segunda-feira, 5 de julho de 2010

Entre o julgamento e a neutralidade, a independência



O homem é sujeito de seu tempo, embora, tal frase seja hoje em dia recorrente e até mesmo já tenha se tornado politicamente incorreta, pois alguns vão dizer: o homem e a mulher são sujeitos de seu tempo, e outros: os grupos humanos são sujeitos de seu tempo; mas muitos ainda se esquecem de perceber isso como tal, representar e expressar os homens e as mulheres como sujeitos de seu tempo, criadores de suas próprias histórias, de uma forma ou de outra, seja de maneira passiva ou ativa, pois sofrer a história também é uma forma de fazê-la.

Sobre isso, o poema de Brecht tem muito a nos dizer:

Quem construiu Tebas de sete portas?

Nos livros estão os nomes dos reis.

Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?

E as várias vezes destruída Babilónia —

Quem é que tantas vezes a reconstruiu?

Em que casas da Lima fulgente

de oiro moraram os construtores?

Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta

a Mu­ralha da China? A grande Roma

está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou?

Sobre quem triunfaram os césares?

Tinha a tão cantada Bizâncio

Só palácios para os seus habitantes?

Mesmo na lendária Atlântida

Na noite em que o mar a engoliu bramavam os

afogados pelos seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Ele sozinho?

César bateu os Gálios.

Não teria consigo um cozinheiro ao menos?

Filipe da Espanha chorou, quando a armada se afundou.

Não chorou mais ninguém?

Frederico II venceu na Guerra dos Sete Anos —

Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.

Quem cozinhou o banquete da vitória?

Cada dez anos um Grande Homem.

Quem pagou as despesas?

Tantos relatos

Tantas perguntas.

Brecht tem bem mais a dizer que alguns historiadores do século XIX, discípulos de Ranke e da escola metódica que predominava como corrente historiográfica neste período, ou antes, de Tucídides, ex-general punido (num contexto completamente diferente que invalida até mesmo esta comparação) que passou então a relatar aquilo que via, apenas o que via, imparcialmente, pelo menos pensava ele. Pois a tentativa de ser imparcial e neutro é impossível, ainda mais quando se propôs alcançar esta imparcialidade descrevendo os grandes homens de seu tempo, como os heróis do nacionalismo propagado pela escola metódica, uma versão historiográfica do espírito do tempo (zeitgeist) de Hegel.

Na outra ponta oposta da história dos heróis esteve a história quantitativa nos idos de 1970, com seus primeiros computadores que fizeram os historiadores de então, entre entusiasmados e temerosos, dizerem: a história agora se faz a partir das estatísticas, da quantificação dos dados populacionais, econômicos, censitários, etc. A mensagem subliminar era: os homens e mulheres comuns, os pobres, os trabalhadores só podem aparecer na história, como sujeitos de seu tempo, pelos números e dados quantitativos.

Outra linha historiográfica se aproveitava dessa nova onda da história quantitativa (talvez nem chegou a tanto) para reivindicar a história dos vencidos, que Brecht amigo do Benjamim da história a contrapelo fazia sem o fundamentar, até porque ele era um poeta, um dramaturgo, enfim, uma artista e não historiador de ofício. Assim, o representante mais bem sucedido dessa história dos vencidos tenha sido um outro marxista, heterodoxo até o topete, militante e professor de escola para trabalhadores adultos, portanto, completamente fora do círculo universitário. Estas são as características marcantes de Edward P. Thompson, que ficou conhecido depois de seu belo estudo da Formação da Classe Operária Inglesa. Nesse livro, Thompson conseguiu revitalizar a perspectiva marxista reformulando vários conceitos como o de classe e trazendo à tona o de experiência que, em seu dizer, estava apenas subtendido no Capital de Marx. Thompson é também representante de uma história engajada que mostra claramente sua linha partidária, se tem a vantagem de ser transparente e revelar claramente sua perspectiva de abordagem, deixa a desejar quando também se vê no direito de julgar, mesmo que nesse caso, diferentemente de um discurso legitimador do poder como era o discurso dos discípulos de Ranke, faz-se o dos vencidos que procura criticar a legitimidade dos vencedores. Mas o pano de fundo é quase sempre um conflito ético-moral pendular que vai de uma visão socialista a uma liberal, e ambos os lados se arrogam de buscar o melhor, o bem e a verdade.

A questão então, estritamente historiográfica, é até quando uma tomada de posição política pode afetar a visão do historiador na abordagem de seu material? Ele poderá se sentir mais propenso a considerar mais importantes fatos alinhados a sua posição política ou não? A própria perspectiva tomada, de acordo com sua ideologia, não poderia já de antemão excluir versões diferentes das escolhidas? Fica ainda, a lição de Marc Bloch (parafraseada): o historiador não deve ser juiz da história.

A história dos vencidos pode também resvalar em uma das maiores tentações dos historiadores que representavam o status quo: o julgamento. E não estamos, com isso, defendendo a inocência ou cinismo de achar que seja possível uma história imparcial. Não, mil vezes não! Porém, não podemos deixar de exigir uma história independente, independente em todos os sentidos, uma história que seja independente de nós mesmos, que embora não possamos evitar escolher e de construir os temas que mais nos chamam a atenção negativa ou positivamente, não podemos fazer de nosso objeto de pesquisa, um objeto de exposição de nossos valores, pois mais que achemos que tais são universais, ou que pelo menos deveriam ser, não podemos transformar o nosso trabalho de historiador em uma bandeira de luta para defender nossos ideais, pelo menos não conscientemente, mesmo que adiante outros, nas entrelinhas, vejam isso com o nosso trabalho.

Os homens são sujeitos da história porque fazem a história, mas como a fazem e qual o grau de importância que tal e qual ação, eis a questão relevante para o historiador. Evidentemente, que nesse quesito, de dar ou tirar importância dos atos e acontecimentos, o trabalho do historiador com sua abordagem característica é que vai determinar o grau de relevância dos mesmos. Portanto, é a abordagem, a perspectiva da análise que vai definir os sujeitos da história. Quem merece ser lembrado, quem merece ser esquecido, evidentemente que o método e a perspectiva do historiador que faz a análise, que define quê fatos são mais relevantes, por mais que seja fundamentado e respaldado nas fontes e nas considerações das várias interpretações em jogo, a decisão do historiador é de certo modo, tanto uma ação ética quanto política, e no fim das contas, escapar ao julgamento é uma tarefa hercúlea. Por isso é preciso ser sobretudo independente...

Um comentário:

Anônimo disse...

Quite right! Idea good, it agree with you.