segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A melhor resenha sobre o melhor filme: Recordações de amanhã por José Carlos Avellar

A mulher gorda da tabacaria, desenho de Fellini para Amarcord

Poucos realizadores contemporâneos parecem experimentar com igual intensidade a alegria que toma conta de Federico Fellini todas as vezes que ele brinca com a aparelhagem cinematográfica. Ou, digamos, para reduzir o exagero da afirmação: raros diretores fazem como ele filmes para contar apenas, ou principalmente, a alegria que sentem ao fazer um filme. Fellini na verdade inventa histórias para contar que gosta de filmar histórias. Amarcord, antes de qualquer outra coisa, é uma demonstração deste prazer de filmar comparável ao de uma criança diante de um brinquedo na aparência conhecido, mas de fato sempre novo.

Na porta do hospício o pai de Tita procura um enfermeiro para saber da saúde mental de seu irmão Teo, que ele viera buscar para um passeio com o resto da família. “Está bem, muito bem. Normal” – responde o enfermeiro, e diante da insistência na pergunta repete: “Normal". E acrescenta: “Não está menos normal que as pessoas que vivem fora do hospício”.

Durante o passeio, o normal tio Teo pára na estrada para urinar e esquece de desabotoar a calça. Mais adiante sobe numa árvore e se recusa a descer: exige que lhe tragam uma mulher, joga pedras nos que tentam se aproximar e convencê-lo a voltar e grita cada vez mais alto: “quero uma mulher!”

Amarcord é uma nova visita de Fellini a uma província inventada por ele mesmo em filmes anteriores; um novo encontro com personagens que fazem parte da família cinematográfica do diretor. Familiares que podem ser definidos com aquelas mesmas palavras usadas pelo enfermeiro para o pai de Tita: Normais. Não são menos loucos que as pessoas que vivem no hospício.

Quando as pequenas extravagâncias do tio Teo surgem na tela, um pouco depois da metade do filme, não aparecem mais como um sinal de loucura, mas como um comportamento normal integrado às particulares convenções gerais da província dos primos, tios e conhecidos de Fellini.

O magro tio Teo que sobe numa árvore à procura de uma mulher não difere muito da gorda proprietária da tabacaria que baixa a porta da loja, e logo depois a blusa, para oferecer o imenso seio ao pequenino Tita. Não difere muito do desajeitado Biscein, que afirma ter feito amor com trinta mulheres numa só noite. Nem difere dos garotos que se masturbam com o pensamento em artistas de cinema ou nas garotas da cidade. Nem diferem da prostituta que sonha com a chegada de Gary Cooper à cidade para casar-se com ele e mudar de vida.

A normalidade especial do tio Teo, trepado numa árvore para agredir as pessoas a pedradas, é ingênua e humana assim como não é a fúria estúpida e ridícula da parada fascista, com enormes retratos de Mussolini feitos de flores. As pedras são mais delicadas e humanas que as flores e os frascos de óleo de rícino enfiados goela abaixo contra as vozes em desacordo com o fascismo.

Uma província tal como caricaturada aqui talvez tenha mesmo existido, com seus tios Teo, seus Biscein e suas tabacarias de mulheres gordas. Estas personagens e histórias podem ter ocorrido de verdade, mas Amarcord importa não como reconstituição do que ocorreu em algum momento no passado e sim como a projeção do que ocorre hoje, na memória, na lembrança, no imaginário, no instante presente do realizador.

E neste imaginário de agora a visita do líder fascista à província é um episódio central. É como se este pesadelo tragicômico fosse a imagem essencial, o ponto de partida para a invenção do filme. É como se o diretor quisesse dizer que na Itália contemporânea persiste algo da província de outrora e que nesse extemporâneo ambiente provinciano o fantasma do fascismo reaparecesse para fazer uma visita. O ridículo, o grotesco desta aparição comanda o episódio. Na cena predomina o gesto infantil para assinalar que a violência maior aqui resulta do fato desta visita do fascismo ter algo a ver com uma negação da maturidade. Nesta província em que o normal é ser criança, as pessoas se submetem quase sem resistência alguma a um poder que esconde sua brutalidade por trás de uma aparência bufa, circense. Todos os personagens se encontram em cena na visita do líder fascista: professores, alunos, autoridades, advogados, prostitutas – cada um deles com suas pequenas normalidades:

“Até então seus tiques pareciam inofensivos, mas reunidos nesta festa ganham um sentido diferente e me parecem uma demonstração clara de estupidez total”.

Uma volta à província ou uma volta da província, isto é: um retorno “à falta de informação, à ignorância dos problemas concretos e reais, à recusa de conhecer as coisas da vida por preguiça, preconceito, comodidade ou vaidade”. Uma volta à mesma província de loucuras inofensivas de Os boas vidas I Vittelloni (1953) e Oito e meio Otto e mezzo (1963) e da violência do fascismo de Roma Fellini Roma (1972).

Tal como outros cineastas europeus contemporâneos (especialmente Ingmar Bergman) Fellini constrói seus filmes com os olhos voltados para personagens e temas levantados em trabalhos anteriores. O titulo, que ele insiste ter escolhido pela sonoridade e não pelo significado, soa próximo de eu me recordo e se refere, talvez, principalmente ao que ele guarda na memória de seus primeiros filmes. É mais do que provável: a história possui verdadeiras lembranças da infância do diretor, mas desde seu título, desde a palavra que não existe, que foi inventada para dizer algo parecido com eu me recordo, o filme sugere que seu objetivo é lembrar-se de algo que não aconteceu. Fellini pode ter vivido enquanto criança numa província e num tempo parecido com o da cidade em que vivem os personagens de seu filme, mas como agora vive no cinema, ele adulto se encontra numa realidadeoutra em que a memória pode ser livremente inventada, em que existe a possibilidade de pegar na memória até o que ainda não se encontra lá, recordar-se de outro modo, como sugere a imagem-título: Amarcord.

Mais precisamente, o filme é, sim, feito das lembranças da infância e adolescência do realizador, mas não como se ele tivesse ido buscar documentos para refrescar a memória – ele foi em busca dos filmes em que já tinha feito referências ligeiras a esta época de sua vida. Inventou uma ficção, não se propôs a uma reconstituição fiel, um documento. Não os fatos como eles efetivamente existiram, mas como foram afetivamente guardados na memória, a realidade filtrada, corrigida, criticada, reinventada pela imaginação: o que se passou reaparece numa imagem que é mais uma reflexão do que um reflexo, que é uma espécie de memória do vai acontecer daqui a pouco, uma lembrança antecipada de amanhã.

O que importa não é a luz do sol, mas a ilusão de luz do sol que se possa criar num estúdio. Não um real nevoeiro, o mar, uma árvore, um transatlântico de verdade, mas os cenários, os efeitos mecânicos e os truques fotográficos capazes de criar uma ilusão de realidade (que exatamente porque percebida como uma ilusão) se mostra mais forte (e numa certa medida mais real) que o registro fotográfico do real.

“A luz surge antes mesmo do argumento. Acredito na luz e a luz deve ser a exigida pela minha imaginação. Minha luz não será jamais a do sol. Acredito no cinema feito com a reconstrução no estúdio da luz do dia ou do mar. Reconstruí o mar em Amarcord e nada é mais verdadeiro na tela que este mar feito de duas telas de plástico agitadas por maquinistas de boa vontade”.

O som, como a imagem, é inventado: “durante a filmagem peço aos atores para repetirem números ou orações. O som, as falas, acrescento depois, na hora da dublagem, para controlar melhor vozes e texto”. Imagens e sons livremente inventados porque cada pedaço do filme deve atender às leis internas do espetáculo cinematográfico, leis determinadas por um impulso semelhante ao que conduz a normalidade do tio Teo, leis que obedecem à lógica de um sonho.

Fellini definiu certa vez o trabalho de criação artística como um mecanismo semelhante ao que inventa os sonhos, isto é, as imagens nascem sem controle da razão. Aparentemente ele se encontra agora no que definiu como a segunda fase do trabalho de criação, aquele feito a posterior, onde procuramos as chaves que possam explicar cada um dos signos. Ou então, mais fiel que nunca a seu método de trabalho, recorre aos filmes antigos como ponto de partida ideal para a criação de uma nova ilusão de realidade no estúdio. A matéria-prima já não é o mundo que ele pode ver com seus olhos, nem mesmo o mundo que fixou em sua memória, mas uma livre invenção, feita à imagem e semelhança de uma paisagem natural, mas com o uso de plásticos e maquinistas de boa vontade.



Zampanô, Guido, Trimalcione, Steiner, Snaporaz ou o tio Teo; Gelsomina, Cabiria, Saraghina, Gradisca, Luisa, ou a mulher gorda da tabacaria: Fellini conta histórias de personagens de ficção que ele viu em sonhos ou delírios e que existem para ele como se fossem pessoas vivas, como vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho. Existem numa dimensão especial, em luzes e sons, e estimulam a brincadeira de fazer um filme, de repetir alegremente a mágica de dar vida a uma sala escura. Formas, músicas e ruídos livremente gravados num pedaço de filme sem outro qualquer compromisso além de convidar a platéia a participar de uma brincadeira.

“O palco com suas luzes apagadas exerce uma enorme fascinação sobre mim. Imaginar um cenário, maquilar um ator, vesti-lo, estimular seus gestos, são coisas que me dominam de forma absoluta. Sei bem que isto está fora de moda, que parece um modo de fugir da realidade. Sei dos limites, das alienações, dos riscos que tudo isto comporta. Mas não conheço outra maneira de me sentir à vontade, tão de acordo comigo mesmo. Só ao fazer cinema. Não sei mesmo distinguir um filme do outro – que dizer, falo de meus filmes. Tenho a sensação de haver filmado sempre a mesma coisa. São imagens, e somente imagens, que filmei utilizando o mesmo material. Fui, talvez, solicitado a cada instante por pressões diferentes, mas o mesmo material. O que sei é que obedeço um impulso para fazer um filme. Não digo isto para aparentar modéstia. Francamente, contar histórias me parece a única coisa que vale a pena ser feita. Quando eu realizo um filme me sinto livre, livre de todos os embaraços. Sinto que tenho sorte. Fico feliz ao participar outra vez deste brinquedo chamado cinema”.


Texto escrito para o jornal e publicado em julho de 1973

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