von Sybel. Droysen pensa que não há conflito entre moral, história e política. Se um governo não se basear pura e simplesmente na força, mas também numa ética, ascende ao estágio supremo de realização ético- histórica, o Estado. O Estado prussiano foi, no século XIX, o [pg. 091] modelo deste resultado, já realizado na Antiguidade por Alexandre. No seio do Estado deixa de existir conflito entre liberdade individual e bem comum. Sybel insistiu ainda mais na missão do Estado e na realidade de um progresso geral da humanidade. Acrescenta-lhe a proeminência da razão de Estado devendo usar-se a força, em caso de conflito com o direito.
Este breve sumário deveria enriquecer-se com o estudo das estreitas ligações entre estas visões da história e a história alemã do século XIX e com o estudo dos outros domínios da ciência, em que o historicismo alemão se implantou triunfalmente, tais como a escola histórica de direito, a escola histórica de economia, a lingüística histórica, etc. [Iggers, 1973].
No fim do século assiste-se ao refluxo do historicismo na Alemanha, enquanto triunfava em outros locais, com deformações positivistas (França, Estados Unidos) ou idealistas (Itália: Croce).
Iggers exprimiu-se com justeza ao dizer que a crítica ao historicismo surgiu primeiro como crítica ao idealismo, de 1914 a 1918 e, depois, como crítica da idéia de progresso. Distinguem-se em primeiro lugar a crítica dos filósofos e a dos historiadores.
No que diz respeito à primeira, remeto para o grande livro de Raymond Aron La philosophie critique de l'histoire [1938b, para o belo estudo de Pietro Rossi Lo storicismo tedesco contemporaneo [1956] e Lostoricismode Carlo Antoni [ 1957].
Lembrarei em seguida as duas principais figuras da crítica filosófica: Dilthey e Max Weber.
Dilthey começou por criticar os conceitos fundamentais do historicismo de Humboldt e Ranke: alma popular (Volksseele), espírito do povo (Volksgeist), nação, organismo social, são para ele conceitos "místicos", inúteis para a história [Iggers, 1971, p. 18C]. Depois, pensou que era possível o conhecimento nas ciências do espírito – nelas compreendendo a história – porque a vida "se objetiva" em instituições como a família, a sociedade civil, o Estado, a direito, a arte, a religião, a filosofia [ibid., p. 182]. No fim da vida (1903), pensava atingir o fim da sua investigação para fazer "uma crítica da razão histórica". Acreditava [pg. 092] que a "visão histórica do mundo (geschichtliche Weltarschauung) era a libertadora do espírito humano a quem tirava as últimas cadeias, que as ciências da natureza e a filosofia não tinham tirado" [ibid., p. 188].
Toda a crítica do historicismo, do fim do século XIX e início do XX, é ambígua. Procura mais ultrapassar o historicismo, como acabamos de ver com Dilthey, que renegá-lo.
Max Weber, além de filósofo, foi um grande historiador e sociólogo. Raymond Aron sintetizou a teoria weberiana nos seguintes termos: "Todas as polêmicas de Weber têm como objetivo demonstrar a sua teoria, afastando todas as concepções que a pudessem ameaçar. A história é uma ciência positiva; esta proposição é posta em dúvida: a) pelos metafísicos, conscientes ou inconscientes, assumidos ou envergonhados, que usam um conceito transcendente (liberdade) na lógica da história; b) os estetas e/ou os positivistas que partem do pressuposto que só há ciência e conceitos do geral, sendo o indivíduo apenas suscetível de ser apreendido intuitivamente. A história é sempre parcial, porque o real é infinito, porque a inspiração da investigação histórica muda com a própria história. Põem em perigo estas proposições: a) os "naturalistas" que proclamam a lei como único fim da ciência ou pensam esgotar o conteúdo da realidade por meio de um sistema de relações abstratas; b) os historiadores ingênuos que, inconscientes dos seus valores, imaginam descobrir no próprio mundo histórico a seleção do importante e do acidental; c) todos os metafísicos que julgam ter apreendido de modo positivo a essência dos fenômenos, as forças profundas, as leis do todo que comandaria o devir, acima dos homens que pensam e julgam agir" [1938b, p. 256]. Vemos assim como Max Weber combatia o historicismo, quer do lado do idealismo quer do positivismo, as duas vertentes do passado histórico alemão do século XIX.
Este capítulo sobre o historicismo e sua crítica termina com os dois últimos grandes historiadores alemães do século XIX: Ernst Troeltsch e Friedrich Meinecke, que no fim da sua atividade publicaram dois volumes sobre o historicismo: O triunfo do historicismo [1924] e As origens do historicismo [1936]. [pg. 093]
Em primeiro lugar, foram os primeiros a chamar Historismus 'historicismo' ao movimento historiográfico alemão cuja figura central foi Ranke. Seguiu-se-lhe aliás uma interminável polêmica sobre a maneira de traduzir o vocábulo em francês – e eventualmente de distinguir – entre os termos historismo e historicismo [Iggers, 1973]. As duas obras são uma crítica do historicismo e, ao mesmo tempo, um monumento à sua glória. Troeltsch pensava, com Ranke, que não há uma história, mas histórias, e quis superar o dualismo básico do historicismo: o conflito entre natureza e espírito, ação sob o impulso da força (krátos) e ação segundo a justificação moral (étos), consciência historicista e necessidade de valores absolutos. Meinecke aceita este dualismo [cf. Chabod, 1927]. Considera o historicismo "o mais alto grau atingido na compreensão das coisas humanas". Sem dúvida que pára, como notou Carlo Antoni, antes da dissolução da razão e da fé no pensamento, princípio de unidade da natureza humana, devido ao humanismo mantido por Ranke. Mas Delio Cantimori [1945] deu razão a Croce, que via no historicismo de Meinecke uma espécie de traição "irracional" do "verdadeiro historicismo". "Historicismo" no sentido científico do termo é a afirmação de que a vida e a realidade são história e nada mais que história. Correlativa a esta afirmação é a negação da teoria que considera a realidade dividida em super-história e história, num mundo de idéias ou valores e um baixo mundo que os refletiu até então, de modo fugidio e imperfeito e que deverá impor-se de uma vez por todas, fazendo suceder à história imperfeita ou à história, uma realidade racional e perfeita... Meinecke, pelo contrário, faz consistir o historicismo na admissão do que há de irracional na vida humana, na atenção ao individual, sem descurar o típico ou o geral e em projetar essa visão do individual na fé religiosa ou no mistério religioso... Mas se o verdadeiro historicismo critica e vence o racionalismo abstrato do iluminismo, é no entanto mais profundamente racionalista que ele" [Croce, 1938, pp. 51-53]. Nas vésperas do nazismo, as obras de Troeltsch e de Meinecke são túmulos à glória do historicismo.
Mas regressemos a Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o primeiro filósofo a colocar a história no centro da sua reflexão. Sob a influência da Revolução Francesa foi o primeiro a ver "a [pg. 094] essência da realidade na mudança histórica e no desenvolvimento da consciência de si que o homem tem" [Carr, 1961, p. 131]. Afirmando que "tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional", considera que a história é governada pela razão: "A única idéia dada pela filosofia é esta simples idéia da razão, a idéia que a razão governa o mundo e que, por conseguinte, a história universal se desenvolve racionalmente" [Hegel 1830-31] num sistema que é o do Espírito. A história não é idêntica à lógica: Hélène Védrine chamou a atenção para o texto da Encyclopédie des Sciences philosophiques en Abrégé [1830]: "Mas o espírito pensante da história do mundo, desembaraçando-se destas limitações dos espíritos dos povos particulares e da sua própria mundaneidade, apreende a sua universalidade concreta e eleva-se até o saber do espírito absoluto, como verdade eternamente efetiva, na qual a razão cognoscente é livre em si mesma e na qual a necessidade, a natureza e a história só estão a serviço desse espírito e são os instrumentos da revelação da sua honra". Hélène Védrine nota que este texto prova bem o idealismo de Hegel, mas que nele se manifesta "o paradoxo de todas as filosofias da história: para apreender o sentido do desenvolvimento deve encontrar-se o ponto nodal onde desaparecem os acontecimentos na sua singularidade e se tornam significativos segundo uma trama que os permite interpretar. Na sua totalização o sistema produz um conceito do seu objeto, de tal maneira que o objeto se toma racional e escapa por isso ao imprevisto e à temporalidade em que o acaso poderia desempenhar um papel" [1975, p. 21]. Sobre o processo histórico, Hegel pensa que "só os povos que constituem um estado podem ser reconhecidos- [1830-31] e na Filosofia do Direito [1821] apresenta o Estado moderno depois da Revolução Francesa, formado por três classes: a classe substancial ou dos camponeses, a classe industrial e a classe universal (a burocracia), que parece representar a perfeição em história. Hegel não faz parar aqui a história; pensa que a Pré-história acabou e que a História já não é a mudança dialética, mas que o funcionamento racional do espírito começa.
Sem dúvida que Ranke criticou vivamente Hegel [Simon, 1928] e o seu modelo de um processo único de desenvolvimento linear; mas pode dizer-se que "do ponto de vista do conhecimento [pg. 095] ou dos valores, Hegel representa um historicismo completo sistematicamente aplicado" [Mandelbaum, 1971, p. 60].
Pode integrar-se o materialismo histórico no historicismo, se o tomarmos no seu sentido mais lato (veremos mais adiante a crítica de Althusser a esta concepção). Para Marx [cf. Vilar, 1978; Lichtheim, 1973], a "concepção materialista da história" (expressão que não voltou a usar) tem um triplo caráter: 1) como princípio geral de investigação histórica, sob a forma de uma conceitualização simplesmente esboçada; 2) como teoria do processo histórico real aplicado: o estudo da sociedade burguesa que leva a um esboço histórico do desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental. Os principais textos de Marx relativos à história estão na Ideologia Alemã [Marx e Engels, 1845-46], que "apreende o materialismo histórico na sua gênese e nas suas modalidades" [Vilar, 1978] e também – embora desconfiando das citações fora do texto e dos comentários deformantes ou empobrecedores no "prefácio" de 1859 à Contribuição para a crítica da economia política e finalmente em O Capital. A tese fundamental é que o modo de produção da vida material condiciona o processo social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência mas, pelo contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Ao contrário de Hegel, Marx rejeitou toda a filosofia da história, identificada com uma teologia. No Manifesto [Marx e Engels, 1848] postulam que a história de todas as sociedades é a história da luta de classes.
Quanto a alguns pontos especialmente contestáveis e perigosos do materialismo histórico Marx, sem ser responsável pelas interpretações abusivas nem pelas conseqüências ilegítimas que outros tiraram, quer durante a sua vida, quer depois da sua morte, aceitou no entanto formulações exageradas ou simplistas e permitiu que conceitos importantes ficassem vagos e ambíguos. Não formulou leis gerais da história, apenas conceitualizou o processo histórico, mas empregou algumas vezes o perigoso termo 'lei' ou aceitou que o seu pensamento fosse formulado nestes termos. Aceita por exemplo o emprego da palavra 'leis' a propósito de concepções expressas no primeiro volume de O Capital [1867], feito o relatório de um professor da Universidade de Kiev, A.Sieber [Mandelbaum, 1971, pp. 72-73]. [pg. 096] Permite que Engels exponha no Anti-Dühring [1878] uma concepção grosseira do modo de produção e da luta de classes. Como já se notou, a sua documentação histórica (e a de Engels) era insuficiente e não escreveu verdadeiras obras de história, mas panfletos. Deixou no vazio o mais perigoso dos seus conceitos: a distinção entre infra e superestrutura, embora nunca tenha exprimido grosseiramente uma concepção econômica de infra-estrutura nem designado como superestrutura nada, além da construção política (o Estado – em total oposição com a maior parte dos historiadores alemães do seu tempo e vários expoentes do que se virá a chamar de historicismo) e a ideologia, termo que, para ele, é pejorativo. Também não tornou preciso como a teoria crítica e a prática revolucionária se deviam articular no historiador: na vida e na obra. Deu bases teóricas, mas não práticas, ao problema das relações entre história e política. Embora tenha falado da história da Ásia, praticamente só raciocinou sobre a história européia e ignorou o conceito de civilização. Sobre a recusa das leis mecânicas em história podemos citar uma carta de 1877 em que declara: "Acontecimentos surpreendentemente similares, mas que se produzem num meio histórico diferente, conduzem a resultados totalmente diferentes. Se estudarmos à parte cada uma destas evoluções e as compararmos, é fácil encontrar a chave da compreensão deste fenômeno; nunca será possível atingir essa compreensão se se usar o passe-partout de uma teoria histórico-filosófica cuja grande virtude fosse estar acima da história" [citado por Carr, 1961, p. 51]. Criticou a concepção événementielle de história: "Vemos como a concepção passada da história era um contra-senso que negligenciava as relações reais e se limitava aos grandes acontecimentos políticos e históricos" [citado em Vilar, 1978, p. 372]. Como diz Vilar, "ele escreveu "livros de história", sempre escreveu poucos livros de historiador, o "conceito de história" faz parte da sua prática" [ibid., p. 374].
Sabe-se que Benedetto Croce foi atraído na sua juventude pelo marxismo, e Gramsci [1932-35, p. 1240] considerou que esteve obcecado pelo materialismo histórico. Para Croce, como para o materialismo histórico, "a identidade entre história e filosofia é imanente no materialismo histórico" [ibid., p. 1241]. Mas Croce recusou-se a ir até o fim desta identidade, isto é, a [pg. 097] concebê-la como "uma previsão histórica de uma fase futura" [ibid., p. 217]. Sobretudo, Croce recusava-se a identificar história e política, ou seja, ideologia e filosofia [ibid., p. 1242]. Croce viria a esquecer-se que "realidade em movimento e conceito de realidade podem ser distintos a nível lógico, mas a nível histórico têm uma unidade indivisível" [ibid., p. 1241]. Cairia assim num sociologismo "idealista" e o seu historicismo não seria mais que uma forma de reformismo, não seria verdadeiro "historicismo" mas uma ideologia, no mau sentido. Parece-me que Gramsci tem razão em opor a filosofia da história de Croce à do materialismo histórico. Se encontra raízes comuns é porque ele próprio, segundo parece, voltou – tal como Croce – a Hegel, por detrás de Marx e porque interpreta o materialismo histórico como um historicismo, o que, de qualquer modo, não corresponde ao pensamento de Marx e que é talvez ele, Gramsci, que não chega a libertar-se totalmente da influência de Croce a quem chamava em 1917 "o maior pensador da Europa neste momento".
Sobre o idealismo histórico de Croce não restam dúvidas. Na Teoria e storia delta storiografia [1915] define nos seguintes termos a concepção idealista: "Já não se trata de instaurar, para além de uma historiografia individualista e pragmática, uma abstrata história do espírito, do universal abstrato; mas mostrar que indivíduo e idéia, tomados separadamente, são duas abstrações equivalentes e inadequadas para fornecer o sujeito da história e que a verdadeira história é a história do indivíduo enquanto universal e do universal enquanto indivíduo. Não se trata de abolir Péricles em favor da Política, ou Platão pela Filosofia, ou Sófocles pela Tragédia; trata-se, sim, de pensar e representar a Política, a Filosofia e a Tragédia tal como Péricles, Platão e Sófocles e uns e outros num dos seus momentos particulares. Pois se, fora da relação com o espírito, o indivíduo é a sombra de um sonho, também o espírito fora da sua individuação é a sombra de um sonho: e atingir na concepção histórica a universalidade é obter também a individualidade e torná-las a ambas saldos da solidez que uma confere à outra. Se a existência de Péricles, de Sófocles e de Platão fosse indiferente, não seria por isso mesmo também indiferente a existência da Idéia?" [1915, ed. 1976, pp. 97-98]. E na Storia come pensiero e come azione, depois de ter [pg. 098] criticado o racionalismo positivista do was eigentlich gewesen de Ranke, vai até o ponto de afirmar que "mais nenhuma unidade subsiste fora da do próprio pensamento que distingue e unifica" [1938, p. 3121. Como comenta Chabod, "não há unidade das coisas, mas apenas do pensamento crítico" [1952, ed. 1972, p. 228].
Arnaldo Momigliano chamou a atenção para a pouca influência que Croce exerceu sobre os filósofos: "Ninguém pode prever se a filosofia de Croce será um ponto de partida para futuros filósofos. Tem atualmente poucos discípulos na Itália e talvez nenhum no estrangeiro. Mesmo Collingwood, antes da sua morte prematura, tinha deixado de ser seu discípulo" [1966a, ed. 1969, p. 110].
Delio Cantimori notou que os historiadores profissionais não consideraram história a maior parte da obra de Croce, mesmo as obras que têm no título Storia... Está neste caso Federico Chabod, a quem no entanto Croce convidara para diretor do Instituto para os estudos históricos que tinha fundado em Nápoles: "Afastava-o porque lhe parecia que ele era demasiado filósofo, político doutrinário, homem que não sabe pôr à parte a sua própria ideologia e paixão" [1966, ed. 1978, p. 402]. Confesso partilhar do sentimento de Chabod, embora deva realçar que Croce, ao contrário de muitos filósofos da história que eram "puros" filósofos, era também um verdadeiro historiador.
Em contrapartida, penso que Cantimori teve razão em sublinhar um grande progresso no pensamento da história, em parte devido a Croce: a distinção entre história e historiografia: "Ao longo das suas várias e múltiplas experiências historiográficas e das suas reflexões sobre o trabalho historiográfico, Croce reencontrou e transmitiu claramente, através da distinção entre res gestae e historia rerwn gestarwn, entre estudos de história e de questões históricas, a conseqüência da grande, fundamental e substancialmente irreversível experiência crítica da filologia moderna, que é ciência do conhecido e não do desconhecido. Isto não significa que não se deva fazer investigações de arquivo ou de material inédito; pelo contrário, devem ser feitas e só no estudo do documento ou de uma série de documentos, diretamente compilados, se pode avaliar a importância e o significado [pg. 099] desses materiais" [ibid., p. 406]. Depois de ter exposto o conjunto dos processos profissionais do historiador, Cantimori conclui, a propósito de Croce: "Não renunciar à crítica (historia rerwn) pela ilusão de poder apreender a substância ou essência das coisas e de a poder dar a conhecer de uma vez por todas (res gestae); pois só esta distinção crítica permite colocar-se num ponto de vista do qual se possa seguir o movimento e a evolução das sociedades e dos indivíduos, dos homens e das coisas – e conhecer no vivo e no concreto e não no abstrato e no geral" [ibid.].
A esta distinção fundamental acrescenta-se o fato de Croce também ter insistido na importância da história da historiografia: "Através da atenção pela história da historiografia, Croce indicou a necessidade e a possibilidade deste segundo aprofundamento crítico por parte dos historiadores, como escala e graduação, para conseguir, através do reconhecimento das interpretações do seu ambiente geral, cultural e social, obter uma exposição e um juízo bem informados e autônomos, livres da repetição e submissão a metafísicas e metodologias não-derivadas da técnica e da experiência, mas de princípios filosóficos e escolásticos" [ibid., p. 407].
Antônio Grainsci é considerado um marxista aberto, e revelou grande maleabilidade nos seus escritos, tal como na ação política. Mas não me parece que as suas concepções de história marquem um progresso do materialismo histórico. Sinto, pelo contrário, um certo regresso ao hegelianismo e, ao mesmo tempo, um resvalar para o marxismo vulgar. Reconhece que a história não funciona como uma ciência e que não podemos aplicar-lhe uma concepção mecânica da causalidade. Mas a sua famosa teoria do bloco histórico parece-me muito perigosa para a ciência histórica. A afirmação de que super e infraestruturas formam um bloco histórico – dito por outras palavras, que o "conjunto complexo, contraditório e discordante da superestrutura é o reflexo do conjunto das relações sociais" [1931-32, p. 1051] – foi, de modo geral, interpretada como um abrandamento da doutrina das relações entre infra- e superestruturas que Marx tinha deixado no vácuo e que me parece a parte mais falsa, mais [pg. 100] fraca e mais perigosa do materialismo histórico, mesmo que Marx não tivesse reduzido a estrutura à economia. O que Gramsci parece abandonar é a idéia pejorativa de ideologia, mas ao deixá-la ligada à superestrutura, a valorização da ideologia nada mais faz que ameaçar ainda mais a independência (não digo autonomia, que, como é óbvio, não existe) do setor intelectual. Ao lado dos intelectuais tradicionais e dos intelectuais orgânicos, Gramsci só reconhece como válidos os intelectuais que identificam ciência e práxis, ultrapassando as ligações esboçadas por Marx. Para além disso, identifica ciência com superestrutura. Com base nestes movimentos de deslize, podemos considerar a concepção gramsciana do materialismo histórico como "historicismo absoluto".
Althusser protestou violentamente contra a interpretação historicista do marxismo que o liga à interpretação "humanista". Vê a sua origem na "reação vital contra o mecanicismo e o economicismo da II Internacional, no período anterior e imediatamente posterior à Revolução de 1917" [em Althusser e Balibar, 1965, H, p. 74].
Esta concepção historicista e humanista (estas duas concepções foram ligadas, segundo Althusser, pela configuração histórica mas não o estão necessariamente do ponto de vista teórico) foi em primeiro lugar a da esquerda alemã, de Rosa Luxemburgo e de Mehring e, depois da Revolução de 1917, a de Lukács e principalmente de Gramsci, antes de ter sido retomada de certo modo por Sartre, na Critique de Ia raison dialectique (1960). É na tradição marxista italiana, na qual Gramsci é herdeiro de Labriola e Croce (Althusser minimiza a oposição Gramsci-Croce), que Althusser encontra as expressões mais vincadas do marxismo como "historicismo absoluto". Cita a célebre passagem da nota de Gramsci sobre Croce: "Ao tornar corrente a expressão materialismo histórico, esquecemo-nos que era preciso pôr a tônica no segundo termo, "histórico", e não no primeiro que é de origem metafísica. A filosofia da práxis é o "historicismo" absoluto, a mundanização e "terrestridade" absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história" [Gramsci, 1932-33, p. 1437]. [pg. 101]
É certo que neste texto Althusser está a polemizar mas, como não lança um anátema sobre Gramsci, cuja sinceridade e honestidade revolucionária lhe parecem acima de qualquer suspeita, pretende apenas retirar o valor teórico a textos de circunstância. Para ele, identificar "a gênese especulativa do conceito" com "a gênese do próprio conceito', real, isto é, com o processo da história "empírica" é um erro. Gramsci cometeu o erro de formular "uma concepção verdadeiramente "historicista" de Marx: uma concepção "historicista" da teoria da relação entre a teoria de Marx e a história real" [em Althusser e Balibar, 1965]. Althusser considera que se deve distinguir o materialismo histórico (que deve ser considerado uma teoria da história) e o materialismo dialético, filosofia que escapa à historicidade. Althusser tem razão, enquanto exegeta de Marx, em fazer esta distinção mas quando critica a concepção "historicista" do marxismo, pelo fato de esquecer a novidade absoluta, o "corte" que o marxismo constituiria enquanto ciência – "o que nunca antes tinha acontecido" [ibid.] – mas não se sabe muito bem se fala do materialismo histórico, se do materialismo dialético, se dos dois [ibid.]. Parece-me que ao cortar parcialmente o marxismo da história, Althusser o faz oscilar para o lado da metafísica, da crença e não da ciência. É por um constante vaivém da práxis à ciência, que se alimentam uma à outra, mantendo-se cuidadosamente distintas, que a história científica poderá libertar-se de história vivida, condição indispensável para que a disciplina histórica aceda a um estatuto científico.
A crítica de Althusser a Gramsci parece-me pertinente quando, considerando "as surpreendentes páginas de Gramsci sobre a ciência" [ibid.] ("a ciência é também uma superestrutura, uma ideologia" [Gramsci, 1932-33, p. 1457]) lembra que Marx recusa uma interpretação lata do conceito de infra-estrutura que só é válido em relação à superestrutura jurídico-política e ideológica (as "formas de consciência social' correspondentes) e que Marx "nunca nele inclui... o conhecimento cientifico" [em Althusser e Balibar, 1965, II, p. 92]. Por conseguinte, o que poderia haver de positivo na interpretação de Gramsci do materialismo histórico como historicismo – apesar dos perigos de fetichização dos diversos gêneros que implica – é destruído pela sua concepção da ciência como infra-estrutura. A história – confundidos [pg. 102] os dois sentidos da palavra – torna-se também "orgânica", expressão e instrumento do grupo dirigente. A filosofia da história é elevada ao seu expoente máximo: história e filosofia confundem-se, formam também um outro tipo de "bloco histórico": "A filosofia de uma época histórica não é mais que a "história" dessa mesma época, que a massa de variações que um grupo dirigente conseguiu determinar na realidade precedente: neste sentido, história e filosofia são indivisíveis, formam bloco" [Gramsci, 1932-35, p. 1255].
Parece-me que a interpretação "histórica" e não "historicista" da dialética marxiana e marxista de Galvano della Volpe está próxima das relações que Marx estabelecia entre história e teoria do processo histórico: "As contradições (digamos apenas, os contrários) que Marx pretende resolver ou superar na sua unidade são reais, isto é, são contradições históricas, ou melhor, historicamente determinadas ou específicas" [1969, p. 317].
Referirei rapidamente duas concepções da história que apenas menciono pelo eco que tiveram num passado recente, sobretudo no grande público.
Oswald Spengler reagiu contra a ideologia do progresso e, no Declínio do Ocidente [1918-22], expõe uma teoria biológica da história, constituída por civilizações que são "seres vivos de sangue superior", os indivíduos só existindo na medida em que participam desses "seres vivos". Há duas fases na vida das sociedades: a fase da cultura que corresponde à sua ascensão e apogeu, a da civilização que corresponde à sua decadência e desaparição [cf. o artigo "Decadência", neste volume da Enciclopédia). Spengler reencontra assim as concepções cíclicas da história.
Arnold Toynbee é, de fato, um historiador. Em A Study of History [ 1934-39], parte de Spengler, esperando ter êxito no campo que ele explorara sem o ter conseguido. Distingue vinte e uma civilizações que, ao longo da história, atingiram um estágio completo de desenvolvimento e culturas que apenas atingiram um certo nível de desenvolvimento. Todas elas passam por quatro fases: uma curta gênese durante a qual a civilização nascente recebe (em geral do exterior) um "desafio' e lhe dá uma "resposta"; um longo período de crescimento, seguido de uma paragem, [pg. 103] marcada por um acidente; finalmente, uma fase de desagregação que pode ser muito longa [cf. Crubellier, 1961, pp. 8 ss.]. Este esquema é "progressista", "aberto" à humanidade. De fato, a par desta história, feita de uma sucessão de ciclos, existe outra, "providencial": a humanidade está globalmente em marcha para uma transfiguração que torna clara a "teologia do historiador". Assim, uma teoria spengleriana e uma concepção agostiniana caminham lado a lado. Para além do aspecto "metafísico" desta concepção, criticou-se com razão a clivagem arbitrária e confusa de civilizações e culturas, o conhecimento imperfeito de várias delas que Toynbee tinha, a ilegitimidade da comparação entre elas, etc. Raymond Aron sublinhou o principal mérito deste empreendimento: o desejo de escapar a uma história centrada na Europa, ocidentalizante. "Spengler quis recusar o otimismo racionalista do Ocidente a partir de uma filosofia biológica e de uma concepção nietzschiana do heroísmo: Toynbee quis refutar o orgulho provinciano dos Ocidentais – [1961b, p. 46].
Michel Foucault ocupa um lugar excepcional na história por três razões.
Primeiro, porque é um dos maiores historiadores novos. Historiador da loucura, da clínica, do mundo do cárcere, da sexualidade, introduziu alguns dos novos objetos "provocadores" da história e pôs em evidência uma das grandes viragens da história ocidental, entre o fim da Idade Média e o século XIX: a segregação dos desviados.
Em seguida, porque fez o diagnóstico mais perspicaz sobre esta renovação de história. Faz a sua análise em quatro pontos:
1) "O questionar do documento': "A história tradicional dedicava-se a "memorizar" os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e a fazer falar os vestígios, que em si não são verbais ou, em silêncio, dizem algo de diferente que o que de fato dizem; nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que, onde se decifravam traços deixados pelos homens, onde se deixava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, há uma amálgama de elementos que têm de ser isolados, agrupados, tomados eficazes, postos em relação, integrados em conjuntos" [1969, pp. 13-15]. [pg. 104]
2) "A noção de descontinuidade adquire um papel de maior relevo nas disciplinas históricas" [ibid., p. 15].
3) O tema e a possibilidade de uma história global começam a perder consistência e assiste-se ao esboçar do desígnio, bem diferente, do que poderia chamar-se uma história geral, determinado "qual a forma de relação que pode ser legitimamente mente descrita entre as diferentes séries" [ibid., pp. 17-18].
4) Novos métodos. A nova história reencontra um certo número de problemas metodológicos, vários dos quais lhe são sem dúvida preexistentes, mas que se caracterizam agora, no seu conjunto. Podemos citar dentre eles: a constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos (corpus abertos ou fechados, finitos ou indefinidos), o estabelecer de um princípio de seleção (conforme queremos tratar exclusivamente a massa documental, ou praticamos uma aferição por processos de amostragem estatística ou tentamos determinar previamente os elementos representativos); a definição do nível de análise e dos elementos que para ele são pertinentes (no material estudado, podemos destacar indicações numéricas); as referências – explícitas ou não – a acontecimentos, instituições e práticas; as palavras empregadas com as suas regras de uso e os campos semânticos que desenham ou ainda a estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem; a especificação de um método de análise (tratamento quantitativo dos dados, decomposição segundo um certo número de traços assinaláveis cujas correlações se estudam, decifração interpretativa, análise de freqüências e distribuições); a delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material estudado (regiões, períodos, processos unitários): a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto (pode tratar-se de relações numéricas ou lógicas; de relações funcionais, causais ou analógicas; ou então relações entre significante e significado) [ibid., pp. 19-20].
Finalmente, Foucault propõe uma filosofia original da história, estritamente ligada à prática e à metodologia da disciplina histórica. Deixo a Paul Veyne a tarefa de a caracterizar: "Para Foucault, o interesse da história não está na elaboração de invariantes, quer filosóficas quer organizadas nas ciências humanas; [pg. 105] consiste em utilizar todo e qualquer tipo de invariantes para dissolver os racionalismos constantemente renascentes. A história é uma genealogia nietzschiana. Por isso, a história, segundo Foucault, passa por ser filosofia (o que não é verdadeiro, nem falso); está, no entanto, muito longe da vocação empirista tradicionalmente atribuída à história. "Que ninguém entre aqui, se não, é, nem passar a ser filósofo." História escrita em palavras abstratas, mais do que numa semântica ocasional, ainda carregada da cor local; história que parece reencontrar por toda a parte analogias parciais, esboçar tipologias, pois uma história escrita numa rede de palavras abstratas tem menos diversidade pitoresca que uma narração anedótica" [1978, p. 378]. "A história-genealogia de Foucault preenche inteiramente o programa da história tradicional; não põe de lado a sociedade, a economia, etc., mas estrutura esta matéria de outro modo: não os séculos, os povos e as civilizações, mas as práticas; as intrigas que ela conta são a história das práticas em que os homens viram verdades e reconheceram as suas lutas em torno dessas verdades. Esta história de novo tipo, esta "arquelogia", como lhe chamou o seu inventor, "desdobra-se à dimensão de uma história geral"; não se especializa na prática, o discurso, a parte oculta do iceberg, ou melhor, a parte oculta do discurso e da prática não é separável da parte emersa" [ibid., pp. 384-85]. "Toda a história é arqueologia por natureza e não por escolha: explicar e explicitar a história consiste em começar por apercebê-la na sua totalidade, conduzir os pretensos objetos naturais às práticas datadas e raras que os objetivam e explicar essas práticas, não a partir de um motor único, mas de todas as práticas vizinhas em que se apóiam" [ibid., p. 385].

4. A história como ciência: o ofício de historiador

A melhor prova de que a história é e deve ser uma ciência é o fato de precisar de técnicas, de métodos, e de ser ensinada. Lucien Febvre, restringindo, disse: "Qualifico a história de estudo cientificamente orientado e não de ciência" [1941]. Os teóricos [pg. 106] mais ortodoxos da história positivista, Langlois e Seignobos, exprimiram numa fórmula notável que constitui a profissão de fé fundamental do historiador, que é a base da ciência histórica: "Sem documentos não há história" [1898, ed. 1902, p. 2].
No entanto, a dificuldade começa aqui. Se o documento é mais fácil de definir e referenciar que o fato, histórico que nunca é dado tal e qual, mas construído, não são menores os problemas que se põem ao historiador.
Em primeiro lugar, só passa a ser documento na seqüência de uma investigação e de uma escolha – em geral, a investigação não é um assunto do próprio historiador mas de auxiliares que constituem reservas de documentos onde o historiador escolherá a sua documentação: arquivos, investigações arqueológicas, museus, bibliotecas, etc. As perdas, a escolha dos compiladores de documentos, a qualidade da documentação são condições objetivas, mas limitativas do ofício de historiador. Mais delicados são os problemas que se põem ao próprio historiador a partir desta documentação.
Antes. de mais nada, deve decidir-se sobre aquilo que ele irá considerar como documento e o que ele irá rejeitar. Durante muito tempo os historiadores pensaram que os verdadeiros documentos históricos eram os que esclareciam a parte da história dos homens, digna de ser conservada, transmitida e estudada: a história dos grandes acontecimentos (vida dos grandes homens, acontecimentos militares e diplomáticos, batalhas e tratados), a história política e institucional. A idéia de que o nascimento da história estava ligado ao aparecimento da escrita levava a privilegiar o documento escrito. Ninguém mais que Fustel de Coulanges privilegiou o texto como documento histórico. No primeiro capítulo da Monarchie franque, escreveu: "Leis, cartas, fórmulas, crônicas e histórias, todas estas categorias de documentos precisam ser lidas, sem omitir uma única... [O historiador] não tem outra ambição que analisar bem os fatos e compreendê-los com exatidão. Não pode procurá-los na imaginação ou na lógica; procura-os e atinge-os através da observação minuciosa dos textos, como o químico encontra os seus, em experiências minuciosamente conduzidas. A sua única habilidade consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e nada acrescentar ao [pg. 107] que neles não esteja contido. O melhor historiador é o que se mantém mais perto dos textos, que os interpreta com mais correção, que só escreve e pensa segundo eles" [1888, pp. 29, 30, 33].
Mas em 1862, numa lição na Universidade de Estrasburgo, o próprio Fustel declarara: "Quando os monumentos escritos faltam à história, ela deve pedir às línguas mortas os seus segredos e, através das suas formas e palavras, adivinhar os pensamentos dos homens que as falaram. A história deve prescrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação, todas essas velhas falsidades sob as quais ela deve descobrir alguma coisa de muito real, as crenças humanas. Onde o homem passou e deixou alguma marca da sua vida e inteligência, aí está a história" [1862, p. 245; cf. também Herrick, 1954].
Toda a renovação da história hoje em curso fez-se contra as idéias de Fustel em 1888. Não voltaremos a falar da necessidade de imaginação em história.
Quero todavia referir aqui o caráter multiforme da documentação histórica. Replicando, em 1949, a Fustel de Coulanges, Lucien Febvre afirmava: "A história fez-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem... Faz-se com tudo o que a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar o seu mel, quando faltam as flores habituais: com palavras, sinais, paisagens e telhas; com formas de campo e com más ervas; com eclipses da lua e arreios; com peritagens de pedras, feitas por geólogos e análises de espadas de metal, feitas por químicos. Em suma, com tudo o que, sendo próprio do homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade, gostos e maneiras de ser" [1949, p. 4281. Marc Bloch tinha também declarado: "A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele" [1941-42, p. 63].
Voltarei a falar da grande extensão da documentação histórica contemporânea, em especial da multiplicação da documentação audiovisual, o recurso ao documento iconográfico em sentido [pg. 108] próprio ou figurado, etc. Mas é útil insistir em dois aspectos particulares desta dimensão da investigação documental.
O primeiro diz respeito à arqueologia. O meu problema não é saber se ela é uma ciência auxiliar da história ou uma ciência independente. Apenas faço notar como o seu desenvolvimento renovou a história. Mal deu os seus primeiros passos, no século XVIII, ganhou logo para a história o vasto território da Pré-história e da Proto-história e renovou a história antiga. Intimamente ligada à história de arte e às técnicas, ela é uma peça-chave do alargamento da cultura histórica que se exprime na Enciclopédie. "É na França que os "antiquários" dedicam, pela primeira vez, ao documento arqueológico, objeto de arte, utensílio ou vestígio de construção, um interesse tão vivo como objetivo e desinteressado", diz P. M. Duval que destaca o papel de Peiresc, conselheiro no parlamento de Aix. Mas são os Ingleses que fundam a primeira sociedade científica, onde a arqueologia ocupa um lugar essencial, a Society of Antiquaries de Londres (1707). E é na Itália que começam as primeiras escavações, relativas à descoberta arqueológica do passado em Herculano (1738) e Pompéia (1748). Um francês e um alemão publicam as duas obras mais importantes do século XVIII sobre a introdução do documento arqueológico em história:. Winckelmann, com a História de arte antiga (Geschichte der Kunst des Alterturns, 1764) e o conde de Caylus, com o Recueil dantiquités égyptiennes, étrusques, grecques, romaines et gauloises (1752- 67). Na França, o Museu dos monumentos franceses, de que Alexandre Lenoir foi o primeiro conservador, em 1769, despertou o gosto pela arqueologia e contribuiu para ultrapassar a -visão negativa da Idade Média. Faço notar que a arqueologia foi um dos setores da ciência histórica que mais evoluiu nos últimos decênios: evolução do interesse do seu objeto e do monumento pelo local global, urbano ou rural, depois pela paisagem, arqueologia rural e industrial, métodos quantitativos, etc. [cf. Schnapp, 1980; Finley, 1971]. A arqueologia evoluiu também em direção à constituição de uma história da cultura material que é primeiro "a história dos grandes números e da maioria dos homens" [Pesez, 1978, p. 130; ver também o artigo "Cultura material", no volume XVI da Enciclopédia Einaudi], e que deu origem a uma obra-prima da historiografia contemporânea: [pg. 109] Civilisation matérielle et capitalisme, de Fernand Braudel [1967].
Faço também notar que a reflexão histórica se aplica hoje à ausência de documentos, aos silêncios da história. Michel de Certeau analisou com sutileza os "desvios" do historiador para as "zonas silenciosas" das quais dá como exemplo "a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido do camponês, a Occitânia, etc." [1974, p. 27]. Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos.
A história tornou-se científica ao fazer a crítica dos documentos a que se chama "fontes". Paul Veyne disse [1971] que a história devia ser "uma luta contra a ótica imposta pelas fontes", que "os verdadeiros problemas de epistemologia histórica são problemas de crítica", e que o centro de toda a reflexão sobre o conhecimento histórico deveria ser o seguinte: "O conhecimento histórico é o que dele fizeram as fontes" (p. 265-66). Veyne acrescenta aliás a esta constatação a nota que "não se pode improvisar historiadores... é preciso saber que questões devem ser levantadas, que problemáticas estão ultrapassadas; não se escreve história política, social ou religiosa com as opiniões respeitáveis, realistas ou avançadas que temos, em privado, sobre este assunto" [ibid.].
Os historiadores, sobretudo do século XVII ao XIX, aperfeiçoaram uma crítica de documentos que hoje está adquirida, continua a ser necessária, mas é insuficiente [cf. Salmon, 1969, ed. 1976, pp. 85-140]. Tradicionalmente, distingue-se entre uma crítica interna ou de autenticidade e uma crítica externa ou de credibilidade.
A crítica externa visa essencialmente encontrar o original e determinar se o documento examinado é verdadeiro ou falso. É uma atuação fundamental e exige sempre duas observações complementares. [pg. 110]
A primeira é que um documento "falso" também é um documento histórico e que pode ser um testemunho precioso da época em que foi forjado e do período durante o qual foi considerado autêntico e, como tal, utilizado.
A segunda é que um documento, nomeadamente um texto, pode sofrer, ao longo das épocas, manipulações aparentemente científicas que de fato obliteraram o original. Foi brilhantemente demonstrado que a carta de Epicuro e Heródoto conservada nas Vidas, Dogmas e Apotegmas de Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio, foi alterada por uma tradição secular que encheu a letra do texto de notas e correções que, voluntária ou involuntariamente, o sufocaram e deformaram com "uma leitura incompreensível, indiferente ou parcial" [Bollack e outros, 1971].
A crítica interna deve interpretar o significado dos documentos, avaliar a competência do seu autor, determinar a sua sinceridade, medir a exatidão do documento, controlá-lo através de outros testemunhos. Também aqui, e principalmente aqui, este programa é insuficiente.
Quer se trate de documentos conscientes ou inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à posteridade), as condições de produção do documento devem ser minuciosamente estudadas. As estruturas do poder de uma sociedade compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder de perpetuação deve ser reconhecido e desmontado pelo historiador. Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo o documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é "falso", avaliar a credibilidade do documento, mas também saber desmistificá-lo. Os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estarem sujeitos a tratamentos destinados a transformar a sua função de mentira em confissão de verdade [cf. o artigo "Documento/monumento", neste volume da Enciclopédia; e Immerwahr, 1960]. 1 Jean Bazin, ao analisar a produção de um conto histórico – a história do aparecimento do célebre rei de Segú (Mali), no início [pg. 111] do século XIX, feita por um literato muçulmano apaixonado pela história de Segú, em 1970 –, adverte que "na medida em que não se considera a si próprio ficção, um conto histórico é sempre uma armadilha: poderíamos acreditar com facilidade que o seu objeto lhe dá um sentido, que não ultrapassa aquilo que conta", enquanto que na realidade "a lição da história oculta outra, política ou ética, que, digamos assim, está por fazer" [Bazin, 1979, p. 446]. É necessário, com a ajuda de uma sociologia da produção narrativa, estudar as "condições de historização". Por um lado, deve conhecer-se o estatuto dos "fazedores" de história (esta observação é válida para os vários tipos de produção de documentos e para os próprios historiadores nos diversos tipos de sociedade) e, por outro, reconhecer os sinais do poder, pois "este gênero de conto derivaria de uma metafísica do poder". Quanto ao primeiro ponto, Jean Bazin nota que "entre o soberano e os seus súditos, os especialistas do conto ocupam uma espécie de posição intermediária de ilusória neutralidade: eles são constantemente solicitados a fabricar a imagem que os seus súditos têm do soberano, tal como a que este tem daqueles" [ibid., p. 456]. Jean Bazin aproxima, assim, a sua análise da efetuada por Louis Marin apoiada no Projet de l'histoire de Louis XIV, com o qual Pellisson-Fontanier se esforçava por obter o cargo de historiador oficial. "O rei precisa do historiador pois o poder político só pode atingir a plenitude, o absoluto, com um certo uso da força que é o ponto de aplicação da força do poder narrativo" [Marin, 1979, p. 26; cf. Marin, 1978].
A atualização dos métodos que fazem da história um ofício e uma ciência foi longa e contínua. No Ocidente, conheceu paragens, atrasos e acelerações, por vezes recuos; não avançou em todos os seus aspectos no mesmo ritmo, nem sempre deu o mesmo conteúdo às palavras pelas quais procurava definir os seus objetivos, mesmo o que é aparentemente mais "objetivo", o da verdade. Seguirei as grandes linhas do seu desenvolvimento, do duplo ponto de vista das concepções e dos métodos e, por outro lado, dos instrumentos de trabalho. Os momentos essenciais parecem-me ser o período greco-romano do século V ao I a.C., que inventa o "discurso histórico", o conceito de testemunho, a lógica da história, e funda a história na verdade; o século IV, em que o Cristianismo ilumina a idéia de acaso cego, dá um sentido [pg. 112] à história, difunde um conceito de tempo e uma periodização da história; o Renascimento começa por esboçar uma crítica dos documentos, fundada na filosofia e acaba na concepção de uma história perfeita, o século XVII, com os Bolandistas e os Beneditinos de S. Mauro, lança as bases da erudição moderna; o século XVIII cria as primeiras instituições consagradas à história e alarga o campo das curiosidades históricas; o século XIX afina os métodos de erudição, constitui as bases da documentação histórica e vê a história em tudo; o século XX, a partir dos anos trinta, conhece ao mesmo tempo uma crise e uma moda da história, uma renovação e um alargamento considerável do território do historiador, uma revolução documental. A última parte deste trabalho será consagrada a esta fase recente da ciência histórica. Seria aliás errado pensar que as longas fases de tempo, em que a história não deu saltos qualitativos, não conheceram o ofício de historiador, como Bernard Guenée o demonstrou brilhantemente em relação à Idade Média [1980; 1977].
Com Heródoto, o que conta na narração histórica não é a importância do testemunho. Para ele, o testemunho por excelência é o testemunho pessoal, aquele em que o historiador pode dizer: vi e ouvi. Isto é especialmente verdade, na parte da sua investigação dedicada aos bárbaros cujo país percorreu durante as suas viagens [cf. Hartog, 1980]. E também o é quanto à narração das guerras medas, acontecimento da geração que o precedeu, cujo testemunho recolhe diretamente, por ouvir dizer. Esta primazia dada ao testemunho oral e vivido manter-se-á em história, esbater-se-á mais ou menos quando a crítica dos documentos escritos, pertencentes a um passado longínquo, passar a um primeiro plano, mas conhecerá importantes ressurgências. Assim, no século XIII, os membros de novas ordens mendicantes, Dominicanos e Franciscanos, privilegiam, no seu desejo de aderir à nova sociedade, o testemunho oral pessoal, contemporâneo ou muito recente, preferindo inserir nos seus sermões exempla cuja matéria pertence mais à sua experiência (audivi) que à sua ciência libresca (legimus). As Memórias tornaram-se pouco a pouco elementos paralelos à história, mais do que história propriamente dita, pois que a complacência dos autores perante si mesmos, a procura de efeitos literários, o gosto pela pura narração desviam-nos da história e transformam-se num material [pg. 113] – relativamente suspeito – da história: "Agrupar historiadores e memorialistas só é concebível numa perspectiva puramente literária", notaram Jean Ehrard e Guy Palmade [1964, p. 7], que retiraram o gênero memorialístico do seu excelente estudo e recolha de textos sobre a História. O testemunho tende a reentrar no domínio da história mas levanta problemas ao historiador com o desenvolvimento dos media, a evolução do jornalismo, o nascimento da "história imediata", o "regresso do acontecimento" [cf. Lacouture, 1978; Nora, 1974].
Arnaldo Momigliano [1972, ed. 1975, pp. 13-15] sublinhou que os "grandes" historiadores da Antiguidade greco-romana trataram, exclusivamente ou de preferência, do passado recente. Depois de Heródoto, Tucídides escreveu a história da Guerra do Peloponeso, acontecimento contemporâneo; Xenofonte tratou a hegemonia de Esparta e de Tebas, de que foi testemunha; Políbio dedicou a parte essencial das suas Histórias ao período que vai da segunda guerra púnica à sua época. Salústio e Lívio fizeram o mesmo; Tácito examinou o século anterior ao seu e Ammiano Marcellino interessou-se sobretudo pela segunda metade do século IV. A partir do século V a.C., os historiadores antigos conseguiram recolher uma boa documentação sobre o passado, o que não os impediu de se interessarem preferencialmente pelos acontecimentos contemporâneos ou recentes.
A prioridade dada aos testemunhos vividos ou recolhidos diretamente não impediu os historiadores antigos de se deterem na crítica destes testemunhos. Assim, Tucídides diz: "Quanto à narração dos acontecimentos da guerra, pensei não dever escrevê-los confiando em informações de qualquer um nem nas minhas impressões pessoais; falo apenas por testemunhos oculares ou depois de uma crítica, tão apurada e completa quanto possível das minhas informações. Isso não se faz sem dificuldades, pois em cada acontecimento, os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um. A minha história terá menos encantos que o mito; mas quem quiser pôr a claro a história do passado e reconhecer no futuro as semelhanças e analogias da condição humana, basta-me que a considere útil. Esta história é uma conquista definitiva e não uma obra aparatosa para um auditório de momento" [A Guerra do Peloponeso, I, p. 22]. [pg. 114]
Com Políbio, o objetivo do historiador ultrapassa uma lógica da história. É constituído pela investigação das causas. Preocupado com o método, Políbio consagra todo o livro XII das Histórias a procurar definir o trabalho do historiador, através da crítica de Timeu. Tinha definido previamente o seu objetivo. Em vez de uma história monográfica, escrever uma história geral, sintética e comparativa: "Ninguém, pelo menos que eu saiba, tentou verificar a estrutura geral e total dos fatos passados... Só partindo da ligação e da comparação dos fatos entre si, das suas semelhanças e diferenças, podemos então, após o seu exame, tirar proveito e ter prazer com a história" [I, 4]. E, acima de tudo, a afirmação essencial: "Quando se escreve ou lê história, deve dar-se menos importância à narração dos fatos em si, que ao que precedeu, acompanhou e se seguiu aos acontecimentos; porque, se se tirar à história o porquê, o como, a finalidade da existência de um ato, ou a sua lógica, o que resta não é mais que espetáculo e não pode tornar-se objeto de estudo; distrai por momentos, mas não tem aplicação nenhuma no futuro... Afirmo que os elementos mais necessários à história são as conseqüências, as circunstâncias que rodeiam os fatos, e principalmente, as suas causas" [ibid., III, 31-32]. Dito isto, não devemos esquecer-nos que Políbio coloca no primeiro plano da causalidade histórica a noção de Fortuna, que o seu principal critério para avaliar um testemunho ou um destino é de ordem moral e que os discursos ocupam um grande espaço na sua obra [cf. Pédech, 1964].
Os historiadores antigos basearam a história na verdade. "E próprio da história começar por contar a história com verdade", assegura Políbio. E Cícero dá definições que continuam válidas durante a Idade Média e o Renascimento. Principalmente esta: "Nam quis nescit primam esse historiae legem, ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid veri non audeat?" 'Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda, ousar dizer toda a verdade?' [De oratore, II, 15, 62]. E na célebre apóstrofe em que reclama, para o orador, o privilégio de ser o melhor intérprete da história, o que assegura a imortalidade e onde lança a definição da história "mestra da vida" (magistra vitae), esquecemo-nos muitas vezes que, neste texto em geral não citado na íntegra, Cícero chama à história "luz da verdade" [pg. 115] ("Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur?" [ibid., 9, 36]).
Embora Momigliano tenha insistido com razão no gosto dos historiadores antigos pela história nova, é um exagero a afirmação de Collingwood [1932] que "o seu método estava de tal modo ligado à tradição oral, que apenas tinham conseguido escrever a história da geração imediatamente precedente". Tácito, por exemplo, no Diálogo dos Oradores XV, faz o elogio dos modernos – o que vai contra a tradição romana – mas mostra o seu conhecimento e domínio cronológico do passado; de um passado que, para falar verdade, ele lineariza e aproxima do presente: "Quando ouço falar de antigos, penso em pessoas de um passado longínquo, muito anteriores a nós, e perante os meus olhos passam Ulisses e Nestor, cuja época se situa mil e trezentos anos antes do nosso século. Vós, pelo contrário, citais Demóstenes e Hipérides que, segundo me consta, foram contemporâneos de Filipe e Alexandre, a quem ambos sobreviveram. Acontece que não passaram mais de trezentos anos entre a nossa época e a de Demóstenes. Este intervalo, comparado com a fraqueza dos nossos corpos, pode parecer-nos longo; comparado com a verdadeira duração dos séculos e a consideração do tempo sem limites, é muito breve e Demóstenes está perto de nós. Se, de fato, como Cícero escreve no Hortensius, o verdadeiro ano é aquele em que se reproduz exatamente a posição atual do céu e dos astros, compreendendo esse ano doze mil novecentos e cinqüenta e quatro divisões a que chamamos anos, acontece que o nosso Demóstenes, que colocais no passado e considerais velho e antigo, viveu no mesmo ano e, direi mesmo, no mesmo mês que nós" [Dialogus de oratoribus, 16, 5-7].
Mais que a finalidade dada à história, parece-nos importante na historiografia cristã, do ponto de vista dos instrumentos o do método do historiador, o seu impacto sobre a cronologia. Essa sofreu uma primeira elaboração por historiadores antigos – que, de modo geral, não figuram entre os grandes – que os historiadores cristãos utilizaram. Diodoro da Sicília (século I a.C.) estabeleceu uma concorrência entre os anos consulares e as Olimpíadas. Trogo Pompeu, conhecido através de um resumo de [pg. 116] Justino, defendeu o tema dos quatro impérios sucessivos. Mas os primeiros historiadores cristãos tiveram influência decisiva no trabalho histórico e no enquadramento cronológico da história.
Eusébio de Cesaréia (início do século IV), autor de uma Crônica e depois de uma História eclesiástica, foi "o primeiro historiador antigo a manifestar a mesma atenção que um historiador moderno à citação fiel do material copiado e à identificação correta das suas fontes" [Chesnut, 1978, p. 245]. Esta utilização crítica dos documentos permitiu a Eusébio e aos seus sucessores caminharem com segurança, para além da memória dos testemunhos vivos. Eusébio, "cuja obra é uma tentativa paciente, escrupulosa e profundamente humana, para sistematizar as relações entre o Cristianismo e o século " [Sirinelli, 1961, p. 495], não procurou privilegiar uma cronologia especificamente cristã, e a história hebraico-cristã que faz começar com Moisés foi para ele apenas uma história entre outras [ibid., pp. 59-61]; o "seu projeto um pouco ambíguo de uma história sincrônica situa-se entre uma visão ecumênica e um mero aperfeiçoamento da erudição" [ibid., p. 63].
Os historiadores cristãos retomaram do Antigo Testamento (sonho de Daniel [Daniel, 7]) e de Justino, o tema da sucessão dos quatro impérios: babilônico, persa, macedônico e romano. Eusébio, cuja crônica foi retomada e atualizada por S. Jerônimo e Santo Agostinho, expõe uma periodização da história segundo a história sagrada, que distinguia seis idades (até Noé, até Abraão, até David, até o cativeiro da Babilônia, até Cristo, depois de Cristo) e que Santo Isidoro de Sevilha no Chronicon (início do século VII) e Beda na Opera de temporibus (início do século VII) tentaram calcular. Os problemas de datação, de cronologia, são fundamentais para o historiador. Os historiadores e as sociedades antigas também os tinham considerado básicos. As listas reais da Babilônia e do Egito tinham fornecido os primeiros quadros cronológicos, o cômputo anual do reino tinha-se iniciado em 2000 a.C., na Babilônia. Em 776 começa o cômputo por Olimpíadas, em 754 a lista dos éforos de Espana, em 686-685 a dos arcontes epônimos de Atenas, em 508 o cômputo consular de Roma. Em 45 a.C., César tinha instituído em Roma o calendário juliano. O cômputo eclesiástico cristão refere-se à [pg. 117] datação da festa da Páscoa. As hesitações quanto à fixação do início da cronologia e do início do ano duraram muito tempo. As atas do Concilio de Nicéia são datadas quer com o nome dos cônsules, quer dos anos da era dos Seleucidas (312-311 a.C.). Os cristãos latinos adotaram inicialmente, em geral, a era de Diocleciano ou dos mártires (284); mas, no século VI, o monge romano Dinis, o Pequeno, propôs-se adotar a era da Encarnação, fixando o início da cronologia na data do nascimento de Cristo. Este hábito só foi definitivamente adotado no século XI. Mas todas as investigações sobre o conceito eclesiástico cuja expressão mais notável foi o tratado De temporum ratione de Beda (725), apesar das suas hesitações e falhas, constituíram uma etapa importante em direção ao domínio do tempo [cf. o artigo "calendário"; Cordoliani, 1961; Guenée, 1980, pp. 147-65].
Bernard Guenée mostrou como o Ocidente medieval teve historiadores apostados em reconstruir o seu passado e detentores de uma lúcida erudição. Estes historiadores que, até o século XIII, foram sobretudo monges, começaram por beneficiar de um acréscimo de documentação. Vimos que os arquivos são um fenômeno muito antigo, mas a Idade Média acumulou documentos nos mosteiros, igrejas e administração real e multiplicou as bibliotecas. Constituíram-se dossiês, generalizou-se o sistema de citações, que referiam com precisão livro e capítulo, por influência do monge Graciano, autor de uma compilação de direito canônico, o Decretam, em Bolonha (c. 1140) e do teólogo Píer Lombardo, bispo de Paris, morto em 1160. Pode considerar-se o final do século XI e a maior parte do XII como "o tempo de uma erudição triunfante". A escolástica e a universidade, indiferentes ou mesmo hostis à história, que não foi ensinada [Borst, 1969], denotaram um certo retrocesso da cultura histórica. Todavia, "um vasto público laico continuou a amar a história"; no fim da Idade Média estes amadores – cavaleiros e mercadores – multiplicaram-se e o gosto pela história nacional passou ao primeiro plano, enquanto que se afirmavam os estados e as nações. Mas o lugar da história no saber era modesto, pois que, até o século XV, não era considerada uma ciência auxiliar da moral, do direito e da teologia [cf. Lammers, 1965], embora Hugo de S. [pg. 118] Victor, na primeira metade do século XII, tenha dito num texto relevante (De tribus maximis circumstancüs gestorum) que ele era fundamentum omnis doctrinae 'o fundamento de toda a ciência'. Mas a Idade Média não representa um hiato na evolução da ciência histórica; pelo contrário, conheceu "a continuidade do esforço histórico" [Guenée, 1980, p. 367].
Os historiadores do Renascimento prestaram à ciência histórica alguns serviços eminentes: fizeram a crítica dos documentos com a ajuda da filologia; começaram a "laicizar" a história e a eliminar-lhe os mitos e as lendas; lançaram as bases das ciências auxiliares da história e estreitaram a aliança da história com a erudição.
Tem-se feito remontar a Lourenzo Valla o início da crítica científica de textos; na sua De falso credita et ementita Constantini donatione declaratio (1440), escrita a pedido do rei aragonês de Nápoles, em luta com a Santa Sé, prova que o texto é falso, pois a linguagem usada não se pode identificar com a do século IV, mas data de quatro ou cinco séculos mais tarde: assim, a pretensão do papa aos Estados da Igreja, fundada sobre esta pretensa doação de Constantino ao papa Silvestre, baseava-se num falso carolíngeo. "Assim nasce a história, como filologia, e também como consciência crítica de si e dos outros" [Garin, 1951, p. 115]. Valia aplicou a crítica de textos aos historiadores da Antiguidade, Lívio, Heródoto, Tucídides, Salústio e também o Novo Testamento, nas suas Adnotationes, que Erasmo prefaciou na edição de Paris de 1505. Mas a sua Historiae Ferdinandi regis Aragoniae, pai do seu protetor, terminada em 1445 e editada em Paris em 1521, não passa de uma série de acontecimentos relativos à vida privada do soberano [cf. Gaeta, 1955]. Se Biondo é o primeiro erudito dos historiadores humanistas, Valia é o primeiro crítico.
Depois dos trabalhos de Bernard Guenée talvez não seja possível manter uma afirmação tão radical. Biondo, nos seus manuais sobre Roma antiga (Roma instaurata, 1446, publicada 1 em 1471; Roma triumphans, 1459, publicada em 1472) e na sua Romanorwn decades, uma história da Idade Média de 412 a 1440, foi um grande recolhedor de fontes, mas não há nas suas obras nem crítica de fontes, nem sentido da história. Os documentos [pg. 119] são publicados uns ao lado dos outros; quando muito, nas Decades, a ordem é cronológica; mas Biondo, secretário do Papa, foi o primeiro a inserir a arqueologia na documentação histórica.
No século XV, os historiadores humanistas inauguram uma ciência histórica profana, sem fábulas nem intervenções sobrenaturais. O grande nome é Leonardo Bruni, chanceler de Florença, cuja Historiae florentini populi (até 1404) ignora as lendas sobre a fundação da cidade e nunca fala da intervenção da Providência. "Com ele se inicia o caminho para uma explicação natural em história" [Fueter, 1911, I, p. 20]. Hans Baron [1932] pode falar da Profanisierung da história.
A recusa dos mitos pseudo-históricos deu origem a uma longa polêmica sobre as pretensas origens troianas dos Francos. Cada um por sua vez, Etienne Pasquier nas Recherches de Ia France (o primeiro livro é de 1560; dez livros na edição póstuma de 1621), François Hotman na sua Franco-Gallia (1573), Claude Fauchet nas Antiquités gauloises et françoises jusqu'à Clovis (1599) e Lancelot-Voisin de la Popelinière, no Dessein de l'Histoire nouvelle des François (1599) põem em dúvida a origem troiana, enquanto Hotman defende de modo convincente a origem germânica dos Francos.
É preciso sublinhar nestes progressos do método histórico o papel da Reforma. Suscitando polêmicas sobre a história do Cristianismo e livres da tradição eclesiástica autoritária, os reformistas impulsionaram a evolução da ciência histórica.
Por fim, os historiadores do século XVI, sobretudo os franceses da segunda metade do século, retomaram a flâmula da erudição dos humanistas italianos do Quatrocento. Guillaume Budé dá uma contribuição importante para a numismática, com o seu tratado sobre moedas romanas: De asse et partibus eius (1514). Giuseppe Giusto Scaligero partiu da cronologia em De emendatione temporum (1583). O protestante Isaac Casaubon, "a fênix dos eruditos", replicou nos "Annales ecclesiastici" do catolicíssimo cardeal César Baronio (1588-1607) com as suas Exercitationes (1612); também o flamengo Justo Lípsio enriquece a erudição histórica, nomeadamente nos domínios filológico e numismático. Os dicionários multiplicam-se: o Thesaurus [pg. 120] linguae latina de Robert Estienne (1531) e o Thesaurus grecae linguae do seu filho Henri (1572). O flamengo Jan Gruter publicou o primeiro Corpus inscriptionum antiquarum, cujo índice Scaligero organizou. Não é necessário lembrar que o século XVI dá à periodização histórica a noção de século (cf. o artigo "Calendário", nesta Enciclopédia).
Enquanto que os humanistas – imitando a Antiguidade –, não obstante os progressos de erudição, tinham mantido a história no campo da literatura, alguns dos historiadores do século XVI e início do XVII distinguem-se explicitamente dos homens de letras. Muitos são os juristas (Boden, Vignier, Hotman) e estes "sábios de saias" anunciam a história dos filósofos do século XVIII [Hupert, 1970]. Donald Kelly mostrou [1964] que a história das origens e natureza do feudalismo não data de Montesquieu, mas dos debates entre os eruditos do século XVI.
A história nova que os grandes humanistas do século XVI, princípio de XVII, quiseram promover foi asperamente combatida na primeira metade do século XVII e alinhada entre as manifestações de libertinagem – a conseqüência desse fato foi a crescente separação entre erudição e história (no sentido de historiografia) notada por Paul Hazard [1935] e George Hupert [1970]. A erudição fez progressos durante o século de Luís XIV, enquanto que a história conhecia um profundo eclipse.
"Os sábios do século XVI desinteressaram-se das grandes questões da história geral. Compilam glossários, como esse grande legista, que foi Du Cange (1610-88). Escrevem vidas de santos, como Mabillon. Publicam fontes de história medieval, como Baluze (1630-1718), estudam as moedas como Vaillant (1632-1706). Em resumo, tendem mais para ás investigações de antiquários que de historiador" [ibid., p. 178].
Houve duas iniciativas que se revestiram de especial importância. Situam-se no quadro de uma investigação coletiva: "A grande novidade é que, no reinado de Luís XIV, se começou a fazer erudição coletivamente" [Lefebvre, 1945-46, p. 101), que é, de fato, uma das condições exigidas pela erudição.
A primeira é obra dos Jesuítas, cujo iniciador foi o padre Héribert Roswey (Rosweyde), morto em Antuérpia em 1629, [pg. 121] que tinha feito uma espécie de repertório das vidas dos santos, manuscritos conservados nas bibliotecas belgas. Com base nas suas notas, o padre Jean Bolland levou à aprovação dos seus superiores o plano de uma publicação de vidas de santos e documentos hagiográficos, apresentados pela ordem do calendário. Assim nasceu um grupo de jesuítas especializados em hagiografia a que se deu o nome de Bolandistas e que publicaram, em 1643, os dois primeiros volumes do mês de janeiro das "Acta Sanctorum". Os Bolandistas ainda hoje estão em plena atividade num domínio que continua em primeiro plano na erudição e na investigação histórica. Em 1675, um Bolandista, o padre Daniel van Papenbroeck (Papebroch) publicou, no início do tomo II das "Acta Sanctorum", uma dissertação "sobre o discernimento do verdadeiro e do falso em velhos pergaminhos". Papenbroeck não foi feliz na aplicação do seu método. Coube a um beniditino francês, Dom Mabillon, ser o verdadeiro fundador da diplomática.
Jean Mabillon pertencia a outro grupo que dava à erudição as suas cartas de nobreza, o dos beneditinos da congregação reformada de S. Mauro, que nessa altura fundaram Saint-Germainde-Prés, em Paris, "a cidadela da erudição francesa", tendo Luc d'Achéry redigido, em 1648, o seu programa de trabalho. O seu campo abrange os padres da Igreja grega e latina, a história da Igreja, a história da ordem beneditina. Em 1681, Mabillon, para refutar Papenbroeck, publicou o De re diplomatica, que estabelecia regras de diplomática (estudo dos "diplomas") e critérios para discernir a autenticidade de atos públicos ou privados. Marc Bloch, não sem exagero, vê em "1681, o ano da publicação do De re diplòmatica, uma grande data na história do espírito humano" [1941-42, p. 77]. A obra ensina que a concordância de duas fontes independentes estabelece a verdade e, inspirando-se em Descartes, aplica o princípio "de fazer decomposições tão inteiras e revisões tão gerais" que se ficasse "seguro de nada omitir" [Tessier, 1961, p. 641]. Contam-se duas anedotas que mostram até que ponto, entre os séculos XVII e XVIII, se tinha tornado profundo o divórcio entre a história e a erudição. O padre Daniel, historiógrafo oficial de Luíz XIV, a quem Fueter [1911] chama "um consciencioso trabalhador", tendo-se proposto escrever a sua Histoire de la milice française (1721), [pg. 122] foi levado à biblioteca real onde lhe mostraram mil e duzentas obras que lhe poderiam ser úteis. Consultou algumas durante cerca de uma hora ao fim da qual declarou "que todos esses livros eram papeladas inúteis, de que não precisava para escrever a sua história". O abade de Vertot tinha acabado uma obra sobre o cerco de Rodes pelos Turcos. Trouxeram-lhe novos documentos. Recusou-os, dizendo: "O meu cerco está feito" [Ehrard e Palmade, 1964, p. 28].
Este trabalho de erudição prossegue e alarga-se ao século XVIII. O trabalho histórico, que tinha abrandado, despertou, nomeadamente na altura do debate sobre as origens – germânicas ou romanas – da sociedade e das instituições francesas. Os historiadores empenham-se na procura de causas, mas aliam a preocupação de erudição a essa reflexão intelectual. Esta aliança justifica – embora cometa uma certa injustiça para com o século XVI – a opinião de Collingwood: "No sentido estrito em que Gibbon e Mommsen são historiadores, não existem historiadores li antes do século XVIII", isto é, autores de um "estudo crítico, e ao mesmo tempo, construtivo, cujo campo é formado integralmente por todo o passado humano e cujo método consiste em reconstruir o passado a partir de documentos escritos ou não-escritos, analisados e interpretados com espírito crítico" [citado em Palmade, 1968, p. 432].
Por sua vez, Marrou sublinhou que "o valor de Gibbon [célebre autor inglês da History of the Declin and Fall of the Roman Empire, 1776-88] consiste precisamente em ter realizado a síntese entre a contribuição da erudição clássica, tal como se foi pouco a pouco formulando, desde os primeros humanistas até os beneditinos de São Mauro e seus êmulos, e o sentido dos grandes problemas, vistos de cima e com amplitude, como poderia ter desenvolvido na sua convivência com os filósofos" [1961, p. 27].
Com o racionalismo filosófico – que, como já se viu, não teve felizes conseqüências na história –, a rejeição definitiva da Providência e a procura de causas naturais, os horizontes da história alargam-se a todos os aspectos da sociedade e a todas as civilizações. Fénelon, no Projet d'un traité sur l'histoire (1714), pretende que o historiador faça "o estudo dos costumes e do [pg. 123] estado de todos os corpos da natureza" e que mostre a verdade, a originalidade – do que os pintores chamam os costumes – ao mesmo tempo que as mudanças: "cada nação tem os seus costumes diferentes daqueles dos povos vizinhos, cada povo muda com freqüência os seus próprios costumes" [citado em Palmade, 1968, p. 432]. Voltaire, nas suas Nouvelles considérations sur l'histoire (1744), pretendera uma "história econômica, demográfica, das técnicas e dos costumes e não só política, militar e diplomática. Uma história dos homens, de todos os homens e não só dos reis e dos grandes. Uma história das estruturas e não só dos acontecimentos. História em movimento, história das evoluções e das transformações e não história estática, história-quadro. História explicativa e não apenas história narrativa, descritiva – ou dogmática. Enfim, história oral..." [Le Goff, 1978, p. 223].
Ao serviço deste programa – ou de programas menos ambiciosos – o historiador põe, daqui em diante, uma preocupação de erudição que procura satisfazer empreendimentos cada vez mais numerosos e, o que é novo, das instituições. Neste século das academias, e das sociétés savantes, a história e o que lhe diz respeito não foram esquecidos.
No plano das instituições escolherei a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres da França. A "pequena academia", fundada por Colbert em 1663, só tem quatro membros e a sua missão é puramente utilitária: redigir as divisas das medalhas e as inscrições dos monumentos que perpetuarão a glória do Rei-Sol. Em 1701 os seus efetivos elevaram-se para quarenta e tornou-se autônoma. Foi rebatizada com o nome atual em 1716, e a partir de 1717 publicou regularmente memórias dedicadas à história, arqueologia e lingüística e empreende a edição do Recueil des ordonnances des rois de France.
No plano dos instrumentos de trabalho, citarei a Art de vérifier les dates, cuja 1º edição foi publicada pelos Mauristas em 1750, a constituição dos arquivos reais em Turim entre 1717-20, cujos regulamentos são a melhor expressão da arquivística da época e a impressão do catálogo da Biblioteca Real de Paris (1739-53).
Como representante da atividade erudita ao serviço da história, citarei Lodovico Antonio Muratori, nascido em 1672, [pg. 124] bibliotecário da Ambrosiana de Milão em 1694, bibliotecário e arquivista do duque de Este em Modena em 1700, morto em 1750. Publicou entre 1744 e 1749 os Annali d'Italia, precedidos em 1738-50 das Antiquitates italiae Medii Aevi. Manteve relações nomeadamente com Leibniz [cf. Campori, 1892].
Muratori teve como modelo Mabillon, mas, como laico que era, liberta a história dos milagres e dos presságios, à maneira dos humanistas do Renascimento. Leva mais longe que o maurista a crítica das fontes mas, também ele, não é um verdadeiro historiador. Não há elaboração histórica da documentação e a história reduz-se à história política. O que diz respeito às instituições, costumes e mentalidades foi rejeitado pelas Antiquitates: "Os seus Annali... deveriam antes chamar-se estudos para a história italiana cronologicamente ordenada, do que obra histórica" [Fueter, 1911, p. 384].
Do ponto de vista que aqui me ocupa, o século XIX é decisivo porque atualiza definitivamente o método crítico dos documentos que interessa ao historiador desde o Renascimento, difunde este método e os seus resultados através do ensino e das publicações e une história e erudição.
Sobre o equipamento erudito da história, tomarei como exemplo a França. A Revolução e o Império criam os Arquivos Nacionais que, colocados sob a autoridade do Ministro do Interior em 1800, passam para a do Ministro da Instrução Pública em 1883. A Restauração criou a École de Chartres em 1821, para formar um corpo especializado de arquivistas que deveriam ser mais historiadores que administradores, aos quais foi reservada a partir de 1850 a direção dos Arquivos departamentais. A investigação arqueológica das principais estâncias da Antiguidade foi favorecida pela criação das Escolas de Atenas (1846) e , de Roma (1874) e o conjunto da erudição histórica pela fundação da École Pratique des Hautes Études (1868). Em 1804 nasceu em Paris a Academia Celta para estudar o passado nacional francês. Em 1814, transformou-se em Sociedade dos Antiquários da França. Em 1834 o historiador Guizot, então ministro, institui um Comitê de Trabalhos Históricos encarregado de publicar uma coleção de Documentos Inéditos sobre a história da França. Em 1835 a Sociedade Francesa de Arqueologia, fundada em [pg. 125] 1833, tem o seu primeiro congresso. A Sociedade da História da França nasce em 1835. Daqui em diante existe uma "armadura" defensora da história: cadeiras de faculdade, centros universitários, sociedades culturais, coleções de documentos, bibliotecas, revistas. Depois dos monges da Idade Média, os humanistas e legistas do Renascimento, os filósofos do século XVIII, os professores burgueses instalaram a história na Europa e no seu prolongamento, os Estados Unidos da América, onde, em 1800, se fundou a Library of Congress, em Washington.
O movimento era europeu e fortemente tingido de espírito nacional, senão de nacionalismo. Um sintoma evidente foi a criação imediata de uma revista (nacional) na maior parte dos países europeus. Na Dinamarca, a "Historisk Tidsskrift" (1840), na Itália, o "Archivio Storico Italiano" (1842), seguido da "Rivista Storica Italiana" (1884); na Alemanha, "Historische Zeitschrift" (1859); na Hungria, "Századok" (1867); na Noruega, "Historisk Tidsskriff ' (1881); na Inglaterra, "English Historical Review" (1886); nos Países Baixos, "Tijdschrift voor Geischiedenis" (1886); na Polônia, "Kwartalnik Historyczny" (1887); e, nos Estados Unidos, "The American Historical Review" (1895).
Mas o grande centro, o farol, o modelo da história erudita, no século XIX, foi a Prússia. Não só a erudição criou aí instituições e coleções de prestígio, tais como os "Monumenta Germaniae Historiae" (a partir de 1826), como também a produção histórica aliou, melhor que em qualquer outro lado, a erudição e o ensino, sob a forma de seminário e assegurou a continuidade do esforço de erudição e de investigação históricas: surgem alguns grandes nomes: o germano-dinamarquês Niebuhr, com a sua História romana (Rõmische Geschichte, 1811-32); o erudito Waitz, aluno de Ranke, autor de uma História da constituição alemã (Deutsche Verfassungsgeschichte, 1844-78) e diretor dos "Monumenta Germaniae Historica", desde 1875; Mommsen, que dominou a história antiga, onde utilizou a epigrafia, na história política e jurídica (Rõmische Geschichte, 1854-57); Droysen, fundador da escola prussiana, especialista em história grega e autor de um manual de historiografia: Sumário de história (Grundriss der Historik, escrito em 1858 e publicado em 1868); a escola dita "nacional-liberal" com Sybel, fundador da "Historische [pg. 126] Zeitschrift", Haüsser, autor de uma História da Alemanha (Deutsche Geschichte,185457), no século XIX, Treitschke, etc. O maior nome da escolha histórica alemã do século XIX é Ranke, cujo papel ideológico no historicismo já analisamos. Recordo-o aqui como fundador, em 1840, do primeiro seminário de história em que professores e alunos se entregavam em conjunto à crítica de textos.
A erudição alemã tinha exercido uma forte sedução sobre os historiadores europeus do século XIX, incluindo os franceses, que não estavam longe de pensar que a guerra de 1870-1871 tinha sido ganha pelos mestres prussianos e os eruditos alemães. Um Monod, um Jullian, um Seignobos, por exemplo, completaram a sua formação em seminários de Além-Reno. Marc Bloch deveria defrontar-se também com a erudição alemã, em Leipzig. Um aluno de Ranke, Godefroide Kurth, fundou na Universidade de Liège um seminário, onde o grande historiador belga Henri Pirenne, que iria contribuir, no século XX, para fundar a história econômica, fez a sua aprendizagem.
No entanto, sobretudo fora da Alemanha, os perigos da erudição germânica tomaram-se evidentes, desde o fim do século XIX. Camille Jullian constatou em 1896: "Na Alemanha, a história reparte-se e desfaz-se", por vezes "perde-se pouco a pouco numa espécie de escolástica filológica: os grandes nomes desapareceram um atrás do outro; tememos ver juntarem-se os epígonos de Alexandre com os netos de Carlos Magno" [citado em Ehrard e Palmade, 1964, p. 77]. O historicismo erudito alemão iria degenerar, na Alemanha e na Europa, em duas tendências opostas: uma filosofia da história idealista, um ideal erudito positivista que fugia das idéias e bania da história a investigação das causas.
Caberá a dois universitários franceses dar a esta história positivista o seu estatuto: a Introduction aux études historiques [1898] de Langlois e Seignobos que, definindo-se como "breviário dos novos métodos", ia retomar simultaneamente os benefícios de uma erudição progressista e necessária e os germes de uma esterilização do espírito e dos métodos da história.
O balanço positivo desta história erudita do século XIX foi feito por Marc Bloch na Apologie pour l'histoire: "O consciencioso [pg. 127] esforço do século XIX" permitiu que as "técnicas da crítica" deixassem de ser monopólio "de um punhado de eruditos, exegetas e curiosos" e "o historiador foi levado a voltar à mesa de trabalho". É preciso fazer triunfar "os mais elementares preceitos de uma moral da inteligência" e "as forças da razão" que operam "nas nossas humildes notas, [nas] nossas minuciosas referências, que tão brilhantes espíritos contemporâneos desprezam, sem as compreender" [1941-42, p. 78; cf. também Ehrard e Palmade, 1964, p. 78].
Assim, firmemente apoiada nas ciências auxiliares (arqueologia, numismática, sigilografia, filologia, epigrafia, papirologia, diplomática, onomástica, genealogia, heráldica), a história instalou-se no trono da erudição.

5. A história hoje

Sobre a história contemporânea gostaria de apresentar um esboço da sua renovação enquanto prática científica e, por outro lado, de evocar o seu papel na sociedade.
O primeiro ponto será relativamente breve, remetendo para outro estudo [Le Goff, 1978], no qual se apresenta a gênese e os principais aspectos da renovação da ciência histórica no último meio século.
Esta tendência parece-me sobretudo francesa, mas manifestou-se em outros locais, nomeadamente na Grã-Bretanha e na Itália, particularmente em torno das revistas "Past and Present" (depois de 1952) e "Quaderni storici" (depois de 1966).
Uma das suas mais antigas manifestações foi o desenvolvimento da história econômica e social; devemos também mencionar aqui o papel da ciência histórica alemã em torno da revista "Vierteljahrsschrift für Sozial-und Wirtschaftsgeschichte", fundada em 1903, e o do grande historiador belga Henri Pirenne, teórico da origem econômica das cidades na Europa Medieval. Na medida em que a sociologia e a antropologia desempenharam [pg. 128] um papel importante na mutação da história no século XX, a influência de um grande espírito como Max Weber e dos sociólogos e antropólogos anglo-saxônicos foram notórias.
O sucesso da "história oral" foi grande e precoce nos países anglo-saxônicos. A história quantitativa esteve em voga um pouco por toda a parte, exceto talvez nos países mediterrâneos.
Ruggiero Romano, que criou uma imagem, precursora pela sua inteligência e pelas posições tomadas, da Storiografia italiana oggi [1978], indicou um grupo de países em que a participação da história e dos historiadores na vida social e política, e não na vida cultural, é muito viva: a Itália, a França; a Espanha, os países sul-americanos, a Polônia, não se verificando este fenômeno nos países anglo-saxônicos, russos e germânicos.
O trabalho histórico e a reflexão sobre a história desenvolvem-se hoje num clima de crítica e desencanto perante a ideologia do progresso e, mais recentemente, de repúdio pelo marxismo, pelo menos do marxismo vulgarizado. Toda uma produção sem valor científico que só podia iludir pela pressão da moda e de um certo terrorismo político-intelectual perdeu completamente o crédito. Assinalemos que, em sentido contrário e nas mesmas condições, se gerou uma produção de pseudo-história antimarxista que parece ter tomado como bandeira o tema gasto do irracional.
Como o marxismo, se excetuarmos Max Weber, foi o único pensamento coerente da história no século XX, é importante ver o que se produziu à luz da desafeição pela teoria marxista e a renovação das práticas históricas no Ocidente, não contra o marxismo mas fora dele, embora se concorde com Michel Foucault que alguns problemas capitais para o historiador ainda não podem ser postos, senão a partir do marxismo. No Ocidente, alguns historiadores de qualidade esforçaram-se por mostrar que não só o marxismo podia fazer uma boa aliança com "a história nova", como também estava próximo dessa história, por sua consideração pelas estruturas, a sua concepção de uma história total, o seu interesse pelo domínio das técnicas e das atividades materiais.
Pierre Vilar [1973] e Guy Bois [1978] exprimiram o desejo de que a renovação passasse por "um certo regresso às fontes" [pg. 129] (pp. 375-93). Obras coletivas como Aujourd'hui l'histoire [Hincker e Casanova, 1974] e Ethnologie et histoire [Ethnologie, 1975], publicadas em Paris pelas Éditions Sociales, manifestaram um desejo de abertura. Uma interessante série de textos publicados há alguns anos por alguns historiadores marxistas italianos [Cecchi, 1974], mostrou a vitalidade e a evolução desta procura. Uma obra como Le féodalisme, un horizon théorique de Alain Guerreau [1980] manifesta, não obstante os seus excessos, a existência de um pensamento marxista, forte e novo.
No Ocidente conhece-se mal a produção histórica dos países do Leste. À exceção da Polônia e da Hungria, o que se conhece não é encorajante. Talvez haja trabalhos e correntes interessantes na Alemanha do Leste.
Já considerei alguns grandes historiadores do passado como antepassados da história nova, pelo seu gosto pela investigação das causas, a sua curiosidade pelas civilizações, o seu interesse pelo material, o cotidiano, a psicologia. De La Popelinière, no fim do século XVI, a Michelet, passando por Fénelon, Montesquieu, Voltaire, Chateaubriand e Guizot encontra-se uma impressionante linhagem de diversidade. Devemos acrescentar o holandês Huizinga (morto em 1945) cuja obra-prima O Outono da Idade Média [1919] fez entrar na história a sensibilidade e a psicologia coletiva.
Considera-se a fundação da revista "Annales" ("Annales d'histoire économique et sociale" em 1929, "Annales. Économies, Sociétés, Civilisations" em 1945), obra de Marc Bloch e Lucien Febvre, como o ato que fez nascer a nova história [cf. Revel e Chartier, 1978; Allegra e Torre, 1977; Cedronio e outros, 1977]. As idéias da revista inspiraram a fundação, em 1947, por Lucien Febvre (morto em 1956) (Marc Bloch, resistente, tinha sido fuzilado pelos alemães em 1944) de uma instituição de investigação e de ensino de investigação em ciências humanas e sociais, a sexta seção (das ciências econômicas e sociais) da École Pratique des Hautes Études, prevista por Victor Duruy no momento da fundação da escola, em 1868, mas que não tinha podido concretizar-se. Em 1975, transformado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, este estabelecimento, em que a história tinha um lugar importante, ao lado da [pg. 130] geografia, economia, sociologia, antropologia, psicologia, lingüística e semiologia, assegurou a difusão, na França e no estrangeiro, das idéias que tinham estado na origem dos "Annales".
Podemos resumir estas idéias pela crítica do fato histórico, da história événementielle, e, em especial, política; a procura de uma colaboração com as outras ciências sociais (o economista François Simiand – que tinha publicado em 1903 na "Revue de Synthèse Historique" (pioneira da nova ciência sob a orientação de Henri Berr) um artigo, Méthode historique et science sociale, em que denunciava os "ídolos" "políticos", "individuais" e "cronológicos", que inspirou o programa dos "Annales", cujo espírito foi inspirado pelo sociólogo Émile Durkheim e o sociólogo e antropólogo Marcel Mauss); a substituição da históriaconto pela história-problema, a atenção pela história do presente.
Fernand Braudel (n. 1902), autor de uma tese revolucionária sobre La Méditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de Philippe II [1966], onde a história era decomposta em três planos sobrepostos, o "tempo geográfico", o "tempo social" e o "tempo individual" – o acontecimento situa-se na terceira parte –, publicou nos "Annales" o artigo sobre a "longa duração" [1958], que viria a inspirar uma parte importante da investigação histórica subseqüente.
Um pouco por toda a parte, nos anos 70, colóquios e obras, na sua maioria coletivas, fizeram o balanço das novas orientações da história. Um trabalho conjunto [Le Goff e Nora, 1974] apresentou, com o título Faire de l'histoire, os "novos problemas", as "novas abordagens" e os "novos objetivos" da história. Entre os primeiros, o quantitativo em história, a história conceitualizante, a história antes da escrita, a história dos povos sem história, a aculturação, a história ideológica, a história marxista, a nova história événementielle. Os segundos referem-se à economia, demografia, antropologia religiosa, os novos métodos da história da literatura, da arte, da ciência e da política. A escolha de novos objetos tinha-se fixado no clima, o inconsciente, o mito, a mentalidade, a língua, o livro, os jovens, o corpo, a cozinha, a opinião pública, o filme, a festa. [pg. 131]
Quatro anos mais tarde, em 1978, um dicionário da La nouvelle histoire [Le Goff, Chartier e Revel, 1978], dirigindo-se a um público ainda mais vasto, dava testemunho dos progressos da vulgarização da nova história e das rápidas deslocações de interesses no interior do seu campo, destacando também alguns temas: antropologia histórica, cultura material, imaginário, história imediata, longa duração, marginais, mentalidades, estruturas.
O diálogo da história com as outras ciências prosseguia, aprofundava-se, concentrava-se e alargava-se simultaneamente.
Concentrava-se. A par da persistência das relações entre história e economia [atestada, por exemplo, por Lhomme, 1967], história e sociologia (um dos testemunhos é o do sociólogo Alain Touraine, que dizia [1977, p. 274]: "Não separo o trabalho da sociologia, da história de uma sociedade") estabeleceu-se uma relação privilegiada entre a história e a antropologia, desejada por alguns antropólogos, por Evans-Pritchard [1961], considerada com maior circunspecção por Lewis [1968], que insiste nos diferentes interesses das duas ciências (a história voltada para o passado, a antropologia para o presente; a primeira para os documentos, a segunda para a investigação direta; a primeira para a explicação dos acontecimentos, a segunda para os caracteres gerais das instituições sociais). Mas um historiador como Carr escreve [1961]: "Quanto mais a história se tomar sociológica e a sociologia, histórica, melhor será para ambas"; e um antropólogo como Marc Augé afirma: "O objeto da antropologia não é reconstituir sociedades desaparecidas, mas pôr em evidência lógicas sociais e históricas" [1979, p. 170].
Neste encontro entre história e antropologia, o historiador privilegiou alguns domínios e problemas. Por exemplo, o do homem selvagem e o do homem cotidiano [Furet, 1971b; Le Goff, 1971a] ou ainda as relações entre cultura erudita e cultura popular [cf. Ginzburg, 1976, p. XI: "No passado, podia acusar-se os historiadores de conhecerem apenas a "gesta dei rei". Hoje já não é assim..."]. Ou a história oral sobre a qual, entre abundante literatura, destacarei um número especial dos "Quademi storici" (1977) dedicado à Oral History: fra antropologia e storia, que coloca bem os problemas entre as várias classes sociais e as diferentes civilizações; o livrinho de Jean-Claude [pg. 132] Bouvier e uma equipe de antropólogos, historiadores e lingüistas: Tradition orale et identité culturelle. Problèmes et méthodes (1980), porque valoriza as relações entre oralidade e discurso sobre o passado, define os etnotextos, assim como um método para os recolher e utilizar; e finalmente a relação de Dominique Aron-Schnapper e Danièle Hanet,Histoire orale ou archives orales? (1980), sobre a constituição de arquivos orais na história da segurança social que levanta o problema das relações entre um novo tipo de documentação e um novo tipo de história.
Destas experiências, destes contatos, destas conquistas, alguns historiadores – em cujo número me incluo – desejavam que se constituísse uma nova disciplina histórica, estritamente ligada à antropologia: a antropologia histórica.
No suplemento de 1980, a Encyclopaedia Universalis dedica um longo artigo à antropologia histórica [Burguière, 1980]. Burguière mostra que esta nova etiqueta, nascida do encontro entre etnologia e história, é mais uma redescoberta do que um fenômeno radicalmente novo. Coloca-se na tradição de uma concepção da história cujo pai é, sem dúvida, Heródoto, e que se exprime, na tradição francesa, no século XVI, em Pasquier, La Popelinière ou Bodin; no século XVII, nas mais importantes obras históricas das Luzes e domina a historiografia românica. É "mais analítica, apostada em traçar o itinerário e os progressos da civilização; interessa-se mais pelos destinos coletivos que pelos individuais, pela evolução das sociedades que pelas instituições, pelos costumes que pelos acontecimentos", face a outra concepção "mais narrativa, mais próxima dos poderes políticos", a que vai das grandes crônicas da Idade Média aos eruditos do século XVII e à história événementielle e positivista que se impôs no século XIX. Na linha dos fundadores dos "Annales" dá-se uma ampliação do domínio da história, "na intercepção dos três eixos principais que Marc Bloch e Lucien Febvre apontavam aos historiadores: a história econômica e social, a história das mentalidades, as investigações interdisciplinares". O seu modelo são Les rois thaumaturges de Marc Bloch [1924]. Uma das suas conseqüências é a obra de Fernand Braudel Civilisation matérielle et capitalisme, onde o historiador "descreve [pg. 133] a maneira como os grandes equilí6rios econômicos, os circuitos de trocas criavam e modificavam a trama da vida biológica e social, a maneira como, por exemplo, o gosto se habituava a um novo produto alimentar" [Burguière, 1980, p. 159]. André Burguière dá como exemplo de um domínio que a antropologia histórica procura conquistar, o de uma história do corpo, sobre a qual o historiador alemão Norbert Elias, num livro [de 19391, cuja ressonância data dos anos 70, La civilisation des Noeurs (1974), levantou uma hipótese explicativa da evolução das relações com o corpo na civilização européia: "A ocultação e o distanciamento do corpo traduzem em nível individual a tendência para a remodelação do corpo social, imposta pelos estados burocráticos; integravam-se no mesmo processo a separação das classes por idades, o isolamento dos desviados, a segregação dos pobres e dos loucos e o declínio das solidariedades locais" [Burguière, 1980, p. 159]. Os quatro exemplos de Burguière que ilustram a antropologia histórica são: 1) história da alimentação, que "se ocupa em tentar encontrar, estudar e, eventualmente, quantificar tudo o que se refere a essa função biológica, essencial para a manutenção da vida: a nutrição"; 2) a história da sexualidade e da família, que fez entrar a demografia histórica numa nova era, com a utilização de fontes coletivas (os registros paroquiais) e uma problemática que tem em conta as mentalidades, como, por exemplo, a atitude perante a contracepção; 3) a história da infância, que mostrou que as atitudes para com a criança não se reduziam a um hipotético amor paterno mas dependiam de condições culturais complexas: por exemplo, na Idade Média, não existe uma especificidade da criança; 4) a história da morte que se revelou como o domínio mais fecundo da história das mentalidades.
Assim, o diálogo entre história e ciências sociais tem tendência para privilegiar as relações entre história e antropologia, embora também se pense que a história abrange a sociologia. Entretanto, a história começa a sair do seu território de maneira ainda mais audaciosa, invadindo as ciências da natureza [cf. Le Roy Ladurie, 1967] e as da vida, em especial a biologia.
Antes de mais nada é, contudo, necessário que os cientistas tenham desejo de fazer história, mas não uma história qualquer. [pg. 134] Vejamos o que escreve um grande biólogo, o prêmio Nobel François Jacob [1970]: "Para um biólogo, há duas maneiras de considerar a história da ciência. Em primeiro lugar, podemos ver nela a sucessão das idéias e a sua genealogia. Procura-se então o fio que conduziu o pensamento até as teorias atuais. Esta história faz-se por assim dizer ao inverso, por extrapolação do presente no passado. Passo a passo, examina-se a hipótese hoje dominante, depois, a que a precedeu, etc. Por este processo, as idéias adquirem independência... Assiste-se agora a uma espécie de evolução das idéias, sujeita talvez a uma espécie de seleção natural, baseada num critério de interpretação teórica (e de reutilização prática) e à única teologia da razão...
Há uma outra maneira de encarar a história da biologia: procurar como os objetos desta ciência se tornaram acessíveis à análise, e como se abriram assim novos domínios de investigação. Trata-se então de precisar a natureza destes objetos, as atitudes dos que os estudam, a sua maneira de observar, os obstáculos levantados pela tradição oral ao investigador... Deixa de existir então uma filiação mais ou menos linear de idéias, engendradas uma na outra. Há um domínio que o seu pensamento procura explorar e no qual procura introduzir uma ordem; constituir um conjunto de relações abstratas de acordo, não só com as observações e as técnicas, mas também com as práticas, os valores e as interpretações dominantes".
Vemos claramente o que está aqui em questão. É a refutação de uma história idealista, onde as idéias se geram por uma espécie de partogênese, de uma história guiada pela concepção de um progresso linear, de uma história que interpreta o passado com os valores do presente. Pelo contrário, François Jacob propõe a história de urna ciência que dá conta das condições (materiais, sociais, mentais) da sua produção e que individualiza, em toda a sua complexidade, as etapas do saber.
Mas é preciso ir mais longe. Ruggiero Romano, baseando-se nos trabalhos sugestivos, indiscutivelmente bem fundamentados, de Jacques Ruffié [1976] e nos de Wilson [1975], estes mais discutíveis, afirma: "Lá onde a história tinha procurado impor-se à biologia servindo-se (mal e baixamente) dela para a [pg. 135] história demográfica, hoje a biologia quer e pode ensinar qualquer coisa à história" [1978, p. 8].
Nitschke chamou a atenção para o interesse de uma colaboração entre historiadores e especialistas de etologia: "Múltiplos incitamentos à investigação histórica surgem de um confronto entre a etologia dos biólogos. Desejamos que este encontro entre as duas disciplinas, na perspectiva de uma etologia histórica, se torne frutuoso para ambas" [ 1974, p. 97].
Todas as mudanças profundas da metodologia histórica são acompanhadas de uma transformação importante da documentação. Neste campo, a nossa época conhece uma verdadeira revolução documental: é a irrupção do quantitativo e o recurso à informática. Chamado pelo interesse da nova história pelos grandes números, postulado pela utilização de documentos que permitem atingir as massas, como os registros paroquiais na França, base da nova demografia [cf. por exemplo Goubert, 1960], tornado necessário pelo desenvolvimento da nova história serial, o computador entrou na aparelhagem do historiador. O quantitativo que tinha aparecido na história com a história econômica, em especial com a história dos preços de que Ernest Labrousse [1933] foi um dos pioneiros, influenciado por François Simiand, invadiu a história demográfica, a história cultural. Depois de um período de entusiasmo ingênuo, foram identificados os serviços indispensáveis, prestados pelo computador em certos tipos de investigação histórica e os seus limites [cf. Furet, 1971a; Shorter, 1971; Arnold, 1974]. Também em história econômica, um dos principais responsáveis pela história quantitativa, Marczewski, escreveu: "A história quantitativa não é mais que um dos métodos de investigação no domínio da história econômica. Não exclui o recurso à história qualitativa. Esta traz-lhe um complemento indispensável" [1965, p. 48]. Um modelo inovador de investigação histórica, baseado na utilização inteligente do computador, é a obra de Herlihy e Klapisch-Zuber, Les Toscans et leurs familles, [1978].
O olhar do historiador sobre a história da sua disciplina desenvolveu recentemente um novo setor especialmente rico da historiografia: a história da história.
O filósofo e historiador polaco Krzysztof Pomian lançou um olhar penetrante sobre a história da história. Lembrou as [pg. 136] condições históricas em que esta história tinha nascido no século XIX, sob a crítica do reinado da História: "Filósofos, sociólogos e mesmo historiadores demonstraram que a objetividade, os fatos dados de uma vez por todas, as leis de desenvolvimento, o progresso, todas as noções que até aí eram consideradas evidentes e que serviam de base às pretensões científicas da história não passavam de um logro... Os historiadores foram apresentados, na melhor das hipóteses, como ingênuos, cegos pelas ilusões que eles próprios tinham criado, ou então como charlatães" [1975, p. 936].
A história da historiografia toma como divisa a palavra de Croce: toda a história é história contemporânea e o historiador, de sábio que julgava ser, tomou-se um forjador de mitos, um político inconsciente. Mas, acrescenta Pomian, este pôr em questão não diz apenas respeito à história, mas "a toda a ciência e em especial ao seu núcleo, a física" [ibid.]. A história das ciências desenvolveu-se com o mesmo espírito crítico que a história da historiografia. Para Pomian, este tipo de história está hoje ultrapassado porque ignora o aspecto cognitivo da história e da ciência e deveria tomar-se uma ciência do conjunto de práticas do historiador e mais ainda uma história do conhecimento: "A história da historiografia teve o seu tempo. Aquilo de que hoje precisamos é de uma história da história que deveria colocar, no centro das suas investigações, as interações entre o conhecimento, as ideologias, as exigências da escrita, em resumo, os aspectos diversos e, por vezes, discordantes do trabalho do historiador. E, fazendo isto, permitiria lançar uma ponte entre a história das ciências e a da filosofia, da literatura e talvez da arte. Ou melhor, entre uma história do conhecimento e a dos diferentes usos que dele se faz" [ibid., p. 952].
Do alargamento do domínio da história dá testemunho a criação de novas revistas num quadro temático – enquanto que o grande movimento de nascimento de revistas históricas, no século XIX, se tinha sobretudo realizado num quadro nacional.
Gostaria de recordar entre as novas revistas: 1) as que se interessam pela história quantitativa, por exemplo, "Computers and the Humanities", publicada em 1966 no Queen's College da City University de Nova Iorque; 2) as que tratam da história oral e da etno-história, entre as quais "Oral History. The [pg. 137] Journal of the British Oral History Society" (1973), "Ethnohistory", editada pela Universidade do Arizona em 1954, as "History Workshops" britânicas; 3) as que se dedicam à comparação e à interdisciplinaridade: os "Comparative Studies in Society and History" americanas, em 1959; a "Information sur les sciences sociales", bilíngüe (francesa e inglesa), publicada pela Maison des Sciences de l'Homme (Paris) em 1960; 4) as que se ocupam da teoria e da história da história, sendo a mais importante "History and Theory", fundada em 1960.
Há um alargamento do horizonte histórico que deve trazer uma verdadeira revolução da ciência histórica, pela necessidade de pôr fim ao etnocentrismo e de deseuropeizar a história.
As manifestações de etnocentrismo histórico foram registradas por Roy Preiswerk e Dominique Perrot [19751, que registraram dez formas desta colonização da história pelos Ocidentais: 1) a ambigüidade da noção de civilização. Haverá uma ou várias?; 2) o evolucionismo social, isto é, a concepção de uma evolução linear e única da história segundo o modelo ocidental. Sobre este assunto, a declaração de um antropólogo do século XIX é característica: "Sendo a humanidade uma só desde a sua origem, a sua evolução foi essencialmente a mesma, dirigida de modos diferentes, mas uniforme em todos os continentes, desenvolvendo-se de modo muito semelhante em todas as tribos e nações da humanidade até o mesmo estágio de desenvolvimento. Em conseqüência disso, a história e a experiência das tribos ameríndias equivalem mais ou menos à história e à experiência dos nossos próprios antepassados mais longínquos quando viviam nas mesmas condições" [Morgan, 1877, ed. 1964, pp. 6-7]; 3) o alfabetismo como critério de diferenciação entre superior e inferior; 4) a idéia que os contatos com o Ocidente são o fundamento da historicidade das outras culturas; 5) a afirmação do papel causal dos valores em história, confirmada pela especificidade do sistema de valores ocidentais: a unidade, a lei e a ordem, o imobilismo, a democracia, o sedentarismo e a industrialização; 6) a legitimação unilateral das ações ocidentais (escravatura, propagação do Cristianismo, necessidade de intervenção, etc.); 7) a transferência intercultural dos conceitos ocidentais (feudalismo, democracia, revolução, classe, estado, [pg. 138] etc.); 8) o uso de estereótipos, como os bárbaros, o fanatismo muçulmano; 9) a seleção autocentrada das datas e dos acontecimentos importantes da história, impondo ao conjunto da história do mundo a periodização elaborada pelo Ocidente; 10) a escolha das ilustrações, as referências à raça, ao sangue, à cor.
É também através do estudo dos manuais escolares que Marc Ferro pôde ir mais longe, recentemente, "no pôr em questão da concepção tradicional da história universal". Analisando Comment on raconte l'histoire aux enfants d travers le monde entier, quanto aos exemplos da África do Sul, da África negra, das Antilhas (Trindade), das índias, do Islã, da Europa Ocidental (Espanha, Alemanha nazi, França), da URSS, da Armênia, da Polônia, da China, do Japão, dos Estados Unidos – com um relance para a história "proibida" (Mexicanos da América, Aborígenes da Austrália), Marc Ferro declara: "Já é tempo de confrontar todas as representações, pois, com o alargamento do mundo, a sua unificação econômica e desintegração política, o passado das sociedades é, mais do que nunca, uma trama de confrontações entre Estados, entre Nações, entre culturas e etnias" [1981, p. 7].
Ignoramos o que será uma história verdadeiramente universal. Talvez seja algo radicalmente diferente daquilo a que chamamos história. Deve, em primeiro lugar, fazer o inventário das diferenças e dos conflitos. Reduzi-la a uma história adocicada, docemente ecumênica, querendo dar prazer a toda a gente, não é bom caminho: daí a semifalência dos cinco volumes publicados pela UNESCO, em 1969, da Histoire du développement scientifique et culturel de l'humanité, cheia de boas intenções. Depois da Segunda Guerra Mundial, a história viu-se perante novos desafios. Apontarei três.
O primeiro é que ela deve, mais que nunca, responder ao pedido dos povos, das nações, dos estados, que esperam que ela, mais que uma mestra da vida, seja um espelho da sua idiossincrasia – um elemento essencial desta identidade individual e coletiva que eles procuram com angústia: antigos países colonizadores que perderam o seu império e se encerram no seu pequeno espaço europeu (Grã-Bretanha, França, Portugal), antigas nações que despertam do pesadelo nazi ou fascista (Alemanha, Itália), países da Europa do Leste em que a história não [pg. 139] está de acordo com o que a União Soviética gostaria de lhes fazer crer, apanhada entre a história curta da sua unificação e as histórias longas das suas nacionalidades. Os Estados Unidos, que tinham pensado conquistar para si uma história no mundo inteiro e se encontram hesitantes entre o imperialismo e os direitos do homem, países oprimidos que lutam pela sua história como pela vida (América Latina), países novos que tateiam os meios para construir a sua história [cf., para a África negra, Assorodobraj, 1967].
Devemos escolher entre uma história-saber objetivo e uma história-militante? Devemos adotar os esquemas científicos forjados pelo Ocidente ou inventar uma metodologia histórica simultânea de uma história?
O Ocidente, pelo seu lado, interrogou-se durante as suas duras provações (a Segunda Guerra Mundial, a descolonização, o abalo de Maio de 68) se não seria mais sábio renunciar à história. Não faria ela parte dos valores que tinham levado à alienação e à infelicidade?
Jean Chesneaux respondeu aos nostálgicos de uma vida sem passado, lembrando a necessidade de dominar uma história, mas propôs fazer dela "uma história pela revolução". É um dos possíveis pontos de chegada da teoria marxista, de uma unificação do saber e da práxis. Se, como penso, a história, com a sua especificidade e os seus perigos, é uma fonte, ela deve escapar a uma identificação entre história e política, velho sonho da historiografia que deve ajudar o trabalho histórico a dominar o seu condicionamento pela sociedade, sem o qual a história será o pior instrumento de todo e qualquer poder.
Mais sutil foi a recusa intelectual que o estruturalismo pareceu encarnar. Antes de mais nada, quero dizer que o perigo me parece ter vindo – e não desapareceu totalmente – de um certo sociologismo. Gordon Leff observou, com precisão: "Os ataques de Karl Popper contra o que ele erradamente chamava o historicismo nas ciências sociais parece ter intimidado uma geração; conjugando-se com a influência de Talcott Parsons, abandonaram a teoria social, pelo menos na América, a uma condição a tal ponto an-histórica, que me parece muitas vezes já não ter relação com a terra dos homens" [1969, p. 2]. [pg. 140]
Philip Abrams, a dez anos de distância, definiu bem as relações entre a sociologia e a história [1971; 1972; 1980], aderindo à idéia de Runciman, para o qual não existe séria distinção entre história, sociologia e antropologia, mas com a condição de não a reduzir a pontos de vista limitativos: nem a uma espécie de psicologia, nem a um conjunto de técnicas, pois que as ciências sociais – como as outras – não devem subordinar os problemas às técnicas.
Em contrapartida, parece-me que só uma deformação do estruturalismo pode fazer dele um an-historicismo. Não é este o lugar próprio para estudar em detalhe as relações de Claude Lévi-Strauss. Sabe-se que são complexas. Devemos reler os grandes textos da Anthropologie structurale [1958, I, pp. 3-33], de La Pensée Sauvage [1962], de Du miel aux cendres [1966]. Claro que muitas vezes Lévi-Strauss pensou, referindo-se quer à disciplica histórica, quer à história vivida: "Podemos chorar o fato de existir história" [Backès-Clément, 1974, p. 141]; mas, penso que a experiência mais pertinente do seu pensamento é o tema das seguintes linhas da Anthropologie structurale [1958]: "Num caminho em que fazem o mesmo percurso, no mesmo sentido, só a sua orientação é diferente: a etnologia caminha para a frente, procurando atingir, através de uma zona consciente, que ela já não ignora, um âmbito cada vez mais vasto, inconsciente do fim para que se dirige; enquanto que o historiador avança cada vez mais, em marcha atrás, mantendo os olhos fixos em atividades concretas e particulares; só se afasta delas para as encarar numa perspectiva mais rica e completa. Verdadeiro Janus bifronte é, de certo modo, a solidariedade entre as duas disciplinas que permite abranger, com o olhar, a totalidade do percurso".
Há um estruturalismo extremamente caro aos historiadores: o estruturalismo genético do epistemólogo e psicólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual as estruturas são intrinsecamente evolutivas.
Se, e penso que sim, a história pode vencer estes desafios, contudo ela continua hoje em dia a defrontar-se com sérios problemas. Evocarei dois: um geral e outro particular. [pg. 141]
O grande problema é o da história global, geral, a tendência secular de uma história que não seja só universal e sintética – velho empreendimento, que vai do cristianismo antigo ao historicismo alemão do século XIX e às inúmeras histórias universais da vulgarização histórica do século XX –, mas integral ou perfeita, como dizia La Popelinière, ou global, total, como exigiam os "Annales" de Lucien Febvre ou Marc Bloch.
Assiste-se hoje a uma pan-historização que Paul Veyne considera a grande mutação do pensamento histórico da Antiguidade.
Depois de uma primeira mutação que, na própria Antiguidade, fez passar a história, do mito coletivo à procura de um conhecimento desinteressado da pura verdade, está a dar-se uma segunda mutação, na época atual, porque os historiadores "pouco a pouco tomaram consciência de que tudo era digno de história: nenhuma tribo, por minúscula que seja, nenhum gesto humano, por insignificante que pareça, é indigno da curiosidade histórica" [1968, p. 424].
Mas será esta história bulímica capaz de pensar e estruturar essa realidade? Há quem pense que o tempo da história esmigalhada chegou: "Vivemos o desagregar da história", escreveu Pierre Nora, ao fundar, em 1971, a coleção "Bibliothèque dês Histoires". Haveria histórias a fazer, não uma história. Penso que a legitimidade e os limites das "múltiplas abordagens em história" e o interesse de considerar temas de investigação e reflexão histórica objetos globalizantes, na ausência de globalidades, já foi referido [cf. Le Goff e Toubert, 1975].
O problema especial é o da necessidade experimentada por muitos – produtores ou consumidores de história – de um regresso à história política. Acredito nessa necessidade desde que esta nova história política seja enriquecida pela nova problemática da história, que seja uma antropologia histórica [Le Goff, 197lb].
Alain Dufour, tomando como modelo os trabalhos de Frederico Chabod sobre o Estado milanês no tempo de Carlos V, defendeu "uma história política mais moderna" cujo programa seria: "Compreender o nascimento dos estados – ou do Estado [pg. 142] moderno – nos séculos XVI e XVII, sabendo desviar a nossa atenção do príncipe para a dirigir para o pessoal político, para a classe ascendente dos funcionários, com a sua ética de novo tipo, para as elites políticas em geral, cujas aspirações mais ou menos implícitas se revelaram em tal política à qual se dá tradicionalmente o nome do príncipe que é o seu porta-bandeira" [1966, p. 20].
Ultrapassando o problema de uma nova história política põe-se o do lugar a dar ao acontecimento na história, tomando-o no seu duplo sentido. Pierre Nora mostrou como os media contemporâneos criaram um novo acontecimento e um novo estatuto do acontecimento histórico: é o "regresso do acontecimento".
Mas este novo acontecimento não escapa à construção de que resultam todos os documentos históricos. Os problemas que daí resultam são hoje ainda mais graves.
Num estudo notável, Eliseu Verón analisou o modo como os media "constroem hoje o acontecimento". A propósito do acidente na central nuclear americana de Three Mile Island (março-abril de 1979), mostra como, neste caso, característico dos acontecimentos tecnológicos cada vez mais importantes e numerosos, "é difícil construir um acontecimento atual com bombas, válvulas, turbinas e sobretudo radiações, que não se veja". O que obriga a uma transcrição feita pelos media: "É o discurso didático, nomeadamente na televisão, que se encarrega de transcrever para a informação a linguagem das tecnologias". Mas o discurso da informação para os novos media contém perigos cada vez maiores pela constituição de memória que é uma das bases da história. "Se a imprensa é o lugar de uma multiplicidade de modos de construção, a rádio segue os acontecimentos e define-lhes o som, enquanto que a televisão fornece as imagens que ficarão na memória e assegurarão a homogeneização do imaginário social". Deparamos aqui com o que sempre foi o "acontecimento' em história – da história vivida e memorizada e da história científica com base em documentos (entre os quais, o acontecimento como documento ocupa, repito-o, um lugar essencial). É o produto de uma construção que compromete o sentido histórico das sociedades e a validade de uma verdade histórica e fundamento do trabalho histórico: "Na medida em que as [pg. 143] nossas decisões e as nossas lutas diárias são, no que é fundamental, determinadas pelo discurso da informação, torna-se claro que o que está em jogo é, nada menos, que o futuro da nossa sociedade" [1981, p. 1701.
Neste contexto de desafios e interrogações, revelou-se recentemente uma crise no mundo dos historiadores, da qual podemos escolher como expressão exemplar um debate entre dois historiadores anglo-saxônicos, Lawrence Stone e Eric Hobsbawm, publicado na revista "Past and Present".
No ensaio The Revival of Narrative, Lawrence Stone verifica a existência de um regresso ao conto em história, baseado na falência do modelo determinista de explicação histórica, na decepção causada pelos magros resultados obtidos pela história quantitativa, nas desilusões provocadas pela análise estrutural, no caráter tradicional, ou seja, "reacionário" da noção de "mentalidade". Na sua conclusão, que é o vértice desta análise ambígua, Lawrence Stone parece reduzir os "novos historiadores" a operadores dos deslizes e das deslocações da história que, de uma história de tipo determinista teria regressado a história tradicional: "A história narrativa e a biografia individual parecem dar sinais de ressuscitar dentre os mortos" [1979, p. 23].
Eric Hobsbawm respondeu-lhe que os métodos, as orientações e os produtos da história "nova" não eram, de modo algum, renúncias às grandes questões nem um abandono da investigação das causas por uma ligação ao princípio de indeterminação, mas sim a "continuação de empreendimentos históricos do passado, por outros meios" [1980, p. 8].
Sublinhou, com razão, Eric Hobsbawm que a nova história tem, em primeiro lugar, objetivos de alargamento e aprofundamento da história científica. Sem dúvida que ela encontrou problemas, limites e talvez impasses. Mas continua a alargar o campo e os métodos da história e, o que é mais importante, Stone não teve em conta o que podia ser verdadeiramente novo, "revolucionário", nas novas orientações da história: a crítica do documento, o novo tratamento dado ao tempo, as novas relações entre material e "espiritual", as análises do fenômeno do poder sob todas as suas formas e não só do político. [pg. 144]
Considerando as novas orientações da história como modos em vias de extinção e abandono, mesmo pelos seus defensores, Stone não só se manteve à superfície do fenômeno, como apoiou de maneira ambígua os que queriam reconduzir a história ao vibrionismo e ao positivismo limitado a um tempo anterior. Os que levantam a cabeça no meio dos historiadores e à sua volta, eis o verdadeiro problema da crise. É um problema da sociedade, um problema histórico, no sentido "objetivo" do termo.
Gostaria de concluir este artigo com uma profissão de fé e com a constatação de um paradoxo.
A reivindicação dos historiadores – não obstante a diversidade das suas concepções e práticas – é, ao mesmo tempo, imensa e modesta. Eles pretendem que todo o fenômeno da atividade humana seja estudado e posto em prática, tendo em conta as condições históricas em que existe ou existiu. Por "condições históricas" devemos entender o dar forma cognitiva à história concreta, um conhecimento da coerência científica relativamente ao qual se estabeleça um consenso suficiente no meio profissional dos historiadores (existem também desacordos quanto às conseqüências a tirar). Não se trata de modo algum de explicar o fenômeno em questão através destas condições históricas, de invocar uma causalidade histórica pura, e nisto deve consistir a modéstia da atuação histórica. Mas também esta atuação pretende recusar a validade de qualquer explicação e de toda a prática que negligenciasse estas condições históricas. Devemos repudiar qualquer forma imperialista de historicismo – quer se apresente como idealista, quer como materialista ou possa ser considerado como tal –, mas reivindicar com força a necessidade da presença do saber histórico em toda a ação científica ou em toda a práxis. No domínio da ciência, da ação social ou política, da religião ou da arte – para considerar alguns dos domínios fundamentais –, esta presença do saber histórico é indispensável. De formas diversas, evidentemente. Cada ciência tem o seu horizonte de verdade que a história deve respeitar; a ação social ou política não deve ter a sua espontaneidade entravada pela história que já não é incompatível com a exigência de eternidade e de transcendência do religioso, nem com as pulsões da criação artística. Mas, ciência do tempo, a história é uma componente indispensável de [pg. 145] toda a atividade temporal. Mais do que sê-lo inconscientemente, sob a forma de uma memória manipulada e deformada, não é melhor que o seja sob a forma de um saber falível, imperfeito, discutível, nunca totalmente inocente, mas cujas normas de verdade e condições profissionais de elaboração e exercício permitam que se chame científico?
De certo modo, parece ser uma exigência da humanidade de hoje, segundo os diversos tipos de sociedade, cultura, relação com o passado, orientação para o futuro, que ela conhece. Talvez não aconteça o mesmo num futuro mais ou menos longínquo, não porque não exista necessidade de uma ciência do tempo, mas porque este saber poderia adquirir outras formas, diferentes daquelas a que convém o termo 'histórico'. O saber histórico está ele próprio na história, isto é, na imprevisibilidade, o que só o torna mais real e mais verdadeiro.
Girolamo Arnaldi, retomando uma idéia de Croce, na sua Storie come pensiero e come azione (1938), mostrou a sua confiança na "historiografia como meio de libertação do passado", no fato de a "historiografia abrir o caminho para uma verdadeira libertação da história" [1974, 1553]. Sem partilhar do seu otimismo, julgo que cabe ao historiador transformar a história (res gestae) de fardo – como dizia Hegel – numa historia rerum gestarum que faça do conhecimento do passado um instrumento de libertação. Não estou a reivindicar nenhum papel imperialista para o saber histórico. Julgo ser indispensável o recurso à história, no conjunto das práticas do conhecimento humano e da consciência das sociedades; penso também que este saber não deve ser uma religião, nem uma demissão. Devemos rejeitar o "culto integralista da história" [Bourdieu, 1979, p. 124]. Faça minhas as palavras do grande escritor polaco Witold Kula: "O historiador deve – paradoxalmente – lutar contra a fetichização da história... A deificação das forças históricas, que conduz a um sentimento generalizado de impotência e indiferença, torna-se num verdadeiro perigo social; o historiador deve reagir, mostrando que nada está inscrito antecipadamente na realidade e que o homem pode modificar as condições que lhe são postas" [1961, p. 173]. [pg. 146]
O paradoxo surge do contraste entre o sucesso que a história tem na sociedade e a crise do mundo dos historiadores.
O sucesso explica-se pela necessidade que as sociedades têm de alimentarem a sua procura de identidade, de se alimentarem num imaginário real; e as solicitações dos media fizeram entrar a produção histórica no movimento da sociedade de consumo. Seria aliás importante estudar as condições e as conseqüências do que Arthur Marwick chamou "a indústria da história" [1970, pp. 240-43].
A crise do mundo dos historiadores nasce dos limites e das incertezas da nova história, do desencanto dos homens face às durezas da história vivida. Todo o esforço para racionalizar a história, oferecer-lhe melhores pontos de vista sobre o seu desenvolvimento, se choca com a incoerência e a tragicidade dos fatos, das situações e das evoluções aparentes. Sentimos necessidade de repetir com Lucien Febvre [1947]: "A história historicizante pede pouco. Muito pouco. Demasiado pouco para o meu gosto e também para o dos outros". Pertence à própria natureza da ciência histórica, estar estritamente ligada à história vivida, de que faz parte. Mas pode-se e deve-se – e, em primeiro lugar, o historiador – trabalhar, lutar para que a história, nos dois sentidos da palavra, seja outra. [J. Le G.].

Tradução: Irene Ferreira

[pg. 147]

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Estas questões que incidem sobre os objetos (cf. objeto) da história, remetem-nos para outras, que incidem sobre o seu estatuto e os seus métodos (cf. método). Trata-se de uma projeção, talvez inconsciente (ef. inconsciente) de preocupações ideológicas (cf. ideologia) contemporâneas no passado (passado/presente) ou de um conhecimento, através de documentos e monumentos (cf. documento/monumento), de economias (cf. economia), de sociedades, de civilizações (cf. selvagem, bárbaro, civilizado), afastados de nós no tempo (cf. tempo/temporalidade)? Dever-se-ia ainda perguntar se a história constitui uma forma literária (cf. literatura), uma narração (cf. narração/narratividade) dos fatos, ou uma ciência que os estabelece, os descreve e os explica (cf. explicação). Quais são finalmente as relações com as outras disciplinas (cf. disciplina/disciplinas) que se interessam pelo homem (cf. também anthropos) em particular com a filologia e a crítica e também com a filosofia (cf.filosofia/filosofou)? Devem limitar-se à cultura (cf. cultura/culturas), nela integrando a cultura material, ou devem também incluir o ambiente, o clima, e finalmente a evolução dos seres vivos (vida) e do universo? As teorias (cf. teoria/modelo) genéticas (gênese) que hoje se desenvolvem não irão talvez desembocar numa história da natureza?
O debate sobre a história que põe em jogo todas estas interrogações e ainda outras, continua desde a Antiguidade (cf. antigo/moderno) e tem todas as possibilidades de se prolongar no futuro (cf.futuro).
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