domingo, 31 de janeiro de 2010

Nem tudo merece ser relembrado!

O ofício de um historiador é cheio de responsabilidades, a maior delas, talvez, seja a do compromisso não só com a verdade, mas também com o que chamarei de fazer o bem. Seu trabalho começa pela escolha de seu objeto de estudo, pela construção de sua temática que, às vezes, é voluntária, racional e meditada e, em outras, é completamente involuntária, ou melhor, passiva e passional, pois se dá quando o objeto, a coisa fisga o historiador, quando ele se vê sugado pelo seu tema. Em nenhuma dessas ocasiões ele se pode ver eximido de sua responsabilidade, pois para além de tentar ser "fiel" e verdadeiro com a história que vai escrever, com as memórias que vai decidir codificar historicamente e com aquelas que por omissão, limitação vai relegar ao esquecimento, o historiador deve ser justo em sua presentificação do passado, muito mais que buscar a verdade, ele deve fazer o bem. Em outras palavras, evitar males à memória coletiva.

O historiador não é só um manipulador da memória, é também do esquecimento. Nesse sentido é que vem a questão crucial para o ofício do historiador: o que merece ser esquecido, o que deve ser lembrado. O historiador torna-se um semi-deus do tempo, ou melhor, daquilo que vai se alongar numa duração para além da morte, da existência biológica. É ele que escolhe quem, o quê e que lugar vai merecer uma sobrevida, qual "memória" vai ser a escolhida, qual vai florescer e vingar.

Nesse ponto cabe a pergunta: onde está o estatuto que dá a qualquer historiador o direito de escolher o que deve ser relembrado? Em outras palavras, qual a legitimidade desse poder? E quais são os critérios "científicos" desse poder de vida e de morte exercido pelo historiador? Por outro lado, precisamos indagar sobre aquilo que merece ser lembrado, de pontos de vistas quantitativo e qualitativo, pois se o trabalho primordial do historiador, como afirmou certa vez Hobsbawm, é o de lutar contra o esquecimento "coletivo" e, nesse sentido, o de constantemente reatualizar a memória, reescrevê-la e revigorá-la com novos procedimentos, instrumentos e lugares de memória, é preciso também indagar sobre aquilo que não merece (mais) ser lembrado.

Levar o questionamento a esta margem do assunto é tentar perceber que a memória, e que o abuso que dela se faz ideologicamente causa resultados opressores, já que a memória "resgatada", atualizada, presentificada é sempre história de algo, de alguém, de algum lugar, de pessoas, de um país. Partindo do pressuposto de que toda a sociedade foi um dia erigida sobre a vitória de uns sobre outros numa guerra declarada ou não, e sendo o governo (Estado), como bem identificou Hobbes, oriundo da promessa de trazer segurança, de regulamentar espaços e condutas, antes de ser um instrumento das liberdades. Dessa forma, toda memória redimida pode ser uma memória traumatizadora, pois como ser justo com a memória dos vencedores sem garantir a lembrança da vitória (um ato de justiça do ponto de vista dos vencedores) e ao mesmo tempo, destacar a derrota revelando suas cicatrizes aos herdeiros dessa condição de derrotados no presente (o que seria injusto do ponto de vistas destes).

Como disse também certa vez Sérgio Buarque de Holanda, muito mais do que relembrar o que está prestes a ser esquecido, o trabalho do historiador é exorcizar a memória, relembrando de forma justa para que as feridas possam ser cicatrizadas, para que, enfim, o esquecimento possa cumprir o seu papel na história. Não basta ao historiador relembrar por meio de seu ofício a história das vítimas, é preciso ter em mente até que ponto esta memória já não cobrou sua "dívida" histórica para com os vivos, é preciso indagar se os vivos ainda devem às vítimas históricas que estão sendo historicizadas pelo historiador, até que ponto não há um excesso de memória, portanto opressora, de determinados temas da história, até que ponto este excesso de memória presumível pode afetar sensivelmente os vivos e abrir mais feridas do que realmente cicatrizar as que foram abertas pela história de opressão sofrida pelas vítimas que ora se quer relembrar. Estes temas da memória e esquecimento justos, entre outros, são objetos de análise, erudita por sinal, do livro: "A memória, a história, o esquecimento" de Paul Ricoeur.

sábado, 16 de janeiro de 2010

A falta e o desejo nas filosofias de Sartre e Deleuze



Em "O Ser e o Nada" Sartre escreve: "O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo". É do ser para-si que surge o nada, a negação vem ao mundo pelo ser, pois o em-si é pura positividade, é o que é, ao contrário, o ser é o que não é e não é o que é. Noutra parte, Sartre fala que "de todas as negações internas, a que penetra mais profundamente no ser e constitui em seu ser o ser ao qual nega, juntamente com o ser negado, é a falta de." Esta é a parte da filosofia sartriana que gerou mais críticas, pelo menos, por parte dos novos grandes filósofos franceses do século XX (para não me referir a eles de pós-modernos, termo pouco preciso que carrega muitos estereótipos e pouco esclarecimento) refiro-me principalmente, a Foucault e a Deleuze.


Sartre define o homem pelo princípio da falta, ou melhor, pela condição da falta, o homem em comunidade se faz enquanto homem e sociedade humana a partir da superação da sua condição de escassez (analogamente falando), assim por meio da associação de forças, se faz homem e sociedade humana na medida em que supera o estado de escassez e passa a criar as condições da realidade humana. O homem torna-se homem porque se faz homem e se faz porque supera seu estado "original" de escassez. Mas, só é escassez para o homem, pois é à realidade humana que surge a escassez que pode pôr fim à sua existência; dito de outra maneira, é para o modo de ser do homem que surge a escassez. Marx diria que foi o trabalho que fez o homem como tal. Sartre não rejeita esta tese apenas complementa, ou melhor, diz que a relação fundamental não é a relação de produção, antes disso, o que faz do homem um homem é a relação com outros homens, os mesmos dele, a união, a associação entre homens para superar suas adversidades.


Deleuze juntamente com Guattari, em sua obra fundamental, O Anti-Édipo, contesta o princípio da falta, ou esta condição primordial que faz do homem um homem. Para Deleuze o princípio humano criador é o desejo, para ele o desejo produz o real, este "é o resultado das sínteses passivas do desejo". Para Deleuze, "ao desejo não falta nada". Antes da falta, nessa perspectiva, é o desejo que cria e não, ao contrário, como diria Sartre, a superação da falta. Evidentemente, o problema do desejo não é colocado por Deleuze na perspectiva de uma fenomenologia ontológica como o é por Sartre. Assim, para Deleuze, não está em jogo a descrição das modalidades do ser, mas apenas a divergência de princípios que nortearam sua filosofia.


O que vou destacar aqui de passagem, pois o espaço do blog não permite aprofundamento necessário, é certa leitura despreocupada ou apressada sobre a perspectiva sartriana da falta, a falta não é o princípio gerador da realidade humana e, por assim dizer, do homem. É do ser que surge o nada, sendo uma de suas negações internas, a falta. Sendo assim, a falta só vem ao homem porque ele é uma para-si, ele nega a si mesmo e a sua realidade, ele cria a falta, suas necessidades, analogamente, produz a escassez, como é o caso do capitalismo (um tipo de escassez produzida); é assim que produz e cria sua própria existência.


Talvez tanto Sartre quanto Deleuze estivessem falando as mesmas coisas de forma diferentes. Talvez... só talvez!