segunda-feira, 16 de março de 2009

A Vida é uma Cilada I



Lembranças, Mágoas e Medos


Era quase meio-dia e o cheiro fétido da fábrica de lingüiça, que caracterizava o lado negro daquela cidade hostil, ainda entrava nas narinas sem pedir licença. Sinal de que Camargo ainda não estava bêbado. Por isso, encostado ao balcão do Iraci’s Bar, uma espelunca com nome de bar de filme hollywoodiano tipo “d”, estava ele, o homem arruinado e fracassado em todas as circunstâncias de sua medíocre vida.


- Mais uma vodka!


- Aqui está!


- Glu glu glu... Ahhhrrrgg!


Talvez a infelicidade de Camargo devia-se unicamente a sua personalidade autodestrutiva, a seu comportamento blasé e a seu agudo pessimismo em relação a tudo, o que lhe dava um ar gélido, mal-humorado e tedioso. Isso, sem dúvida, contribuiu para o fim de seu relacionamento com Sara, sua ex-esposa.


Porém, nada incomodava mais Camargo, do que a lembrança dessa perda estar agora presente, se revelando com algum valor e lhe mostrando que de fato foi uma perda e que ele realmente é um fracassado que não serve nem para perceber o que realmente importa para a sua vida.


Por outro lado, sua resignação à derrota o forçava a inércia que, em termos práticos, o levou ao álcool e ao aumento progressivo de suas já características e constantes bebedeiras homéricas.


O álcool da vodca barata já afetava seu cérebro quando lhe veio o seguinte pensamento: (sem respeito a qualquer ordem cronológica, aliás, o que veio antes?) Sua ruína profissional ou o fim do seu casamento? A ordem dos fracassos não altera o resultado, pois eles se amontoam uns sobre os outros e a desordem os confunde aumentando o peso que cada um tem, na soma que se acumula sobre seus ombros em forma de culpa.


E a culpa, na vida de Camargo, tomava forma na imagem de socos e pontapés desferidos sobre um pedófilo que abusava de um garoto em plena Avenida Paulista numa noite fria e úmida da Capital. Tomava forma na raiva e na injustiça que sentiu quando foi acusado de abuso de poder contra o gerente de um banco multinacional por ter lhe espancado simplesmente por dar esmola a um menino de rua. Desde então Camargo trabalha por conta própria.


Mas, apesar de tanta mágoa, o que o levou até aquela espelunca de bar onde se encontrava, não foram lembranças, mas o medo provocado por uma caixa que ele pegou há algumas horas atrás, em virtude de um caso, que agora, soava muito esquisito. Assim, a poucos passos de seu cafofo, decidiu tomar umas e outras para se encorajar a abrir aquela caixa, pois algo lhe dizia que dali, como na mitológica caixa de pandora, sairia todos os males que atingiria sua vida a partir daquele momento.


Antes disso, naquele mesmo dia, adormecido ao sofá de seu horripilante quarto alugado ao lado da estação do Belenzinho. Depois de sorver o último gole de conhaque na noite anterior e apagar estatelado, Camargo acordara assustado pensando ser o mini-terremoto provocado pelo metrô que sempre passava quando tentava dormir. Mas, quando recobrou a consciência percebeu que era apenas o telefone tocando pela primeira vez desde que se estabeleceu ali.


- Alô?


Responde uma voz masculina:
- ah, oi, estou ligando para falar sobre o anúncio de investigador particular, você está disponível?


- Ah, sim, claro, estou. Qual é o caso?


- Estou representando uma pessoa, é um caso que exige muita discrição, devemos conversar em particular.


- Claro, quando e onde?


- Deixa eu ver, no Donni’s Bar, que tal? Conhece?


- Donni’s Bar, não. Qual é o endereço?


- Fica na Consolação perto da...


Depois de anotar o endereço, Camargo pensou que deveria ter demonstrado menos ansiedade e interesse, isso comprometeria os honorários. Mas como estava vivendo de favores e da “pendura” da Mercearia do Seu Rui, que já estava impaciente com os atrasos e com a falta de perspectiva de pagamentos, e ao ouvir a voz que acabara de requisitar seus serviços, não conseguiu se controlar, deixando a verdadeira impressão de quem precisava desesperadamente de dinheiro.

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