domingo, 31 de maio de 2009

1492 – A Conquista do Paraíso: um épico de Ridley Scott



A Conquista do Paraíso de Ridley Scott é um dos filmes que merece ser visto por vários motivos, para aqueles que gostam de conhecer a História da América é, então, imprescindível. A começar pelo elenco estrelado por Gerard Depardieu, em incrível desempenho no papel de Colombo e Sigourney Weaver, esta como a então rainha Isabel da recém unificada Espanha.


Entre outros atrativos, há fatos históricos fundamentais para começarmos compreender as raízes culturais dos povos americanos: o primeiro já citado é o da Unificação da Espanha em 1492 que acontece justamente a partir de outro fato importante; o da expulsão dos mouros que por séculos viviam no sul da Europa, sobre este fato, a cena da substituição da “meia lua”, símbolo muçulmano, pela cruz, é uma síntese emblemática; há também a luta da ciência, em parte representado pela personagem de Colombo, contra a religião, que se opõe a viagem para não perder sua autoridade, já revelando um início de decadência que irá se agravar com a Reforma.


A Igreja Católica tenta, assim, com base nos livros sagrados, rebaixar as idéias que dão sustentação a viagem de Colombo, não propriamente por discordar delas, pois já era notório entre os intelectuais, em grande parte, formados pela Igreja, que a terra poderia ser de fato redonda, mas o que estava em jogo, era o domínio do saber, que deixaria de estar sob o monopólio da Igreja e passaria também para as mãos de exploradores e cientistas que deteriam a autoridade sobre um assunto que era, até então, exclusividade do poder Religioso.


Nessa perspectiva, o filme ressalta em uma cena de tirar o fôlego literalmente, o poder da Igreja Católica na Espanha e mostra a força política da Inquisição fazendo mais uma vítima, isso claramente evidencia os riscos a que Colombo estava submetido. Por outro lado e a despeito de todas as forças contrárias encabeçada pela Igreja Católica e por parte da Nobreza, os mercadores, personagens importantes historicamente, entram em cena para “patrocinar” sob os auspícios e as garantias do Estado espanhol, representado no filme pela Rainha Isabel, a “grande loucura” de Colombo, que não era lá, a bem da verdade, tão insana assim. Pois numa cena entre o mercador e o líder espiritual, fica clara a mutua dependência entre Estado, iniciativa privada e a Igreja e que, Estado e mercadores não tinham nada a perder, caso a viagem de Colombo não desse certo; por outro lado, se obtivesse sucesso, teria tudo a ganhar, inclusive, como bem sabemos hoje, a hegemonia econômica no século XVI conferindo a Espanha o status de Estado mais rico e próspero da Europa e porque não do mundo, graças aos lucros auferidos com a Conquista (e não descoberta) da América.


A viagem em busca do paraíso é uma epopéia a parte no filme, desde a habilidade de Colombo com os tripulantes evitando um motim até o aviso de terra à vista, passando pelos usos dos instrumentos marítimos, as doenças (escorbuto), o racionamento de comida e culminando ao encontro com os nativos e os rituais de posse feitos pela nobreza espanhola.


A partir daí, cada cena é desenvolvida a partir do eurocentrismo das personagens, a sua recusa deliberada em aprender com os nativos, o seu total desrespeito com a cultura ameríndia, tudo isso, evidentemente, culmina com o fracasso pessoal (em vida) de Colombo e com inviabilidade inicial da colonização espanhola que só vai acontecer com a chegada de Cortez já em meados do século XVI.


Bem para o final do filme, descobrimos que o filho caçula de Colombo, aquele que ele mostra, com uma laranja, a razão de o barco desaparecer no horizonte, outra cena emblemática, é o narrador do filme. Ele expõe as injustiças que seu pai sofreu no final da vida, a glória que Américo Vespúcio recebeu no lugar de seu pai, pois por mérito a América deveria se chamar Colômbia. Por fim, a trilha sonora do filme feita por Vangelis só vem estampar com a música, a marca dos grandes épicos.

sábado, 30 de maio de 2009

Pulp Fiction: inconseqüências e acasos – Tiros na hipocrisia



Eu me recuso a ver nos filmes de Tarantino apenas um passatempo violento e banal. Para mim suas cenas de violência são muito mais que isso, assim como seus filmes são muito mais que violência. Em Pulp Fiction, meu preferido, matar é uma profissão, como enganar é uma tática economicamente rentável, seja na compra de resultados de luta de boxe, no repasse dos lucros das drogas, etc.


Pulp Fiction é um desvelamento das hipocrisias da vida; talvez a visão cética que mostra com crueza a impossibilidade de relacionamentos sinceros e duradouros. É o desmascaramentos dos caracteres sociais e individuais. Não é nada muito sério, todos os argumentos são diluídos nos acasos predominantes da vida.


É como num conto policial, as motivações se perdem na trama, as ambições tornam-se sem relevância, nada vale muito à pena. Resolver o caso ou não, importa pouco no final. Entre bons e maus inexistem diferenças fundamentais e quando há distinções, é sobre atos dentro dos próprios sujeitos, são as escolhas e esquecimentos cotidianos, sem muito ou nenhuma explicação, que conduzem a trama e a vida, no final das contas. É como uma revista (pulp fiction) de contos policiais lida em um vaso sanitário enquanto defeca.


Quentin Tarantino faz de uma simples “cagada” uma pausa para leitura; de uma simples ida ao banheiro, uma “viagem”, não apenas um retoque na maquiagem, mas uma pausa necessária para refletir sobre seus atos, de resto, completamente inconseqüentes.



Trainspotting: uma imagem-crítica à vida frívola da contemporaneidade



Trainspotting é um filme sobre jovens e drogas que foge do clichê: vício/recuperação. O filme de Danny Boyle também tem outras coisas interessantes, sua montagem é alucinante, não-linear e suas cenas surreais são inesquecíveis.


O que dizer da cena de Renton mergulhando no vaso sanitário em busca de seu supositório de ópio ou de quando o próprio, após uma overdose, cai em uma “cova”, uma espécie de estágio entre a vida e a morte, e começa a ver as coisas e as pessoas ao seu redor através de um enquadramento bizarro.


É também uma crítica à vida vazia e consumista dos anos 80/90, o uso das drogas, nesse sentido, é uma opção, uma linha de fuga que recusa a vida frívola e medíocre. Porém, as personagens não são submetidas ou subjugadas pelo uso das drogas, os sujeitos não são levados a elas por influência negativa ou por forças externas (marginalidade, pobreza, etc), pelo contrário, o uso das drogas é uma escolha entre outras, é um consumo entre tantos outros supérfluos na sociedade, em vez de comprar uma máquina de lavar, um micro system ou uma televisão, as personagens preferem comprar um “pico” e fugir, por alguns momentos, da realidade sufocante que os cerca. No filme, as personagens tentam outras saídas, neste ponto, a droga é apenas outro cenário/personagem, como o é o futebol, o passeio no campo, o vídeo pornográfico furtado do amigo, a boate, as brigas no pub, etc.


As drogas também fazem parte da sociedade de consumo e não funcionará por muito tempo como linha de fuga. Por outro lado, a droga aparentemente cultuada no início do filme é também dissecada e questionada enquanto conduta de vida assumida pelas pessoas que a consomem, como as amizades provocadas e condicionadas pelo uso das drogas são rejeitadas e descartadas (exceto a de Spud, talvez por pena) pela personagem principal de Renton.


No fundo, o filme é uma crítica ao consumismo de nossos tempos; no final, até as drogas tornam-se supérfluas, assim como, as sociabilidades e as amizades que elas criam.

sábado, 23 de maio de 2009

Os Escolhidos

22/05/2009 14:54:08


Sérgio Andrade/Carlos Jereissati
Corpo estranho na privatização da Telebrás, em 1998, a dupla comanda agora a maior empresa do setor À época da privatização do Sistema Telebrás, em 1998, dizia-se que Sérgio Andrade e Carlos Jereissati, os dois empresários que assumiram a maior fatia da telefonia brasileira, ao menos geograficamente falando, não permaneceriam muito tempo no negócio. Tanto o primeiro, dono da construtora Andrade Gutierrez, quanto o segundo, do Grupo La Fonte, tinham pouca ou nenhuma experiência na atividade. Emergiram vitoriosos sob críticas por terem levantado com o BNDES a maior parte dos recursos necessários a honrar o arremate.
Dez anos depois, a dupla de empresários não só permanecia à frente da Telemar, já com o nome mudado para Oi, como conseguiu tornar inequívoco o reinado na telefonia nacional. Com a aquisição da Brasil Telecom, tornaram-se os acionistas majoritários da maior empresa de telecomunicações do País, dona de 65% da telefonia fixa, 42% do mercado de banda larga e 17% dos assinantes da telefonia celular.
Eike Batista
Conduzido ao mundo da mineração pelo pai, Eliezer Batista, Eike virou o homem mais rico do Brasil O empresário Eike Batista autointitulava-se, desde o ano passado, o homem mais rico do Brasil. O reconhecimento veio com a edição 2009 do ranking de bilionários da revista Forbes, que o colocou em primeiro lugar no País e 61º na lista mundial, com uma fortuna de 7,5 bilhões de dólares.
Filho do criador da Companhia Vale do Rio Doce e ex-ministro de Minas e Energia Eliezer Batista, Eike fez fortuna na área de mineração, ao comprar e vender jazidas de ouro, minério de ferro e, mais recentemente, reservas petrolíferas. O Grupo EBX, holding controlada por Batista, reúne empresas de mineração, exploração de petróleo, logística e energia. Após vender, por 5,5 bilhões de dólares, áreas de minério de ferro para a Anglo American, anunciou que negocia a venda do braço de mineração MMX.
Benjamin Steinbruch
Ao liderar os consórcios que fisgaram a Vale e a CSN, ampliou os negócios da família e virou um gigante Filho do fundador da Vicunha, maior gru-po têxtil do Brasil, Benjamin Steinbruch foi incumbido de buscar novos negócios para a família, na década de 1990. Na fase das privatizações, conseguiu liderar os consórcios que arremataram a CSN e a Companhia Vale do Rio Doce.
Em 2001, o empresário decidiu abrir mão de sua participação na mineradora e, após um complexo processo de descruzamento acionário, tornou-se o único controlador da siderúrgica, na qual concentrou suas apostas. Outro lance ousado do empresário foi levado a cabo em 2005, quando conseguiu adquirir a parte da família Rabinovich no Grupo Vicunha, que passou a ser controlado apenas pelos Steinbruch.
A última empreitada consiste em valorizar os ativos de mineração da CSN. No ano passado, Steinbruch conseguiu vender parte da Namisa a um grupo de siderúrgicas asiáticas por 3,4 bilhões de dólares. A operação reforçou o caixa da siderúrgica, que fechou 2008 com lucro recorde de 5,8 bilhões de reais e preparada para enfrentar os efeitos da crise financeira internacional.
Daniel Dantas
O homem que espiona, engana os sócios e controla partidos costuma ser tratado apenas como “polêmico” Apaniguados, jagunços ou os que querem parecer isentos costumam atribuir a uma suposta inteligência superior a ca-pacidade de Daniel Dantas de acumu-lar dinheiro. Só com a fusão entre a Brasil Telecom e a Oi, patrocinada pelo governo Lula, embolsou cerca de 2 bilhões de reais. O termo certo talvez seja esperteza.
O baiano de olhos azuis percebeu cedo que, no Brasil, uma maneira rápida de enriquecer é operar à sombra do Estado.Sua capacidade de infiltração no mundo político só é comparável à de fazer inimigos. Não existe um único negócio (repita-se: nenhum negócio) no qual não tenha tentado (e geralmente conseguido) passar a perna nos sócios. Um atento observador de Dantas assim o resume: “Juntar dinheiro é o menos importante. Ele gosta mesmo é do jogo de poder”. Sua ascensão deve-se, em princípio, a Antonio Carlos Magalhães.
Mas foi o governo Fernando Henrique Cardoso o responsável por seu regime de engorda, ao elegê-lo um dos vencedores do processo de privatização. Em 2002, o PT venceu as eleições e o banqueiro achou uma forma de se aproximar. Foi muito bem recebido pela legenda trabalhista. DD detesta perder. Quando não coopta, chantageia. Um dos métodos preferidos é a espionagem, o grampo ilegal, daí o apelido de orelhudo, gentilmente cunhado por esta revista (homenagem ao prazer de ouvir conversas alheias).
É personagem relevante na história recente da disputa pelo controle do Estado brasileiro, apesar de grande parte da mídia tratá-lo como santo ou mártir. Não há um governo de peso, um par-tido político de expressão que não tenha o que temer quando o assunto é Dantas. É uma das raras pessoas físicas a possuir representantes próprios no Congresso. A bancada do orelhudo é ecumê-nica: nela cabem representantes de quase todas as agremiações políticas

Editorial Carta Capital (em virtude de seu aniversário de quinze anos) Por Mino Carta

Como remar contra a corrente
(22/05/2009 16:18:28)
Mino Carta

Ponto e linha. Claro, objetivo. Pingos nos is. Preto no branco. A nova sobriedade. Back to basics. Direto, confiável. Mais qualidade, menos “flash”. Humor sutil e sofisticado.
O texto é de autoria de Mariana Ochs ao estabelecer os fundamentos do projeto gráfico que CartaCapital põe em prática a partir desta edição. Mariana, diretora de arte respeitada até na Madison Avenue, é velha conhecida dos nossos leitores. Cuidou da fisionomia da revista por três vezes e agora realizamos a sua quarta e preciosa intervenção. Mariana é boa intérprete do princípio dos gregos antigos pelo qual ética e estética são sinônimos. Os esclarecimentos acimaprovam a sintonia com o ideal helênico.
Esta edição é especial e atípica, por ser comemorativa de 15 anos de vida de CartaCapital a começar pela concepção. A qual se deu nestes mesmos dias de 1994, quando quatro jornalistas reuniram-se para inventar seu próprio emprego. Alhures estava difícil. Bob Fernandes, Nelson Letaif, Wagner Carelli e o acima assinado. Quanto ao novo projeto de Mariana, adapta-se à especificidade da edição, mas se mostrará mais claramente, em todos os seus alcances, a partir do próximo número. De linha, digamos assim.
Volto ao quarteto e à enésima aventura. Meu sobrinho Andrea, saudosa figura que se foi cedo demais, comandava a Editora Carta Editorial, fundada pelo pai, Luis Carta, dezoito anos antes. Ausente meu irmão, chamado pela Condé Nast a fundar a Vogue España em Madri, Andrea pilotava a editora e pretendia lançar uma nova publicação, de Economia e Negócios. Procurou-me com o afeto de sempre, respondi: “Sem falsa modéstia, isso eu não sei fazer”.
Luis ligou-me da Espanha, torcia para que eu, desempregado, topasse a parada. Expliquei: “Saberia fazer, creio eu, uma publicação sobre o poder, onde quer que se manifeste, na política, na economia, nos negócios, na cultura, em quaisquer gramados”. A ideia foi aceita. Chamei companheiros de outras jornadas e quinze anos atrás traçamos o plano de uma revista necessariamente mensal por causa dos recursos modestos. Houve hesitações apenas em relação ao seu nome. Alguém sugeriu Carta, eu recusei. Receava que soasse como exigência minha. Andrea queria Capital. Ficou como ficou.
Meados de agosto de 1994, ela foi às bancas. Em março de 1996 tornou-se quinzenal, solidamente amparada no primeiro projeto gráfico de Mariana Ochs. O plano era mais ambicioso quanto à periodicidade. A realização levou, porém, mais de cinco anos. A semanal nasceu na penúltima semana de agosto de 2001, mais uma vez programada graficamente por Mariana. Inicia-se aqui a separação de Carta Editorial e sua substituição pela Editora Confiança. Em seguida à eleição do ex-metalúrgico, em 2002, chovem as calúnias contra uma publicação que ousa remar contra a corrente. Revista chapa-branca, panfleto partidário.
Preto no branco, recomenda Mariana. Temos é uma mídia de pensamento único, leves nuanças não bastam para encobrir a senha geral. CartaCapital empenha-se em exercer o jornalismo em que acredita, baseado na fidelidade canina à verdade factual, na aplicação diuturna do espírito crítico, na fiscalização desabrida do poder. Não se expõe a sardinha à brasa de ninguém com o intuito de favorecer este ou aquele. Respeite-se o império dos fatos, nunca poluídos pela opinião. CartaCapital jamais esconde o fato, não nega, contudo, a sua opinião, e aferra-se a ela.
É quanto basta para inquietar. Às vezes me pego a imaginar o que se daria se fosse brasileira a The Economist, a semanal de maior prestígio no mundo. Ela distribui no Reino Unido pouco mais de 200 mil exemplares, tadinha. Comparem com os números de Veja. Sempre acontece que o planeta se curve diante do Brasil. Pois é, o que não se aquietou nestes quinze anos é a arrogância da minoria, seu exibicionismo provinciano contraposto ao medo pânico de perder os privilégios. Ou, simplesmente, de vê-los ameaçados. Os nossos 15 anos bastaram, no entanto, para convencer The Economist a fechar conosco uma magnífica parceria, que nos habilita a publicar seus textos em perfeita concomitância, como ocorreu com o número de fim de ano, realizado a quatro mãos.
Estética e ética. Opinião exposta sem meios-termos. Ainda exemplos. Na edição nº 30 de agosto de 1996 CartaCapital cavava sua trincheira contra o neoliberalismo em pleno ataque. Estava certa, ficou provado doze anos depois. De Bush, a semanal desde a penúltima semana de agosto traçou o perfil implacável, necessário, porém, no nosso entendimento, logo após a implosão das Torres Gêmeas, setembro de 2001.
Em 2002, antes do pleito presidencial, tomou partido a favor da candidatura Lula, por tê-la como a melhor. Prática comum do jornalismo dos países mais avançados, apontada por aqui, pela mídia da falsa isenção, como deslize moral imperdoável. Incrível, não nos arrependemos. E em 2006, às vésperas do segundo turno da reeleição, denunciamos as mazelas midiáticas urdidas para deter a avançada lulista, graças a uma reportagem de Raimundo Pereira, que certamente contribuiu para despertar algumas consciências.
Nesta edição evocamos nosso tempo de vida. Elegemos personagens e situação representativas do período para trafegar por este trecho de tempo e contá-lo aos nossos leitores. Não pretendemos a abrangência absoluta, a cobertura total. Acreditamos, de todo modo, ter iluminado diversos instantes deste passado recente. Pelo caminho, não descuramos de recorrer ao humor, como Mariana Ochs propõe. A vida, de resto, consagra todos os dias, hora a hora, a simbiose implacável entre a tragédia e a comédia, sem olvidar a farsa.
A ironia é arma afiada contra quem a desconhece. Ainda assim, Raymundo Faoro, mestre de todos nós, cuidava de me precaver: não exagere por esta senda, a maioria pensa que você fala sério. Pois é, às vezes a gente exagera.

domingo, 17 de maio de 2009

Crônicas da Educação III


Orgulho e Preconceito

Ao chegar à sala da vice-direção, a funcionária o aborda:

- Venâncio?

- Sim?

- Esta Sra. deseja falar com você?

- Olá bom dia, em que posso ser útil?

- Bom dia! O Meu filho estuda aqui e ultimamente ele vem sofrendo com preconceito.

- Nossa!, isso é grave, quem é seu filho e a partir de quando ele vem sendo hostilizado preconceituosamente?

- Já tem bastante tempo, não é só aqui não, mas como aqui é uma escola e eu espero que o Sr não compartilhe disso...

- Com certeza, não mesmo... continue...

- Pois é, eu vim aqui para que o Sr. tome providências a respeito.

- Que tipo de preconceito? Racial?

- Não! Embora ele seja negro o Francisnetto nunca teve esse problema, graças a Deus.

- Então qual é o tipo de preconceito e quem são os autores?

- Meu filho vem sendo chamado e tratado como gay! E eu te digo...

- Venâncio!

- Sr Venâncio eu te digo: meu filho não é bicha, nós somos religiosos e em nossa família ninguém é anormal.

- Senhora, acalme-se, Matilde, busque um copo com água para esta senhora, por favor!

- Tome, beba e agora se acalme, por favor. Vamos tentar resolver esse problema. Isso, acalme-se, muito bem.

- A Sra. acha que ser gay é um problema?

- É claro que é, isso é coisa do capeta!

- Olha, vou dar minha opinião sobre o caso, é apenas uma opinião particular. Se seu filho vem sendo hostilizado e constrangido moralmente, dependendo do contexto isso é muito grave e cabe até processo judicial quando bem fundamentado. E sob esse aspecto a Sra. pode ter certeza que a Direção da Escola vai apoiá-la em todos os sentidos.

- No entanto, eu discordo da Sra. quando diz que ser homossexual é um defeito, uma anormalidade. Todos aqui na Escola e na sociedade como um todo devem ser tratados com respeito e dignidade, independente se for preto ou branco, homem ou gay, corintiano ou palmeirense.

- Não sei se seu filho é gay, e isso só interessa a ele e a quem ele quiser contar. A orientação sexual de qualquer indivíduo é singular, embora seja um processo social. Veja, cada um, em respeito às leis, tem o direito de ser magro, gordo, bonito, feio, homem, gay e por aí vai.

- Agora, eu vou te fazer uma pergunta pessoal, e a Sra. responde se quiser. A Sra. acha que seu filho é gay? Se acha, isso te incomoda?

Aos prantos, a mãe de Francisnetto responde:

- Não sei... snif, aaacho que sim, snif, snif ó meu Deus porque isso comigo?, o que fiz de errado? porque essa desgraça se abateu sobre mim?

- Acalme-se minha senhora, por favor, isso não é uma maldição, isso cabe a ele, só a ele, é singular, não sofra com isso. Até onde eu sei ele é um menino educado, carinhoso, honesto; estas sim são qualidades imprescindíveis ao ser humano.

- Mas, o que os outros vão falar, o Sr. fala assim porque não é contigo, né?

- Não, minha senhora, é do fundo do coração, se minha filha se tornar um homossexual eu não vou lamentar, o importante é ela fazer o bem para si e para outros. Acalme-se, por favor, não chore mais.

- Os meus irmãos de fé, eu percebo, eles olham torto para Francisnetto...

- Acalme-se, beba mais água, sim?, por favor, isso, isso se acalme.

E inopinadamente ela se levanta:

- Olha aqui, já vi que o Sr. não vai resolver o meu problema, eu perdi meu tempo vindo aqui, esse assunto eu vou resolver lá em casa, essa sem-vergonhice do Francisnetto, ele me paga, a hora que ele chegar em casa vai ver só...

- Não faça isso, converse com ele, mas com calma, seja compreensiva, não faça nada impen...

E antes que Venâncio terminasse sua frase, a porta da sala bate fazendo um estrondo.