domingo, 16 de setembro de 2007

A Derrota do Paradigma Revolucionário

(Foto à esquerda: durante a queda do Muro de Berlin. Foto à direita: após a queda).

Se considerarmos que as vontades econômicas determinam, em geral, a configuração da sociedade, podemos afirmar que a democracia moderna foi gerada conforme os parâmetros do liberalismo econômico no processo de superação do Antigo Regime. Podemos ainda, ir além, considerando-se que a democracia desde sua consolidação, como modelo de governo nas sociedades capitalistas, esteve, exceto por alguns intervalos históricos, quase sempre marcada pela égide do liberalismo.
Esse modelo de governo democrático liberal foi, desde o início dos movimentos operários que engendraram as “utopias” socialistas, o alvo a ser batido e derrotado. Essa demarcação política ideológica ficou mais clara depois de 1917 com a Revolução Russa que apontava claramente para uma alternativa de organização distinta e contrária ao liberalismo democrático.
Com a crise do liberalismo em 1929, o capitalismo encontrou nos grupos de extrema direita (aqueles que definiam a desigualdade como inata ao ser humano e, portanto, se autoproclamavam seres superiores, no caso específico, dos nazistas), uma alternativa para fugir à crise que ameaçava a economia de mercado. Configurou-se assim, um capitalismo de Estado autoritário (ou melhor, totalitário), ao passo que a democracia liberal ficou desacreditada.
Em defesa desta, porém, levantou-se a voz do estadismo democrático, tendo em Keynes seu mais notório expoente. Os gestores do capitalismo adotaram medidas que visavam minimizar as diferenças sociais, com o intuito de evitar crises, como a de 1929. Para tanto se ampliou o controle do Estado sobre a economia, redirecionando-a, por meio de impostos progressivos, a acumulação de renda da classe dominante. O pós-45 foi marcado por essa política, denominada Estado do Bem Estar Social.
Contudo, é necessário perceber que o alto gasto dos Estados desses países desenvolvidos apenas se tornou factível diante da dependência dos países periféricos, ou seja, o ajuste estrutural do capitalismo no então chamado Primeiro Mundo foi possível, somente devido à ampliação da dominação para além das classes no âmbito nacional, estendendo-a para o plano externo. O orçamento desses Estados credores era acrescido pelo pagamento periódico dos juros das dívidas externas, que possibilitavam os investimentos nas áreas sociais (previdência, emprego, seguridade, etc.).
Os países vitoriosos na Primeira Guerra Mundial, marcadamente, EUA (favorecido pela posição geográfica e pela confirmação de sua hegemonia econômica mundial depois da guerra como grande credor do mundo), Inglaterra e França consolidaram, assim, suas posições imperialistas empurrando para os países derrotados, principalmente, a Alemanha espoliada de parte de seu território, soterrada pela dívida de guerra e humilhada por tratados que ameaçavam sua soberania nacional, os agravantes da crise capitalista.
Na Alemanha, particularmente, os defensores do capitalismo apostaram todas sua fichas na extrema direita. Provou-se, historicamente, que em momentos de crise, de colapso econômico; abria-se a possibilidade não só para a esquerda tomar o poder, mas também para a direita, com o pretexto de livrar a sociedade do caos e em nome da ordem, radicalizar suas posições emplacando o autoritarismo, como alternativa política. A esquerda na Alemanha, bruxuleante e predominantemente parlamentar, ignorou o grupo de Hitler que, gradativamente, respondeu melhor, de maneira autoritária, às questões que assolavam a Alemanha.
Com ascensão político-econômica da URSS que derrotou o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Tal regime se consolidou como uma alternativa viável à democracia revisada e reajustada pelas políticas de Roosevelt, segundo os parâmetros de Keynes, o conhecido New Deal. É provável que o descrédito pelo liberalismo tenha acontecido talvez não apenas pela crise de 1929, mas também pela concorrência com o comunismo soviético após-45. E que essa concorrência tenha incentivado a reforma o liberalismo, por meio, da adaptação do planejamento estatal, comum ao rival comunista, do mercado capitalista.
[1]
Foi nessa perspectiva que ocorreu a chamada Guerra Fria, caracterizada pela competição bélica e pela disputa entre os sistemas políticos para ver qual dos dois era o mais eficiente em termos sociais. Infelizmente, a crise do petróleo finda com essa disputa que, ao contrário da bélica, era favorável as populações de ambos os sistemas, exceto quando ficava na propaganda ideológica, nas perseguições políticas, espionagens e retaliações.
A crise de 1973 é o marco da volta dos renovados preceitos liberais aos governos democráticos ocidentais, do outro lado, o comunismo também dava sinais de cansaço, pois parte do PIB desses países eram gastos na corrida armamentista que tomou ares de Guerra nas Estrelas no governo Reagan. Por outro lado, sua burocratização que a partir 1917, foi decisiva para a transformação de um país agrário numa potência industrial, tornara-se, já nos anos 70, um empecilho ao desenvolvimento devido, principalmente, a ausência de concorrência interna, diferentemente, da concorrência armamentista no aspecto externo.
O colapso do comunismo realmente existente marcou o século XX em diversos aspectos, mas talvez a influência mais prolongada seja a derrota ideológica da alternativa à democracia liberal. À queda do muro, seguiu-se um esvaziamento do discurso revolucionário, a partir daí, para o bem ou para o mal, não houve mais, até agora, um outro paradigma de sistema governamental para o ocidente que não fosse à democracia. Esta escoltada e configurada pelo liberalismo ganhou status de universal. A democracia, regime político rival tornou-se, por conseguinte, a meta a ser alcançada e o limite institucional e reformista da esquerda.
Um dos sintomas da derrota do paradigma revolucionário foi o descrédito à distinção dos termos direita e esquerda (que teve em Bobbio a tentativa mais eficiente, embora, frágil de defesa das distinções políticas). Num virar de página os discursos se aproximaram, os projetos políticos se entrelaçaram. Mesmo sabendo que, do lado de lá do muro, estava longe de haver igualdade, de haver socialismo, os partidos de esquerda, por certo, jamais foram os mesmos após 1989.
Não havia mais ideal revolucionário, os discursos de ruptura foram cooptados pelos discursos reformistas, marcadamente, os da social democracia. Direita e esquerda, mesmo estando em campos ideológicos opostos (desigualdade natural/desigualdade social)
[2] passaram a lutar no mesmo terreno, o do liberalismo democrático, e pior, a esquerda não mais desejou construir outras regras para o jogo, decidiu adotar e aceitar as do adversário.
No livro Contra o Governo dos Piores, Michelangelo Bovero, tenta definir analiticamente a democracia considerando-a, essencialmente, como um conjunto de regras do jogo, uma democracia, por assim dizer à moda de Rusconi, sem adjetivos. Por outro lado, o que se tentou aqui foi evidenciar a característica eminentemente liberal da democracia moderna. Embora, Bovero defenda essa definição de democracia sem adjetivos, por assim dizer pura, como a do ideal rousseauriano, por demais abstrata e imprecisa, ele admite que, “Segundo a concepção hoje amplamente predominante, até mesmo triunfante depois de 1989, não há democracia sem liberalismo, mesmo porque não há (nunca houve) democracia com o socialismo”; dessa forma, segue o autor, “segundo a concepção senão predominante, bastante difusa nos tempos da assim denominada (e pressuposta) hegemonia cultural marxista, não há democracia sem socialismo, mesmo porque não há (verdadeira) democracia com o liberalismo”.
[3]
Pretende-se aqui, objetar a segunda versão e revisar do ponto de vista histórico a primeira, diferentemente da maneira como fez o autor citado que objetou as duas em prol de uma definição excessivamente teórica e pouco demonstrável. Na primeira versão, reafirmo a posição de que, historicamente, não houve, com breves exceções, democracia moderna sem liberalismo, se bem que, e por isso, o grifo, em sua origem a democracia antecede, e muito, os preceitos liberais.
Por outro lado, creio ser possível, mesmo que brevemente, haver democracia sem liberalismo, na história isso já ocorreu, basta lembrarmos do Chile de Allende que tinha projetos, marcadamente socialistas que estavam sendo executados por meio das estatizações das multinacionais e foi eleito pelo voto popular até o seu suicídio e sua deposição pelo golpe de Estado (CIA/Pinochet). Embora acredite que possa haver uma democracia, predominantemente, não liberal, creio também que tal governo não terá vida longa numa economia marcadamente capitalista.
No que concerne à objeção, é direcionada a uma corrente marxista que tentou adequar os princípios socialistas às regras parlamentares e ao tom reformista da democracia representativo-moderna. Essa tendência é também chamada social democracia e como corrente política surgiu na Alemanha em 1875, tendo como expoente, o principal teórico da Segunda Internacional que adotou a estratégia do caminho evolutivo para o socialismo, Karl Kautsky, herdeiro intelectual de Engels, embora, supusesse ser de Marx.
A adoção dessa estratégia reformista desencadeou o racha com os marxistas revolucionários, os spartakistas liderados por Rosa Luxemburgo, o desprezo, por parte da República de Weimar, hegemonicamente até então social democrata, ao crescimento do nazismo e, por último, a chegada de Hitler ao poder pelo voto parlamentar.
A própria história da social democracia já se caracteriza por um erro de estratégia ou mesmo de avaliação da conjuntura da Alemanha no entre guerras. E isso, por si só, constitui-se a base da minha objeção a uma democracia à moda social democrata, pois, todas as tentativas de se conciliar capital e trabalho até aqui na história redundaram em fracasso, muito embora, reconheça e acredite no ineditismo da história, creio que os ideais socialistas não se casam com o imperativo econômico do lucro.
O período de Bem Estar Social em que a democracia alcançou uma prosperidade relativa. Já se revelava um alto custo social no âmbito mundial, por que a eqüidade democrática efetivada pelos gastos públicos nos países centrais era sustentada pela situação de dependência financeira dos países periféricos. Provocava-se assim, uma profunda desigualdade social global, pelo preço de garantir os diretos sociais nos países credores. Ainda hoje, toda essa conjuntura mundial compromete qualquer ideal democrático.
Pois como no colonialismo antigo dos gregos que subjugavam outros povos à escravidão, para que os cidadãos tivessem tempo para se dedicar à vida pública. No imperialismo moderno o preço que se pagava a democracia do Estado de Bem Estar Social era muito alto. Bastou apenas uma crise de combustível no Oriente Médio para que a onda do Estado mínimo voltasse com toda força voracidade.
Em termos teóricos, a democracia moderna diverge dos objetivos socialistas. A democracia liberal se caracteriza pela instituição da sociedade civil burguesa e pela criação da esfera pública de poder que se consolidou na defesa do direito da propriedade privada. Por seu turno, a teoria socialista preconiza a abolição da propriedade privada ou no mínimo, em termos reformistas, na ampliação dos espaços públicos e da participação dos cidadãos nas decisões políticas. Nesse ponto, embora, marque uma aproximação possível entre socialismo e democracia, a ampliação da participação se resvala na característica fundamental da democracia moderna, a representação. O que se levarmos em conta o peso da mídia política no resultado eleitoral e a presença dos lobbies, atualmente, temos, praticamente, caracterizado uma plutocracia legitimada pelo voto, o que faz deste apenas um engodo ou um falso referendo popular.
Por fim, a democracia não promove a igualdade de condições, o que se vê, muito pelo contrário, é, ao igualar o valor dos votos
[4], uma desobrigação da democracia de igualar as condições. Esta sim, seria uma medida que realmente nivelaria o poder decisório dos cidadãos. A eqüidade dos votos nivela apenas o princípio das decisões em que os cidadãos elegem, passivamente, aqueles que irão decidir seu futuro. Pode se argumentar que a democracia não termina com o ato de votar, mas as instâncias democráticas que permitem a participação do cidadão continua sob a égide da representação, consiste, portanto, numa participação indireta, o engodo permanece. A democracia não tem vocação para igualdade social.
“Por que o próprio processo democrático de participação nas decisões políticas não pode se desenvolver corretamente sem a garantia dessas liberdades fundamentais [liberdade pessoal, liberdade de opinião, liberdade de reunião e liberdade de associação], que são de origem e tradição liberal, (...)”.
[5]
E essas liberdades fundamentais garantem a liberdade do indivíduo na esfera privada. Os interesses privados são bem representados pelos grupos econômicos que exercem pressão sobre o poder público. O Estado tende, assim, com raras exceções a garantir os interesses econômicos dos grupos privados e sua configuração está assim organizada para tal fim.
A esquerda pouco tem a fazer com tais regras do jogo, perdendo, portanto, a sua própria identidade política, enquanto, projeto que visa à eliminação gradativa das desigualdades sociais. A democracia, assim, isto é, as regras do jogo democrático foram criadas para atender as exigências de uma economia capitalista que se fundamenta na maximização do lucro e, portanto, é um fábrica de desigualdades.
Na Antigüidade a democracia ateniense procurava garantir a igualdade de condições de escolha. Péricles ficou conhecido por em prática a lei que autorizava o Estado a pagar os dias de serviço para que os cidadãos pobres pudessem votar embora estes constituíssem uma minoria baseada economicamente no trabalho escravo, mesmo assim tal medida, não garantia um quorum acima de dez por cento na assembléia (Eclésia).
A democracia moderna constituiu-se, apesar de abarcar a maioria absoluta dos cidadãos, pelo menos depois de várias lutas sociais (lutas diretas e não parlamentares) que ampliaram os direitos de voto progressivamente às pessoas, na base de uma contradição: como atender o ideal de igualdade implícito no próprio conceito demos, sendo que o jogo democrático está submetido às decisões de interesse privado, dos detentores (proprietários) do capital?
A social democracia, nesse sentido, é um dos maiores equívocos da história. E a democracia liberal é, em verdade, uma plutocracia que esconde sua verdadeira face ao igualar o valor dos votos, que perdem seu valor qualitativo já que a liberdade de escolha implícita nesse ato de votar fica comprometida, pois não há igualdade de acesso à informação, à educação e muito menos à participação pública, sem falar que, o processo de escolha ocorre num ambiente de separação entre os anseios sociais, sem organização, na dispersão atomizada da realidade alienante da sociedade burguesa.
O voto torna-se, nesse contexto, apenas um ato simbólico obrigatório em que o cidadão delega poderes a outrem sem nenhuma garantia de representação. Não há escolha verdadeira sem igualdade de condições. Não há representação enquanto os cidadãos não se reconhecem como tais, como agentes políticos que podem interferir nas decisões de governo. E essa situação é, a meu ver, insuperável diante de um sistema econômico que prima pela exclusão social e pelo acirramento das desigualdades.
A democracia, nessa perspectiva, possibilita a dominação escamoteada dos grupos privados, daqueles que mais têm condições de se organizarem politicamente. É um governo dos grupos de pressão, dos lobbies. E enquanto a esquerda não perceber que, com essas regras do jogo, não terá nenhuma chance, que será cada vez mais difícil distinguir as diferenças políticas entre esquerda e direita, estaremos destinados a escolher entre seis e meia dúzia.
Apenas num detalhe a distinção será possível, a direita no poder será um governo sintonizado, completamente à vontade enquanto o da esquerda terá característica de inquietação, de peso na consciência, a sensação desconfortável de estar traindo seus princípios, seus antigos companheiros, a sensação incômoda de ter “evoluído”, se modernizado, ter se adequando à civilização e o preço dessa adequação será ter aceitado o que antes combatia, enfim, será um governo (seja presidente, governador ou prefeito) que necessitará de sessões semanais de psicanálise, para não explodir pelo sentimento de culpa, impotência. Qualquer semelhança com a vida política do país não é mera coincidência.
LIVROS CONSULTADOS

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP, 2001.
BOVERO, Michelangelo. Contra o Governo dos Piores: uma gramática da democracia. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

[1] “A Vitória da URSS sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela Revolução de Outubro, como demonstra uma comparação do desempenho da economia russa czarista na Primeira Guerra Mundial com a economia soviética na Segunda Guerra (Gatrell & Harrison, 1993)”. “(...) Uma da ironias deste estranho século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo – o medo – para reformar-se após a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econômico, oferecendo-lhe alguns procedimentos para sua reforma”. HOBSBAWM, 2001.
[2] BOBBIO, 1995.
[3] BOVERO, 2002, p.44.
[4] Há de se ter em conta que o voto é uma criação da aristocracia, anterior a Clístenes, no regime aristocráticos elegiam-se os “melhores” (aristo), portanto, o ato de eleger não pode se considerado um componente fundamental da democracia, (BOVERO, 2002). Por outro lado, o voto na democracia só era utilizado para os cargos executivos da Estratégia, para as outras instituições políticas da Grécia, como a Hélia e a Bulé, a forma de escolha predominante dos cidadãos na Eclésia, não era o voto, mas o sorteio. Temia-se o voto, devido ao poder de convencimento dos ricos cidadãos que tinham acesso às aulas de retórica. Num paralelo arriscado, para nós hoje em dia, o tempo de propaganda e os gastos com o marketing nas campanhas eleitorais, tem um significado aproximado com o acesso à arte da retórica, no passado da democracia ateniense.


[5] BOVERO, 2002, p. 48.

Um comentário:

Anônimo disse...

ow .. baum ??? acessei seu blog, mas deu pra ler. Os textos são IMENSOSSSSSSSSS . . kuakauka . .um abraço grande . . .