quinta-feira, 17 de julho de 2008

O agir político autônomo

Partimos do pressuposto de que a ação direta é uma ação política. Entendemos assim porque, para nós, política compreende ações que não estão restritas as formas políticas dominantes que são expressas através de Estados democrático-liberais.

A ação direta é do ponto de vista teórico uma crítica externa ao Estado, aos poderes instituídos, uma recusa às regras formais de uma democracia liberal. Por conseqüência, constitui-se no agir autônomo das massas, que passou a ser denominada ação direta em 1906, no contexto de lutas movidas pelos sindicalistas revolucionários franceses. Assim, as revoluções sociais sempre começaram por meio de ações diretas do povo que ia ocupando os espaços de decisões políticas de quem antes estava no poder, contudo, no decorrer do processo revolucionário, o povo, depois de enfrentar os maiores perigos era, geralmente, relegado a segundo plano, deixando a administração da sociedade nas mãos de outras pessoas ou de pseudo-representantes do povo, assim terminava ação direta, porque acabava a autonomia popular.

Mas a ação direta nem sempre termina em revolução, ela pode caracterizar um simples boicote de produção, de consumo, ou uma greve parcial, geral, ou ainda atitudes de sabotagem na produção, na distribuição, ou pode ainda significar a ocupação de propriedade, como fazem as pessoas do movimento dos Sem Terra, e em casos extremos a ação direta representou também atentados contra autoridades.

Nesse ponto, ocupar propriedade, atentados contra autoridades... surge a pergunta, a ação direta é uma expressão política restrita aos anarquistas? Não, tanto que a expressão escrita, segundo nos consta aparece tardiamente em 1906 entre os sindicalistas revolucionários, anarco-comunistas, anarcossindicalistas, sindicalistas e socialistas de toda ordem.

Por outro lado, a ação direta, o agir autônomo dos diretamente interessados, foi sempre uma bandeira anarquista. Os anarquistas desde a metade do século XIX, para sermos mais preciso, eram aqueles que rejeitavam a via parlamentar, que se insurgiam contra as instituições liberais de poder, que apontavam o Estado e o capitalismo como o grande mal da sociedade, nesse sentido, a ação direta enquanto estratégia e, mais que isso, enquanto aglutinador de sensibilidades foi a marca principal dos que se diziam e agiam como anarquistas.

Mas nesse ponto, podemos entrever uma distinção na ação direta anarquista, principalmente, alentada entre os anarco-comunistas italianos que tiveram nos escritos de Malatesta sua maior e melhor expressão. No caso específico da ação direta defendida e difundida pelos anarco-comunistas organizacionistas, como passaram a ser denominados os companheiros de Malatesta, era uma ação direta ligada a uma moralidade específica em que a defesa da ação violenta por parte dos anarquistas só se justificava a partir de um objetivo maior que era o da sociedade igualitária para todos, e apenas num contexto em que os anarquistas tivessem conquistado a adesão da maioria e, quando assim, tivessem agindo a favor e com os oprimidos.

Para os matestetianos, enquanto o povo em sua completa maioria não quisesse fazer a revolução, restaria para os militantes libertários apenas a luta pelo menos pior, ou seja, criar comunidades de resistência, sociabilidades fraternais, organizações de apoio mútuo, escolas de ensino libertário, em suma, a criar micro-sociedades, se é que podemos dizer isso, onde pudesse se erigir a solidariedade fraterna entre as pessoas, um outro agir ético baseado na igualdade e na liberdade, mesmo que, no caso, isso fosse restrito aos espaços de lazer libertários ou a períodos do dia em que os trabalhadores conseguissem escapar da exploração capitalista.

Esses núcleos de convivência libertários existem hoje em dia e podemos vê-los com mais freqüência do que se imagina. Há muitas organizações anarquistas espalhadas pelo mundo que buscam demonstrar que outras possibilidades de convivência são possíveis. No contexto dessas organizações libertárias, busca-se criar regras de sociabilidade com base no respeito e apoio mútuos, sem hierarquias pré-definidas, sem instituição de autoridades, sem mecanismos de coação, repressão, opressão ou de controle. Tais espaços são regidos pela autogestão igualitárias das atividades, quando são cooperativas autônomas, há muitas espalhadas pelo mundo, dependendo de qual linha teórica anarquista, a produção é dividida com base na necessidade de cada um ou conforme o trabalho feito por cada pessoa. É mais freqüente vermos núcleos de memórias anarquistas e federações regionais que procuram colocar em prática as idéias anarquistas num contexto mais reduzido.

O que é comum nesses núcleos é a concepção ética que se funda na solidariedade, na autonomia, na igualdade e na liberdade, isto é, na livre associação entre as pessoas que se uniram, justamente, por acreditar em objetivos comuns e, se no desenvolvimento das relações tal união for desfeita por um ou mais participantes, não haverá nenhum tipo de represália, multa ou quaisquer coisas do tipo. Nessas organizações o que vale é o agir ético, muito mais que qualquer lei, os indivíduos tem para si e para outros uma obrigação de respeito e solidariedade, mas caso desistam disso, cada um está livre para seguir o seu caminho da melhor forma que lhe apetecer. A liberdade de um só existe enquanto existir a liberdade do outro. Os libertários ainda vivem! No Brasil, mesmo depois de determinada historiografia pensar ter enterrado o movimento operário da Primeira República junto com os anarquistas, as várias federações e organizações libertárias brasileiras comprovam isso.

Quando foi que o Estado tornou-se expressão da própria política, isto é, do agir político em si? Quando foi que a História do Estado tornou-se uma história estatista auto-referente, auto-explicativa, uma justificativa em si mesma. Que é o Estado, que entidade é esta que chamamos de Estado. Onde ele está? O que ele faz, que chegamos ao ponto de não conseguir pensar em viver sem ele? Quando que a História política moderna se naturalizou?

sábado, 12 de julho de 2008

Anarquia versus Governo - organização autônoma e solidária contra autoridade, poder e dominação


A anarquia segundo Malatesta significa: Sociedade organizada sem autoridade. A partir dessa definição cabe nos perguntar de que organização e autoridade se refere o anarco-comunista italiano. Em um sentido mais amplo e antigo, anarquia é uma sociedade sem governo, o que na acepção predominante ao longo dos séculos significa bagunça, desordem. O que está em jogo então, tanto na definição anarco-comunista quanto na acepção mais geral do termo é a possibilidade ou não, de haver uma sociedade organizada sem governo, ou pelo menos, ainda com base em Malatesta, uma sociedade organizada com mais liberdade e igualdade e menos autoridade possíveis.

Com efeito, podemos indagar de outra maneira: por que o sentido de anarquia se tornou pejorativo? A resposta é óbvia: porque a organização social foi desde tempos imemoriais ligada a algum tipo de governo. Isto nos leva a constatar que a definição de Malatesta é uma proposição que procura acertar o centro do problema, dessa forma, sua propaganda libertária visava conquistar adeptos ao ideal anarquista e a combater os diversos preconceitos a que os militantes anarquistas eram vítimas. Contudo, é mesmo possível haver uma sociedade organizada sem autoridade? E por que Malatesta usa o termo autoridade e não governo? Haveria, assim, uma confusão entre esses termos nas palavras do anarco-comunista?

Os anarquistas, embora, revolucionários nunca descartaram as lutas ocasionais e imediatas contra o capital. A luta pelo possível também é uma marca do anarquismo de Malatesta, e é exatamente nesse ponto, em que eram criticados pelos marxistas e acusados de reformistas. Mas isso nunca correspondeu, de fato, as práticas dos militantes anarco-comunistas, pois eles não queriam “emancipar o povo” e sim que “o povo se emancipe”.[1] Enquanto o momento da revolução popular não estivesse preparado caberia aos anarquistas lutar ao lado do povo contra os patrões capitalistas por melhores condições de trabalho e mostrar pelo exemplo da luta solidária que capital e trabalho são inconciliáveis. Para os anarquistas, de uma forma geral, a luta era o maior aprendizado, portanto, como para os anarquistas não basta apenas o fim: o comunismo libertário (igualdade e liberdade numa sociedade em os indivíduos sejam solidários e autônomos), mas também os meios para se chegar ao fim. Dessa forma, outra marca desse anarquismo foi resumida em poucas palavras: “Se para vencer tivéssemos de construir cadafalsos nas praças públicas, eu preferiria ser derrotado”, é evidente que para quem acusava os anarquistas de reformistas, esta frase não fazia sentido, pois os meios estavam desligados dos fins.

Nessa perspectiva, a abordagem que faremos do anarquismo, mais especificamente, do anarco-comunismo italiano, nos força a analisar como Malatesta concebia a idéia de autoridade e como essa concepção se mostrava possível no imaginário libertário do século XIX, pelo menos desde Bakunin, o prisma pelo qual atravessou as diversas práticas anarquistas, rizoma através do qual surgiram as diferentes tendências no interior do socialismo-revolucionário-libertário.

Bakunin, que dizia preferir os erros surgidos de um excesso de liberdade do que os males causados pela autoridade mesmo àquelas que desde tempos imemoriais eram consideradas necessárias como na relação de autoridade dos pais para com os filhos. Bakunin tendia a conceber toda autoridade como negativa, mesmo tendo-a como ponto de partida em relação aos pais com os filhos e aos professores com seus alunos. “A educação das crianças, ao tomar como ponto de partida a autoridade, deve sucessivamente desembocar na mais completa liberdade”. [2] Contudo, enfatizava uma distinção marcada pelo termo “influência”:

"Quanto a influência natural que os homens exercem uns sobre os outros é ainda uma dessas condições de vida social contras as quais a rebelião seria tão inútil quanto impossível. Esta influência é a base mesma, material, intelectual e moral, da solidariedade humana".[3]

Nesse sentido, podemos perceber a indistinção entre autoridade imposta e consentida, mais ou menos definida posteriormente por Malatesta, e que esta última era tida por Bakunin como “influência natural”, mesmo que aos olhos de hoje, o próprio termo “influência” nos pareça mágico, desprovido de qualquer possibilidade de verificação científica.[4]

Malatesta, por outro lado, entendia a autoridade como um conceito ambíguo e por isso de forma mais realista, isto é, a partir das dificuldades concretas de construção de uma sociedade anárquica. Assim, compreendia

"autoridade como a faculdade de impor sua vontade. Todavia, também significa o fato inevitável e benéfico que aquele que compreende e sabe fazer uma coisa, consegue fazer aceitar mais facilmente sua opinião. Ele serve de guia, quanto a esta coisa, aos menos capazes que ele".[5]

Portanto, nessa perspectiva, a autoridade para Malatesta se desdobra em pelo menos dois significados: um negativo que se baseia na imposição de uma vontade própria, pessoal e a outra em que alguém por dominar uma prática ou um certo conhecimento consegue se fazer aceitar pelos outros que não o dominam tão bem. A primeira se relaciona com a definição de Weber de autoridade ilegítima, a segunda é legítima e aceitável desde que limitada pela aptidão, “o fazer melhor que os outros determinada atividade”.

Malatesta defendia uma tese bastante interessante acerca da autoridade. Para ele, a autoridade não é necessária para a organização social, pelo contrário, a autoridade teria surgido em meio à desorganização. Assim, para não chegarmos a uma conclusão apressada e equívoca do que pensava Malatesta, pois poderíamos dizer que há pessoas mais aptas ao governo do que outras e assim, a definição “benéfica” de Malatesta aceitaria uma sociedade governada, o que não seria adequado ao que ele pensava e preconizava, e isso também não seria conciliável a qualquer tipo de anarquismo.

A autoridade para ele poderia ser aceitável, mas nunca necessária ao ponto de sua ausência poder provocar a desorganização social. Sobre isso, o anarco-comunista italiano também ressaltava que:

"Temos esta opinião e é por isso que somos anarquistas, caso contrário, afirmando que não pode existir organização sem autoridade, seremos autoritários. Mas ainda preferimos a autoridade que incomoda e desola a vida, à desorganização que a torna impossível".[6]

Mas que tipo de autoridade “que incomoda e desola a vida”, pois que sem ela, a vida é “impossível”? Antes de buscarmos respostas. Tentemos adentrar um pouco mais na concepção de autoridade no pensamento de Malatesta:

"Abolir a autoridade, abolir o governo, não significa destruir as forças individuais e coletivas que agem na humanidade, nem as influências que os homens exercem mutuamente uns sobre os outros; seria reduzir a humanidade a uma massa de átomos desprendidos uns dos outros e inertes, coisa que é impossível e que, se fosse possível, seria a destruição de toda a sociedade, a morte da humanidade".

Este trecho é esclarecedor, pois percebemos que para Malatesta, um tipo de autoridade é equivalente a governo, o outro tipo, comumente também denominado autoridade, em alguns casos, até por ele mesmo, tem proximidade ao sentido que Bakunin dava a influência social, ou a inter-relação e inter-dependência dos indivíduos em sociedade. A passagem também revela o seu registro: um panfleto A Anarquia em que o autor procurou responder as críticas dos adversários burgueses e mesmo de socialistas de outras vertentes, ao mesmo tempo, em que se propôs elucidar pontos ainda obscuros das diretrizes do anarco-comunismo que defendia.

Percebe-se também que, embora, faça um esforço para, de um lado, contrapor às criticas de quem acusavam os anarquistas de teoricamente se oporem a qualquer tipo de autoridade, mas na prática imporem uma doutrina que pregava outro tipo de autoridade e de outro localizar e precisar o que ele, enquanto, comunista libertário, entendia como autoridades na sociedade capitalistas a serem abolidas, fica claro, porém, uma certa confusão nos conceitos utilizados por Malatesta como os de força, autoridade e governo.

Mesmo o autor tendo por objetivo separar de um lado a autoridade, em vista da organização, da preparação e conforme o contexto da luta até aceitável desde que limitada pela aptidão de cada indivíduo, isto é, naquilo que cada um faz de melhor, e de outro, o que entendia por influência social, que estava ligada a própria dependência entre os indivíduos em sociedade e, portanto, necessária e responsável pela própria vida social, a confusão conceitual não se desfaz.
E esta dificuldade foi enfrentada por Bakunin em 1872, e demos um exemplo acima. Mas continuamos com Malatesta acerca da autoridade:

"Abolir a autoridade significa abolir o monopólio da força e da influência; abolir a autoridade significa abolir esse estado de coisas no qual a força social, a força de todos, é o instrumento do pensamento, da vontade, dos interesses de um pequeno número de indivíduos que, através da força de todos, suprimem, em seu próprio benefício e no de suas idéias, a liberdade de cada um. Abolir a autoridade significa destruir um modo de organização social pelo qual o futuro permanece açambarcado, de uma revolução à outra, em proveito daqueles que forma os vencedores em um determinado momento".

A autoridade aqui é tida como um monopólio da força e da influência (nesse sentido negativo e prejudicial, pois tende à dominação), mas não seria este monopólio da força, o poder, mais especificamente, o poder estatal? A imprecisão conceitual confunde os sentidos de poder, de autoridade e de dominação, o que é bem compreensível se levarmos em conta o gênero discursivo utilizado pelo autor: a propaganda política? Mas tentemos, mesmo assim, em meio às ambigüidades de um panfleto político e, assim, lembremos que Malatesta concebe dois tipos de autoridades, uma que procura se impor e outra que busca o consentimento ou o convencimento, limitada pela melhor aptidão de cada um a determinadas coisas e fazeres que, por isso, tenderia a influenciar os demais, naturalmente.

Outro ponto importante é que para Malatesta a autoridade não é necessária para a organização social e sua própria definição de anarquia e anarquismo estão ligadas a isso, pois

"se é verdade – adverte Malatesta – que os anarquistas são incapazes de se reunirem e de entrarem em acordo entre si sem se submeter a uma autoridade, isto quer dizer que ainda são muito pouco anarquistas".[7]

Assim, em vez de acentuarmos a confusão conceitual, tentemos agora a entender os motivos que levaram Malatesta a distinguir a autoridade da influência social, a qual se referia Bakunin, que era a base da relação entre indivíduos em sociedade, diferentemente, da autoridade que tem para ele o sentido de governo ou mesmo de poder.

Se analisarmos o imaginário político e os objetivos de Malatesta na ênfase da anarquia como uma sociedade organizada, e para isso, temos vários indícios, entre os quais, destacam-se a divisão interna do anarco-comunismo, polarizada nas divergências teóricas entre Kropotkin e Malatesta e a preocupação dos anarquistas sociais de um modo geral com a imagem negativa que os atentados de anarquistas a grandes personalidades proporcionaram ao movimento.

Dessa forma, a autoridade a que se referia Malatesta era a autoridade concreta, que emergiu com a sociedade burguesa e com os preceitos do liberalismo, em suma, o ataque/defesa de Malatesta tinha como alvo a autoridade do capital, da dominação econômica. Por isso, seria injusto, nós em pleno século XX impor uma definição filosófica entre autoridade, poder e dominação que evidentemente existe, mas não era a preocupação de Malatesta e de nada nos ajudaria a compreender o discurso anarco-comunista, do qual ele foi uma voz proeminente.
A parte os problemas conceituais, voltemos ao nosso tema: em que sentido então, se sustenta a anarquia como sociedade organizada sem autoridade, bem entendido, a autoridade específica que emerge do domínio social burguês.

A anarquia, assim como o socialismo, tem por base, por ponto de partida, por meio necessário a igualdade de condições; ela tem por farol a solidariedade e por método a liberdade. Ela não é a perfeição; não é o ideal absoluto que como o horizonte, afasta-se à medida que avançamos, mas ela é a via aberta a todos os progressos, a todos os aperfeiçoamentos, realizados no interesse de todos.[8]

Mesmo se levarmos em conta o anarquismo propagado por Malatesta não apenas como método revolucionário socialista, mas também como um modo de viver e compreender a vida que deve ser, por meio da propaganda difundida e nunca imposta, para que a classe operária autonomamente[9] possa fazer a revolução e construir a sociedade anárquica. Mesmo esta anarquia sendo a um só tempo, modo de vida, método e objetivo a realizar pela autonomia operária.

Ainda nos restam questões: como uma sociedade organizada pode existir sem autoridade? Se nos parece tão impossível e infantil atualmente tal idéia, como alguns homens e mulheres creditaram toda a sua força e empenho ao longo de toda sua vida a este ideal? Quais as condições que possibilitaram tal idéia “infame”?

Mas, vamos por parte, continuemos na trilha do pensamento do anarco-comunismo italiano. Se autoridade para Malatesta significa a autoridade emanada do domínio burguês, ainda cabe-nos indagar: como organizar uma sociedade em que pudesse ser mantida a autonomia e liberdade individual em um contexto de igualdade? Como imaginar uma sociedade que pudesse organizar eqüitativamente os poderes individuais que cada um exerce ao estar no mundo, numa sociedade, sem que daí surja qualquer tipo de dominação individual ou coletiva? Como coibir socialmente que os mais dotados se tornem pela “influência natural” e possa vir a exercer nos outros indivíduos um domínio autoritário? E como uma sociedade libertária pode, sem o uso de mecanismos repressores violentos, coibir tal desvio autoritário?

Mas antes de buscarmos outras referências que possam nos evidenciar o imaginário social e político que atravessavam as vidas de indivíduos como Bakunin, Malatesta, Kropotkin... devemos desde já destacarmos que nosso objetivo não é provar que o pensamento anárquico é utópico, incoerente e ilógico, o cerne de nossas indagações está no imaginário político e social que proporcionou aos militantes daquela época imaginar uma sociedade completamente diferente daquela em que viviam.

E que hoje nos parece impossível que se pudesse imaginar uma sociedade sem dominação, sem governo. O que nos preocupa, neste estudo, sobretudo, o campo de possibilidade em que emergiu tal utopia, pois o fato de ser considerada utópico ou não está ligado aos mecanismos disciplinares da própria sociedade burguesa que limita “o pensar o novo”.
Continua...

[1] MALATESTA, E. & FABRI, L. Anarco Comunismo Italiano., p. 66.
[2] CF. BAKUNIN. “Educação Integral”. In: MORIYÓN, F. G. Educação Libertária., p. 45
[3] Ibdem, idem.
[4] Cf. FOUCAULT. Arqueologia do Saber.
[5] MALATESTA, E. & FABRI, L. Anarco Comunismo Italiano., p. 57.
[6] MALATESTA, E. & FABRI, L. Anarco Comunismo Italiano., p. 58.
[7] MALATESTA, E. & FABRI, L. Anarco Comunismo Italiano., p. 59.
[8] MALATESTA. A Anarquia. p, 76-7.
[9] Utilizamos aqui autonomia em seu sentido lato: au.tô.no.mo. adj. 1. Que não está sujeito a potência estranha, que se governa por leis próprias. 2. Independente, livre. 3. Que professa as próprias opiniões. 4. Biol. Que age independentemente da vontade: Reflexos autônomos. 5. Zool. Que goza de organização individual. S. m. Trabalhador autônomo.
Nota: em processo de elaboração!

Sensibilidades Perdidas - uma introdução

Imagem I:
“Uma criança suja pedindo esmola no sinal, um carro conversível, importado com um motorista de óculos escuros que ignora o menino sujo com a mão estendida”.

Será que estamos anestesiados? Que sociedade é esta em que o individualismo extremado nos impede de se indignar? Que estado de inação é esse que nos impede de se revoltar contra as injustiças? Que espécies de governos são essas que nos controlam até nos mínimos detalhes sem que percebamos? Parece que estamos em um roteiro pré-determinado, não há surpresas, não há novidades e nem imprevisibilidades. Isso é vida humana? Cadê a capacidade humana de se indignar, de se revoltar? Será que somos ainda realmente humanos? E se somos, que novos humanos somos nós? A imagem dessa humanidade maquínica é a da Resignação. Tentaremos nesse trabalho resgatar ou rememorar aquilo que foi um dia a imagem de uma humanidade: fazer por si mesmo sem esquecer-se do outro, ser autônomo e ético ao mesmo tempo.

Não estamos interessados se as pessoas que lutavam por essa nova humanidade ou contra a desumanização em andamento eram sonhadoras, utópicas ou pouco racionais. O que é ser utópico? Se ser utópico for acreditar em algo que jamais existirá, em algum momento de nossa vida, seja na mais remota infância de nosso ser, fomos um dia utópicos, pois acreditar naquilo que ainda não existe é o primeiro passo para criação e a criação é a ação humana em sua plenitude. Quem mais pode criar a não sermos nós? Esta miséria em meio a todo esse luxo é uma criação nossa.

Nesse sentido, somos humanos mesmo quando nos desumanizamos, mesmo quando olhamos apenas para dentro, mesmo quando rejeitamos o outro e obviamente ficamos perdidos sem encontrar conosco, com os nosso eus. Não há fora sem um dentro, não há indivíduo sem o outro, e quando ignoramos isso chegamos ao fundo do poço de nossa miséria em plena sociedade de consumo. Nesse instante, nenhum produto das pilhas de mercadoria que o deus mercado nos oferece pode nos impedir de nos sentirmos solitários, nenhuma compra pode realizar ou devolver-nos aquilo que vendemos tão barato e nos era tão caro: o outro, os outros, aqueles em que estava o nosso eu... nossos eus.

Precisamos tentar trazer à tona um outro tipo de ser, outros hábitos que foram apagados pelo racionalismo exíguo, enfim, tentaremos reviver aspectos de sensibilidades pedidas. Uma parte daquilo que poderíamos ter sido, mas sem nostalgia, pois a história, o fluxo do tempo, não nos permite essa regalia. Tentaremos enxergar o que havia debaixo do arranha-céu que explodiu, a semeadura que foi asfixiada pela cal e pelo cimento da construção imponente.

Daquilo que os anarquistas fizeram nos interessa seus hábitos, a ética que emana de seus discursos calorosos e apaixonados, enfim, uma sensibilidade política que se tentou enterrar com a democracia liberal, que foi desacreditada pelo governo representativo, criador e serviçal do deus mercado.

Deleuze e Gattari escreveram: Existe algum meio de subtrair o pensamento ao modelo de Estado?

Continua...
Nota: Tentarei a partir de hoje escrever a minha dissertação de mestrado online, com isso, quero mostrar o andamento da minha pesquisa sobre a ação direta anarquista, minhas idas e vindas dessa tentativa de compreensão, minhas escolhas... e por isso, estarei aberto a críticas e a possíveis sugestões. Minha pretensão é estabelecer um diálogo concomitante com a escrita.