sábado, 5 de abril de 2008

Nostálgicas Noites de Abril

Um artigo sobre Cazuza, Legião Urbana e a descrença da juventude[1]

“O meu partido é um coração partido e os meus sonhos foram todos vendidos tão baratos, que eu nem acredito. Os meus heróis morreram de overdose e os meus inimigos estão no poder”.



Abril é um mês de lamentações e nostalgias. Para quem está de saco cheio de ouvir letras preconceituosas que tipificam as mulheres denominando-as de “tchutchuca” e “cachorra” nessa nova onda do mercado fonográfico brasileiro. Um tipo de som que é rotulado de funk e que inunda as rádios e os programas de auditório da televisão. Músicas que fazem das palavras nas letras apenas um receptáculo adaptável ao ritmo. Para quem quer sair dessa calmaria e ir pegar uma onda agitada em outra praia. Falar de outras músicas que, em verdade, são poesias musicadas é discorrer sobre uma realidade cada vez mais distante. O fato de esporadicamente escaparmos dessa fugaz, mas cíclica tempestade mercadológica e ouvirmos canções como as de Cazuza e Renato Russo fazem dessa ocasião um ato solene de muita nostalgia e pesar. Dessa forma, a reflexão acerca do mercado fonográfico e o(s) gosto(s) do(s) público(s) no Brasil se tornam, cada vez mais, uma discussão necessária.

No título refiro-me ao mês de abril porque tanto Renato quanto Cazuza são do signo de Áries e, embora, Renato faria aniversário dia 27 de março a saudade torna-se mais intensa dia 04 de abril quando Cazuza completaria 43 anos. Estamos passando por um momento em que existe uma escassez daquele rock transgressivo dos anos 80, daquelas letras que lhe davam com temas existenciais e com o amor, mas amor no sentido amplo da palavra e não relações humanas permeadas de preconceito, machismo e submissão. E até mesmo a “dor de cotovelo” das letras de cazuza era recheada da mais pura erudição Moriartyana. [2]

Segundo essa perspectiva, e, diante dessa constatação cabem algumas hipóteses: o que mudou para que nas letras atuais, até mesmo nas do chamado rock brasileiro os questionamentos acerca dos problemas sociais estejam cada vez mais raros. O que ocorreu, em linhas gerais, que transformou a cara dessa juventude (metropolitana) do novo milênio. A juventude a qual fiz parte em finais dos anos 80 e início dos anos 90 tinha a uma aversão a músicas como pagode e sertanejo. E tal aversão não era um preconceito declarado, era antes disso, uma incompatibilidade de experiências, as letras não abordavam temas recorrentes a nossa vida enquanto jovens. Atualmente, vejo que não foi a temática desses estilos que mudaram, é claro que, por exemplo, a temática sertaneja se urbanizou (o sertanejo desde Chitãozinho e Xororó é enormemente influenciado pelo o country americano), é o caso também das duplas Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, etcetera. Mas os discursos das letras ainda tratam de traições, brigas amorosas, casos extraconjugais. Assuntos esses, mais que desgastados, pois não se reciclam as mensagens ao público, aliás, muitas vezes não há essa preocupação, a criatividade nas composições dessas letras fica a cargo de falarem a mesma coisa de maneiras diferentes. Dessa forma, creio que mudaram os jovens.

Primeiramente, seria interessante começar por expor os fatos, pois como no filme de Antonioni (Blow up) não há jogo de tênis sem bolinha e, por derivação, nem notícia sem fatos. Uma das coisas notórias é que em cada momento o mercado trata de nos presentear com um modismo. Para não ir muito longe, foi assim com a lambada no início dos anos 90. Com toda aquela discussão moral que temos hoje, lembro até que, naquele período a Igreja católica foi mais contundente. Essa proliferação de grupos baianos em que os “cantores” quase que só abrem a boca para babar pelos os quadris libidinosos em movimento, já existia no início dos anos 80 com as chacretes, ainda não tanto exploradas pelas gravadoras, é verdade. Mas nomes como o de Rita Cadilac e Gretchen ainda hoje são personalidades recorrentes na mídia.

Muito bem, aonde quero chegar com tudo isso? Quando pensamos em música devemos levar em conta três aspectos que não podem ser vistos separados. A produção, a distribuição e o consumo. Na produção temos a figura do produtor ou, o que mais comum se chama de empresário, que procura ter uma visão geral do mercado e conhecer minimamente as expectativas do consumidor. Na distribuição encontramos o monopólio das grandes gravadoras em que se privilegiam os artistas de maiores vendagens, assim temos: o artista vende mais porque ele tem um esquema de distribuição ampliada e também, tem uma distribuição ampliada porque vende mais. Logo, uma artista que em um disco vende 100 mil cópias, sua rede de distribuição se amplia, as gravadoras então pagam a difusão nas rádios e as apresentações no programas de televisão, o que não é gratuito (o Gugu é um dos maiores empresários musicais do Brasil). Se no disco seguinte esse artista não chega nas 30 mil cópias, então todo esquema é desfeito e redirecionado para outro artista na mesma condição anterior.
Um dos exemplos mais característicos desse esquema é o caso do Tiririca, ou mesmo do Rafael ex-integrante do Polegar empresariado por Gugu, nesse último caso a perda de sucesso repentino trouxe sérias conseqüências para a vida do jovem. Não é fácil dormir famoso ao lado da Cristiane Oliveira e no dia seguinte acordar na sarjeta ignorado até pelos mendigos a sua volta. É uma barra muita pesada para segurar lucidamente, descobrir que não tem talento e que foi o tempo todo usado. Outro aspecto bastante importante que muitas vezes os críticos não dão a menor bola é, sem dúvida, o consumo. E na minha humilde opinião é o mais importante. Por que será que o Tiririca de repente, com todo o esquema lhe apoiando em seu segundo disco não vendeu o esperado? A indústria cultural é um fenômeno bastante significativo da sociedade de “massas”, mas como seu poder está situado nas relações humanas que nem sempre seguem as leis rígidas do mercado, que é também determinado pelos aspectos subjetivos, assim, a indústria cultural deixa também suas lacunas e suas limitações. E é nessas brechas que surgem um outro aspecto, a criatividade do artista que com coragem, mesmo em um esquema mercadológico muito restrito e excludente consegue colocar sua subjetividade, seu talento. É esses casos que lamento nessas noites nostálgicas de abril.

Deixando a nostalgia de lado e, tendo como paradigma os grupos empresas que seguem a risca as tendências de mercado. O excesso de informação, os veículos como televisão, vídeo clipes e internet que trabalham com a exposição de imagens são essenciais para a difusão de grupos como Tchan (um dos grandes exemplos, atualmente de empresas musicais – lembrando que isso não é privilegio do Brasil, há exemplos como Menudos de Porto Rico, New Kids dos EUA, etc). Por quê? Esses fazem “música” para serem vistas e não para serem ouvidas. É verdade! O Tchan antes de lançar um novo cd, veiculam antes o clipe ou a apresentação ao vivo. Ah..., Mas até grupos de rock fazem isso. Sim fazem, mas não é fundamental no seu trabalho, pois nesse caso o arranjo, a letra e o desempenho vocal são o que contam mais, isto é, a sonoridade consegue abarcar o fundamental da música que eles fazem. No Tchan, o que está em jogo não é a sonoridade, este aspecto está em segundo plano, o que conta é a harmonia entre os corpos voluptuosos em movimento, no compasso com o balanço sensual da canção e, o mais importante, é que tudo isso seja visto pelo consumidor. A imagem é mais relevante que o som. A sonoridade é subordinada aos movimentos da dança, e a parte vocal é um detalhe tão ínfimo que às vezes perguntamos (para ficar apenas no exemplo do Tchan) o que faz o Compadre Washington no meio daquelas beldades do bisturi? Mas ele tem um papel, senão tão importante, pelo menos complementar, que é o de fazer a personagem típica da tipologia que querem “enfiar” no caráter do brasileiro: o daquele cara que quando uma mulher passa por ele em sentido contrário ele sempre olha para traz, que é, em um universo machista, mais uma maneira gestual de se afirmar a masculinidade. O papel dele é representar as cantadas “típicas” de botequim que quase sempre se restringem aos termos como “gostosa”, “boasuda”, “popusuda”, etcetera.

Em síntese, o “funk” atual, o pagode da “barata”, da “amarelinha”, o sertanejo urbano (lembrando que esse exerce uma vantagem sobre os demais, porque falam a mesma coisa com palavras diferentes e, talvez por isso permaneçam no mercado) e todos os demais hits que tiveram sua vez, formam um fenômeno próprio da sociedade globalizada que preconiza, até pela própria sobrevivência do sistema, um consumo massificado. Eu sei que tudo isso já é “mingau batido”, mas eu tenho uma boa notícia para vocês, é que as modas duram no máximo duas estações, são em sua essência efêmeras. Mas, também tenho uma má notícia, outras sempre aparecem no lugar. Elas também são cíclicas.

No entanto, o fato de ficarmos torcendo o nariz para os modismos só nos faz colocar para fora um gosto estético que também não é nosso, um gosto tipicamente de classe média. (Se o leitor for de classe média ignore o período anterior, mas fique sabendo que você está lendo o jornal errado, vai ler Estadão, qualé!?). Veja bem. O que nos faz torcer o nariz para uma performance do Tchan, por exemplo? É, com certeza, um senso crítico mais apurado que denota uma formação mais refinada, de um meio social com mais oportunidade e com informações diferenciadas. Assim, é a formação que faz com que se supere o “gosto de massa”, e esse gosto massificado é o único acesso garantido da maioria dos brasileiros.
Então é a formação que seleciona e procura novas informações diferenciadas que promovem um juízo de valor mais acurado. Esse senso crítico supera o senso comum e ao mesmo tempo o desdenha, e esse desprezo pelas manifestações populares traz em si um preconceito tipicamente de classe média, do indivíduo que teve acesso a uma formação privilegiada em um país que não liga a mínima para a educação de sua população como um todo, num país que a todo ano cresce as dificuldades para um estudante de classe baixa chegar a Universidade. Dessa forma, o indivíduo que tem uma formação descente despreza os que foram marginalizados pela estrutura educacional brasileira, como os velhos antropólogos de gabinete que não enxergaram que as “sociedades primitivas” produziam cultura.

A questão não é torcermos os narizes para tais canções ou alguém ainda acha que essas músicas são simplesmente impostas pelo mercado e, de certa forma não representam as expectativas da nossa sociedade? Se acharem, podem ir ler outra notícia. As imposições existem, mas a recepção por parte da sociedade não se dá de forma passiva. Essas canções cumprem um papel de mercado, mas também representam os anseios da sociedade. A questão é que as expectativas da sociedade como um todo, são determinadas historicamente e estão ligadas à formação educacional (no sentido amplo). O que isso quer dizer? Ora, em um país que a classes dominantes não têm a mínima consideração pela formação de sua sociedade, e que, lógico, é o que convém ao seu interesse enquanto classe hegemônica. Pois, é vantajoso para as elites que nos apropriemos da idéia de que se não temos uma educação descente é porque não temos condições de passar no vestibular e, portanto, a culpa de não freqüentarmos uma universidade pública é do indivíduo e não do Estado. E mais, (e nesse ponto reside minha crítica) aqueles raros que chegam oriundos da classe marginalizada se apropriam dos gostos das classes dominantes, em vez de olhar para trás e ter uma postura crítica sobre o processo de sua formação. O jogo ideológico das elites, eu até que concordo, pois faz parte do papel a ser desempenhado por elas. Porém, o que não posso admitir é que, além de, não fazermos nada de efetivo para mudar esse panorama, ainda por cima, nos apropriamos dos gostos e estilos da classe que nos oprime e, ainda assim, enquanto seres pensantes nos identificamos mais com o deboche “intelectual” da classe média alta do que com os excluídos que deveríamos estar defendendo.

“Mas vem cá”, o título do artigo não é “nostálgicas noites de abril”, o que ele tem a ver com essa argumentação? Tudo. As noites de abril são nostálgicas pelas ausências dos dois maiores ícones do rock brasileiro e das músicas contestadoras que criavam e que, atualmente, são raras no universo juvenil. Da música que nos faz pensar sobre o que está acontecendo a nossa volta, é essa música que deveria ter mercado amplo para ela. Como teve com a Legião Urbana que recentemente alcançou a marca histórica para o rock brasileiro de 10 milhões de cópias vendidas, mas que, até 1996 antes da morte de Renato Russo, só tinha vendido 5 milhões, ou seja, os outros 5 está dentro de outro fenômeno de mercado que é a “necrofilia da arte”, quando um certo artista morre, há uma profusão de relançamentos promocionais que acabam alavancando as vendas dos trabalhos do artista.

Se no mercado fonográfico brasileiro não há muito espaço para a difusão de músicas de protesto é porque o brasileiro não foi formado para dar importâncias as coisas sérias como a política, a economia, etc, e achar que esses temas podem ser conteúdo das artes. O que vem ao encontro dos interesses das classes que estiveram no poder até então, pois a educação no Brasil só esteve em debate político quando foi necessário produzir uma mão de obra especializada ou quando se precisou formar mais profissionais para se pressionar a média salarial daqueles que estavam trabalhando. E como canta Cazuza: E assim tornamos brasileiros/Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/Transformam um país inteiro num puteiro/Pois assim se ganha mais dinheiro. O que precisa mudar não são as “músicas para se ver”, e sim as condições de sobrevivência do brasileiro que na falta de uma vida confortável, de tempo para refletir sobre seus problemas vai procurar conforto no consumo de mercadorias que vendem o prazer, o prazer efêmero, mas ainda sim, o prazer, um alívio para seu dia-dia sofrível, e assim, tudo se encaixa, pois quem não tem tempo para refletir sobre sua própria condição humana, será mais fácil pensar que a música como a arte é em vão ou apenas um entretenimento. Só mudando a formação do brasileiro é que se produzirão músicas de melhor qualidade. Pois, tanto as condições materiais de existência como as relações culturais formam uma estrutura que se inter-relaciona e se determinam mutuamente e que, sendo assim, não pode ser vistas desconexas. As formas e os conteúdos de determinada música depende do contexto social ao qual ela foi criada. É por isso que nas noites de abril eu ligo meu som e começo a sonhar com um dia melhor ouvindo músicas que falam dos problemas existenciais pelos quais passamos. E aí penso nas possibilidades concretas que ainda temos para mudar o mundo, pois, embora, esses dois ícones da música brasileira representassem o inconformismo de uma geração que foi considerada perdida, há nas músicas de Renato Russo frases que dizem: Quando tudo está perdido sempre existe um caminho/Quando tudo está perdido sempre existe uma luz. Precisamos recuperar a esperança perdida em confronto com as adversidades do nosso dia-dia, pois o que define nós enquanto pessoa criadora do nosso meio social é a esperança que temos na construção de um futuro melhor, e não é ignorando e desprezando os nossos problemas, por mais insignificante que possam parecer, como é o caso da música brasileira (que de forma alguma é insignificante), que conseguiremos mudar essa situação. Devemos reativar a esperança, pois naqueles anos que se diziam perdidos, tínhamos a consciência de que estavam nos roubando nossa esperança e, é exatamente por isso, que aquela geração não foi uma geração perdida, e é por esse exemplo que devemos, atualmente, lutar contra essa política que sempre quis inviabilizar a ação dos jovens que também são excluídos.

[1] Originalmente publicado no Jornal Acadêmico do Curso de História: O Terrorista em 1999.
[2] Jim Moreaty alter ego de Neil Cassidy, personagem do Romance On The Road de Jack Kerouac, constitui-se um dos maiores clássicos da literatura beat.

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