sábado, 22 de março de 2008

ROTEIRO DE UMA PESQUISA: AÇÃO DIRETA COMO MÁQUINA DE GUERRA NÔMADE

3. Organização pressupõe governo?

É no tema da organização sem autoridade imposta, sem gerência externa, da organização sem opressão, sem dominação, em suma, sem governo que este singelo texto pretende explorar. Para isso, nos propomos deixar de lado aquela velha história de que se é ou não possível tal empreendimento, pelo simples fato de não estarmos preparados para avaliar a possibilidade prática de se implantar algo que jamais existiu, pelo simples fato de não ter existido. Precisaríamos sair da garrafa para pensarmos algo fora da garrafa, diria Wittgenstein.

O mito por si só nos é suficiente para merecer uma abordagem, pois se levarmos as coisas muito a sério chegaremos à conclusão de que o liberalismo de fato nunca existiu, e o neoliberalismo muito menos, ou pelo menos, ambos não estão completamente de acordo com seus princípios, mas o que chamamos de liberalismo e neoliberalismo continua a oprimir bilhões de pessoas em todo o mundo.

Longe de querermos fazer uma exegese das coisas e das palavras, dos significados e significantes, desejamos nos ater às condições da época, século XIX, que permitiram a emergência das idéias que distinguimos como um certo tipo de anarco-comunismo, quais fatores o motivou, quais as condições de possibilidade que permitiram a economia de trocas discursivas em torno de enunciados como “a cada segundo suas necessidades” e não mais “segundo o seu trabalho”, o que o permitiu e o que, de certa forma, o mantém, mesmo na vã tentativa de um pesquisador que se propõe a estudá-lo.

Desejamos dentro do contexto do anarco-comunismo organizacionista compreender a imensa importância do conceito de ação direta, tanto para diferenciação dos anarquismos em relação aos outros movimentos sociais, quanto para aglutinação e posicionamento de sujeitos num campo de força determinado.

Cabe aqui fazer uma distinção do tipo discursivo, que provisoriamente, podemos chamar de discursos utópicos que não necessariamente estão ligados à efetivação de seus enunciados, pelos menos não diretamente e de forma determinante. O que queremos, com isso, é que para além de sua confirmação, de sua realização, a utopia tem uma função social determinante, nesse caso, podemos, em vez de utopia, usar o termo mito, pois o mesmo já comporta uma significação mais definida, principalmente, a partir dos escritos de Georges Sorel. Mas evitaremos tal termo, pois o mesmo está ligado uma supervalorização da organização de base sindical tanto no preparo da revolução, por meio da greve geral, quanto da administração da sociedade comunista, a partir dos conselhos de fábrica.

O conceito de mito soreliano está acoplado a prática do sindicalismo revolucionário e, mais estritamente, ao anarcossindicalismo que se chocava em pontos estratégicos determinantes com o anarco-comunismo, a qual pretendemos concentrar esforços de pesquisa na compreensão de sua estratégia e conduta ética que a nosso ver, está intimamente relacionada com a concepção de ação direta. Por isso, tendemos a utilizar, pelo menos inicialmente, o termo utopia, tentando, contudo, primeiro abastecê-lo com as contribuições de Sorel e segundo romper com o modo pejorativo com que foi tratado a partir do Manifesto do Partido Comunista.

Outro passo, nessa nossa empreitada é nos situar. Já apontamos o nosso alvo, resta revelarmos, nosso ponto de observação. Como estamos dentro da garrafa, o máximo que conseguimos fazer é nos situar em um contra discurso estatista que percorreu uma longa jornada até chegar ao que consideramos sua forma mais altiva: a máquina de guerra de Deleuze e Gattari. Quando falamos em uma longa jornada, não queremos marcar uma continuidade no discurso, mas no objeto, isto é, no alvo: o Estado.

Com isso, já temos a deixa para adentrar a hipótese mais importante da crítica ao estatismo como norteador da ação política direta desde tempos imemoriais. Tal hipótese, inspirada na grande pesquisa de Clastres e descrita por Deleuze e Gattari em seu “Tratado sobre o nomadismo” que compõe, em versão brasileira, o volume 5 de Mil Platôs: é a de que o Estado sempre existiu, como também sempre existiu uma organização de resistência a ele. Com isso Deleuze e Gattari rebatem o velho vício do “bom selvagem”, que culminava inexoravelmente para uma idealização de uma sociedade perfeita seja num passado imemorial, ou num futuro desejado pelas utopias sociais. Em suma, essa idealização de um antes e um depois perfeitos constitui-se o vicio ao qual todos os socialismos revolucionários ficaram dependentes, inclusive, os anarquistas contrários a governos provisórios de transição.

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