Às vezes a melhor forma de fazer reflexão sobre o mundo em que vivemos é reler os clássicos, mas estava cansado de
ler e reler autores que do alto de seus escritórios sobre cafés parisienses ou
coberturas com vista para o Central Park impunham maneiras e mais maneiras
(gerais e globalizantes) de ver, sentir e pensar a vida. E que vida era esta? A que eles conseguiam ver e ouvir de suas
salas climatizadas?
Decidi então, me voltar a outras
paragens... Acho que ninguém pode falar com propriedade sobre algo que não
viveu... que ninguém pode falar de nós pobres latino-americanos e nossas vidas
ceifadas por rupturas atrozes sem que tenha se tornado, voluntária ou
involuntariamente, subproduto de culturas abortadas e sociedades cindidas, dissonantes, marcadas por desigualdades extremas.
Tais paragens me levaram a autores como
Octavio Paz e Eduardo Galeano... dos clássicos Labirinto da Solidão e As Veias
Abertas da América Latina... Encontrei um oásis de clarividência, argúcia e
sensibilidade e, em vez de comentá-los, resolvi, ainda bem, transcrever alguns
trechos de obras destes dois grandes pensadores:
Reflexão 1:
Incansável
porvir
[...] Perseguimos
a modernidade em suas incessantes metamorfoses e nunca chegamos a agarrá-la.
Sempre escapa: cada encontro é uma fuga. Tão logo a abraçamos ela se dissipa:
era apenas um sopro de ar. É o instante, este pássaro que está em toda parte e
em lugar nenhum. Queremos pegá-lo vivo, mas abre suas asas e desaparece,
tornando um punhado de sílabas. Ficamos com as mãos vazias. Então, as portas de
percepção se entreabrem e aparece o outro
tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem o saber: presente, a presença.
(Octavio Paz. Discurso para o Prêmio
Nobel de Literatura, em 1990. In: Revista de História da Biblioteca Nacional,
Ano 9, nº 107, agosto de 2014).
Reflexão 2:
Educando com o exemplo
Os modelos do êxito
[...] No
mundo como ele é, mundo ao avesso, os países responsáveis pela paz universal
são os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais países. Os
bancos mais conceituados são os que mais narcodólares lavam e mais dinheiro
roubado guardam. As indústrias mais exitosas são as que mais envenenam o planeta,
e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o
aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações aqueles que matam mais
pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e
aqueles que exterminam mais natureza com menos custo.
Caminhar
é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem
não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por
causa da ânsia de ter o que não têm outros não dormem por causa do pânico de
perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma
ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas
químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de forme, a morrer
de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não vier abreviar nossa
existência.
Será
esta liberdade, a liberdade de escolher entre ameaçadores infortúnios, nossa
única liberdade possível? O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao
invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar
o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua
escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e
resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não
tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há
escola que não encontre sua contraescola.
(GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013).
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