domingo, 31 de agosto de 2014

Outras Paragens - Reflexões sobre o Presente



Às vezes a melhor forma de fazer reflexão sobre o mundo em que vivemos é reler os clássicos, mas estava cansado de ler e reler autores que do alto de seus escritórios sobre cafés parisienses ou coberturas com vista para o Central Park impunham maneiras e mais maneiras (gerais e globalizantes) de ver, sentir e pensar a vida. E que vida era esta?  A que eles conseguiam ver e ouvir de suas salas climatizadas? 
Decidi então, me voltar a outras paragens... Acho que ninguém pode falar com propriedade sobre algo que não viveu... que ninguém pode falar de nós pobres latino-americanos e nossas vidas ceifadas por rupturas atrozes sem que tenha se tornado, voluntária ou involuntariamente, subproduto de culturas abortadas e sociedades cindidas, dissonantes, marcadas por desigualdades extremas.
Tais paragens me levaram a autores como Octavio Paz e Eduardo Galeano... dos clássicos Labirinto da Solidão e As Veias Abertas da América Latina... Encontrei um oásis de clarividência, argúcia e sensibilidade e, em vez de comentá-los, resolvi, ainda bem, transcrever alguns trechos de obras destes dois grandes pensadores:

Reflexão 1:

Incansável porvir

[...] Perseguimos a modernidade em suas incessantes metamorfoses e nunca chegamos a agarrá-la. Sempre escapa: cada encontro é uma fuga. Tão logo a abraçamos ela se dissipa: era apenas um sopro de ar. É o instante, este pássaro que está em toda parte e em lugar nenhum. Queremos pegá-lo vivo, mas abre suas asas e desaparece, tornando um punhado de sílabas. Ficamos com as mãos vazias. Então, as portas de percepção se entreabrem e aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem o saber: presente, a presença.
(Octavio Paz. Discurso para o Prêmio Nobel de Literatura, em 1990. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 9, nº 107, agosto de 2014).

Reflexão 2:

Educando com o exemplo

Os modelos do êxito
[...] No mundo como ele é, mundo ao avesso, os países responsáveis pela paz universal são os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais países. Os bancos mais conceituados são os que mais narcodólares lavam e mais dinheiro roubado guardam. As indústrias mais exitosas são as que mais envenenam o planeta, e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações aqueles que matam mais pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e aqueles que exterminam mais natureza com menos custo.
Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de forme, a morrer de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não vier abreviar nossa existência.

Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre ameaçadores infortúnios, nossa única liberdade possível? O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contraescola.

(GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013).

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