domingo, 15 de junho de 2008

Aforismos - Anarquia e Política


I - A condição de possibilidade do anarquismo não é a classe operária, é a marginalidade, a desterritorialização, o desterro dos imigrantes (nômades). A política exígua, liberal-democrática-estatista, do liberalismo excludente impõe a dominação e acarreta a indignação, bem aproveitada pelos anarquistas e canalizada na estratégia da ação direta, que procura na guerra política direcionar os anseios, impulsos e desejos através da ação direta/autônoma dos próprios interessados. Forma-se ora como resistência camuflada, como suporte para dor, ora como ataques: greves, boicotes, sabotagens, ocupações de propriedades, atentados, etc. Cria sociedades secretas e não-secretas, bases populares de novos hábitos culturais e educacionais, organizado pela ação autônoma possível.

II - O anarquismo, termo utilizado para designar parte do movimento operário socialista que era contra o parlamentarismo, em verdade, é um constructo histórico a posteriori. A unidade que se buscou criar, com isso, é artificial, não representa uma proximidade com os fatos. Por outro lado, se o termo unifica infinitas diferenças, em grande parte, indesejáveis e inaceitáveis, o que o sustenta, seu suporte verossímil é a ação direta, é esta prática que nos permite hoje, falar em anarquistas e sermos mais ou menos entendidos dentro do imaginário social e político que se criou desde então.

III - Assim como o Estado só consegue alcançar um nível de governo totalitário e assombroso quando utiliza aparatos e mecanismos variados e imperceptíveis ao ponto de na sociedade de controle, a dominação constituir-se também uma autodominação, auto-limitação e auto-proibição dos corpos configurando-se como um biopoder. Numa sociedade regida pela autonomia dos produtores, pela autogestão e pela ação direta dos interessados procurando alcançar uma ampliação da igualdade individual, a relação de poderes tem que estar ao nível da ética e não da lei, mas com uma diferença fundamental, na sociedade de controle a ênfase é o controle mútuo de todos para todos, numa sociedade autônoma, a liberdade individual e a igualdade social por princípio são os parâmetros para as liberdades individuais dos outros, sob a garantia e para a garantia da igualdade social.

IV – A noção de política atrelada por um lado à idéia de polis e por outro à forma Estado não oferece nenhum método eficiente de inteligibilidade à ação direta. Mas, talvez ainda não devêssemos reivindicar à ação direta uma categoria de político mais ampla capaz de incluí-la, pois aí poderíamos criar uma distorção já que a ação direta é, sobretudo, um estar fora da política que combate numa guerra estranha essa mesma política. A ação direta é aquilo que a política jamais pode caracterizar, pois ela lhe escapa e qualquer recurso de identificação seria insuficiente. A ação direta é a autogestão em movimento, o exercício da autonomia, é a anarquia, o antigoverno, a antiautoridade... A ação direta, portanto, escapa à classificação da política. A ação direta é um mito que aponta rumo ao “para além” da política, aquilo que não se pode pensar na, pela ou com a política. A política é representação de desequilíbrios de poder, o poder anômalo que desrespeita o poder e liberdade de cada um perante aos outros, a política é governo de uns (minoria dirigente) sobre outros (maioria dirigida), não importa se com o aval da maioria ou se num ato autoritário. Assim, política e autonomia são inconciliáveis e, por isso, a ação direta nos soa como uma estratégia, no mínimo interessante, quando não se abdica de sua relação íntima com a ética libertária, principalmente, aquela levada às últimas conseqüências pelo anarco-comunismo de Malatesta.

V - A instauração da guerra, embora, ela tenha sido engolida e controlada pela política, pelo Estado, ao se instituir como exército, o conceito de guerra, ainda assim, no mínimo nos possibilita a pensar o jogo político “para além” do político estabelecido. Tal conceito nos permite imaginar “um fora”, algo imponderável, algo imprevisível, aquilo que não reconhece leis ou regras prévias, pois estas serão definidas na própria guerra. A política delimita um campo de forças, mas a ação direta está fora dessa delimitação. Nessa linha de raciocínio, a definição de anarquia em Malatesta nos propõe uma nova visão acerca da organização social fora do parâmetro até então universal: o Estado e vai além, para infelicidade de seus detratores que quiseram lhe incutir um simplismo e uma ingenuidade política, ao admitir uma autoridade ou influência limitada pelo saber específico, ligando isto à sua concepção de igualdade libertária, que não só abrange a abolição da propriedade privada, mas também a abolição da divisão do trabalho primária entre trabalho intelectual e manual. Para o gênero de discurso utilizado predominantemente por Malatesta e a recepção a que visava, o seu anarquismo consegue ir muito longe na problematização da sociedade, seus argumentos são coroados não só pela coerência de princípios, mas pela maleabilidade às condições reais de luta: enquanto a possibilidade de revolução autônoma, isto é, pela ação direta dos verdadeiros interessados como os excluídos e explorados no mundo burguês ainda não for possível, há que se lutar por aquilo que está próximo ou resistir ao pior da melhor maneira possível, nem que isto signifique ser taxado de reformista.

VI - Para os anarquistas como Malatesta não basta fazer a revolução a qualquer preço, a violência se legitima quando em defesa dos excluídos, e se para a revolução ser possível, for preciso imposição de poder, a constituição de uma dominação interna no movimento e externa para o estabelecimento da nova vida (isso depois da revolução), já não existiria assim revolução social, pois para ele, não há revolução que não seja pelas ações do povo, enfim, não há revolução por representação, sem autonomia dos diretamente interessados, por isso, a ação direta é um conceito chave para se entender as práticas anarquistas. A ação direta é a condição de visibilidade ou de possibilidade de existência e afetação do que denominamos anarquistas, em outras palavras, seguindo a trilha de Foucault, a ação direta é a condição de possibilidade para se referir à anarquia e ao que denominamos anarquismo, seja no singular, o que é mais problemático, seja no plural, o que o é menos.

VII – A anarquia em tese não pode existir, pois não há vida social sem relações de poder, e o jogo de poder já tende a significar governo, embora, não necessariamente dominação. Mas a anarquia aponta para a possibilidade de relações de poder sem a perenidade e a fexidez necessárias à caracterização de um governo. Por outro lado, uma das bandeiras mais caras aos anarquistas é a autogestão, a autonomia de decisão dos interessados a cuidarem de seus interesses, livre de qualquer determinação ou imposição externas, desde que se respeite à ética libertária (que não é uma moral que paira sobre os homens, mas uma ética de princípios solidários, igualitários e libertários em constante construção e aprimoramento, pois o campo da ética não está livre das determinações sócio-econômicas e uma ética plenamente anarquista só seria possível em uma sociedade libertária, aqui e no tempo em que estamos só podemos imaginar como ela seria). A grande questão que se coloca ontem e hoje para os anarquistas é a de possibilidade de freiar os desequilíbrios do jogo de poderes nas relações sociais. Embora, anarquia seja um antigoverno, ou o projeto de uma sociedade sem governo, isto, até certo ponto, significa autogoverno de uma sociedade que se constrói autonomamente com a autogestão da produção industrial, simbólica... Pois ainda que o autogoverno seja um governo, ele o é de si próprio, com base, no caso dos anarco-comunistas, numa ética libertária solidária que se estabelece e procura ampliar o imaginário político para concepção de uma sociedade cada vez mais igualitária e livre. A autonomia refere-se a uma automodelagem dos indivíduos participativos dessa sociedade, mas os participantes não podem ser fixos e seus poderes devem ser auto-regulados tanto pelos que o praticam como pelos que o sofrem. A anarquia seria uma democracia direta, com base na autogestão da produção e/ou seja, a organização da sociedade autonomamente.

VIII - Quanto à exeqüibilidade ou não de tal projeto, a isto não nos cabe opinar nem emitir juízo, simplesmente pelo fato de que nada, ou seja, nem a mais confiável e exata das ciências pode provar/comprovar a impossibilidade de algo, o magma de significações em que vivemos não enxerga o horizonte do novo pelo simples fato de o novo, ser inédito e imponderável. A imaginação transcende as bases do agora, o futuro não está inteiro no presente e há um corte de fluxo temporal que nos impede de afirmar qualquer coisa que se queira para além do segundo em que vivemos e não podemos nem sequer ter a certeza de que no minuto seguinte ainda estaremos vivo. Mesmo no declínio do feudalismo, a idéia de uma sociedade regida pelo mercado e controlada pelos burgueses era impossível de se prever. No mundo feudal, uma revolução como a burguesa, uma mudança radical de parâmetros econômico, político e social não poderia ser em si mais do que um sonho que nem se podia sonhar, um desejo sem objeto, era o que era. Mas, com relação ao governo em uma sociedade anarquista, não poderia se instituir por meio de leis, se bem que não pudesse erigi-la sem regras. Mas estas estariam no nível da ética e tornar-se-iam política no exercício autônomo e auto-regulado delas. A anarquia seria uma sociedade regida pela autogoverno e pela autonomia, pelo poder individual ou coletivo reconhecido reciprocamente pelos outros, que se legitimaria não pela obediência a uma autoridade, mas à livre aceitação do exercício de poderes em condições de igualdade social. A autoridade também não estaria fora dessa sociedade, mas se restringiria às habilidades específicas e aos conhecimentos que uns dominariam mais e melhor que outros, desde que reciprocamente reconhecidas... A existência de hierarquias pontuais jamais foi alvo das críticas libertárias mais lúcidas como as de Bakunin e as de Malatesta.

IX – A crítica às unidades definidas a priori e às identidades fixas, universais (indivíduo, por exemplo), é uma faca de dois gumes, todo o discurso tem por intento, unificar, agrupar, sintetizar idéias, hipóteses... Toda palavra é em si uma gaiola da ação, do trabalho, enfim, dos vários aspectos e diferentes momentos que ao serem apreendidos, são paralisados e a própria apreensão significa em maior ou menor grau a uma identificação, mesmo sendo identidades provisórias, o que descrevemos é o que conseguimos identificar como o que é, ou o quê imaginávamos ser.

X – Creio não fazer mais sentido falar em utopia, pois afinal o que esta palavra nos diz? Utopia é o que não pode ser? Mas que ciência e que alquimia pode me provar isso? E se utopia é o que ainda não foi, que certeza terei em acreditar que um dia ela será? Melhor, que ganho, eu teria em nomear uma esperança um projeto, um sonho de utopia? Por outro lado, o mito, um termo mais rico principalmente quando tem como função ampliar o campo político além do racional, da razão e mais quando nos faz perceber que entre razão e paixão existem misturas ou mesmo um fluxo intenso e confuso, muitas vezes indistinguível quando se quer separar uma e outra. De outro, quando o mito (Sorel) é trazido como uma força atuante no presente, que nos dá ânimo e nos motiva a ultrapassar os limites do tempo e do espaço a que chamamos presente, torna-se um instrumento e um objeto de análises imprescindíveis.

XI – O real é composto de razão e paixão, os mitos são como uma pré-realidade possível e em construção... Os mitos, mesmo os científicos, são moventes da ação. O domínio da ciência é um mito, a infalibilidade da ciência é um mito. Nessas afirmações sobressaem aspectos positivos e negativos. Passa-nos a idéia de que a ciência é falha, e a palavra mito nos possibilita a crítica ao que no caso seria uma enganação, uma inversão, enfim, uma mentira, digamos, ideológica?, algo que não se pode dar crédito, uma lenda, uma fábula; mas existe o outro lado, de que mesmo, no caso a ciência, sendo falha, a análise científica, isto é, o mito científico-iluminista nos motiva a achar que podemos entender o mundo para mudá-lo, e nisto reside a sua validade que propulsiona a ação. De nada adiantaria, nesse caso, dizer que é racional ou mitológico, pois o que importa é que é real, mesmo sendo simbólico, o mito age/interage efetivamente na sociedade.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Militantes e Organizações - Inter/Relações, Pluralidades e unidade

O estudo das diversas e diferentes organizações que compuseram o que, mais amplamente, chamaremos de socialismo revolucionário brasileiro nos impõe um problema de apreensão histórica inicial: como traçar os caminhos e des/caminhos, as continuidades e descontinuidades dos grupos formados pelos militantes que fizeram a história do movimento operário brasileiro, em especial, o dos primeiros anos da República?

Como captar historicamente grupos fugazes de breve duração, que se refizeram várias e várias vezes, que mudaram o programa, reformularam as práticas em torno de jornais operários e folhetins, mudaram de estratégias, táticas; ora estavam no ataque, em meio ao povo, em greves, boicotes, congressos como militantes eufóricos enxergando a revolução social cada vez mais próxima; ora estavam na clandestinidade, escondidos, fugindo da censura, da repressão, da perseguição da polícia política, fechando jornais, abortando números, condenando a apatia dos trabalhadores, como uma minoria de lutadores frustrados, na defensiva, buscando e cedendo a outras alternativas de conquistar a adesão como piqueniques, operetas, teatros; em outras vezes estavam alegres construindo escolas modernas, modelos de educação para a sociedade que almejavam; noutra ocasião estavam furiosos e moralizadores, combatendo a prática desportiva do futebol, o tabagismo, o alcoolismo, os bailes... todas as formas de diversões degeneradamente burguesas como, em geral, justificavam.

Como controlar a ânsia de nomear, que é sem dúvida uma das necessidades do ofício do historiador, como é a de designar, de enquadrar as ações desses grupos militantes em periodizações, em continuidades históricas, algumas vezes forçadas, escondendo ou dissimulando a falta de documentação, de ligação dos fatos dispersos e incoerentes. Como evitar a caracterização, as generalizações, por outro lado, como manter o sentido de dar uma explicação coerente à pesquisa sem denominar uns de anarquistas outros de socialistas pelegos, mas depois ver que entre os anarquistas havia dissidências, falta de consensos, mais pluralidades que unidade, em muitos momentos, sindicalistas revolucionários em organizações aparentemente, ou hegemonicamente, anarcossindicalistas ou anarco-comunistas, como escapar a tentação de escrever que Neno Vasco fora um anarco-comunista, embora, defendesse o anarcossindicalismo ou o inverso que fora um anarcossindicalista que estava entre os anarco-comunistas como Gigi Damiani.

Como explicar sem caracterizar ou como não caracterizar explicando? Eis o dilema que nos toca fundo. Para se entender a força do movimento operário brasileiro na Primeira República seria absolutamente necessário tentar descrever as ações dos principais militantes dentro das modalidades dos anarquismos. Neno Vasco perderia sua importância, se fosse ou não anarco-comunista?, provavelmente não, mas que historiador de posse de provas mesmo que parciais poderia se furtar a tal afirmação, por assim dizer, uma descrição mais específica, mais exata.

Mas creio que o problema está em outro lugar, em dizer e reforçar que o homem, no caso o militante, não é em si uma unidade, um indivisível, o indivíduo em sua acepção é a parte indivisível da sociedade, mas é atravessado por diversos e diferentes discursos em períodos e durações distintas que o faz ir e vir, ser e não-ser, ter e não-ter, fazer e não-fazer, às vezes ao mesmo tempo, involuntariamente ou por razões que o pesquisador histórico jamais terá como saber, subjetividades que se perderam no tempo, que não foram compartilhadas com outros, papéis, documentos de todo tipo... o que chamamos indivíduo, militante, são muitos em um só, ora contraditórios, ora assimiláveis ou relacionáveis, equivalentes...
Quando se trata de grupos o problema se complexifica, pois o grupo é uma unidade, mas muitos se constituíram unidades plurais ou pluralidades unitárias, grupos dentro de grupos que compunham organizações diversas, que tinham ligações com outras organizações diferentes, que se criticavam mutuamente, como também se confraternizavam mutuamente, que se cindiam sem aviso prévio ou sem marcas da cisão seja em jornais ou outros documentos de época.
Enfim a decodificação das ações dos militantes e organizações, a tradução/recriação por outros meios de suas práticas e idéias, dos princípios, das divergências, das contradições para o formato de um trabalho acadêmico, às vezes pode sofrer alterações e distorções que chegam ou beiram ao absurdo, mas esse é o risco do ofício dificílimo de tentar esclarecer o que não existe mais enquanto vida, mas enquanto possibilidade de memória, de rememorização, como um domínio da história e de seus manipuladores, nós, os historiadores.