segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Guerra ou Fuga - a modernidade reinventada III

3. Revolução ou Linhas de Fuga

Muitos autores tentaram demarcar a origem da pós-modernidade, muitos apontaram para o fim da Segunda Guerra Mundial e outros tantos para a Crise de 1973 e a emergência de novas técnicas de domínio com o neoliberalismo. Mesmo considerando a importância de tais marcos, melhor do que dizer o que é a pós-modernidade é descrever como a emergência de novas estratégias de controle social foi possível e como tais estratégias puderam ser vistas como sendo novas ou como sendo posterior a algo que não existe mais ou que pelos menos tenha mudado tão consideravelmente ao ponto de suas semelhanças com o anterior existente terem sido superadas pelas suas diferenças.
O grande esquecimento dos perseguidores por origens foi o espanto, isso mesmo, a crítica pós-moderna se ramificou no úmido solo da consternação. Brotou como mato, também na seca caatinga da desilusão. A pós-modernidade só pode se entendida em sua profundidade a partir do maio de 1968.
Nesse tempo, nesse lugar estão a chave da pós-modernidade. Ele marca a bifurcação que nos trouxe aqui. Parafraseando um grande romancista inglês... [1] esse foi o tempo do sonho e do pesadelo, da certeza e das incertezas, da revolução e da fuga, da coragem e do medo, da normalidade e da esquizofrenia (talvez mais normal que a normalidade).
Foi o momento e a ocasião para o desenvolvimento de n teorias que davam conta do que estava acontecendo em sua totalidade e não entendiam nada, por tão ousada pretensão. Foi também a hora e o lugar das indignações anti-acadêmicas da academia que confundiam sem explicar e, por isso, talvez explicavam melhor o que acontecia. As revoltas mais insanas e mais racionais (também de certa forma insanas) aconteceram ali. O ânimo e o desânimo andaram lado a lado. Teóricos e antiteóricos se uniram na confusão de estudantes e trabalhadores, burguesia e proletariado no mesmo protesto sob os olhares consternados de partidos e sindicatos, que estavam tanto ou mais assustados que os patrões.
Maio de 1968 findou com a exaustão dos velhos baluartes e dos novos que já nasceram abortados. A partir dali nada mais restaria intacto, nem mesmo o mais seguro dos solos, a mais estática das naturezas conseguiria esconder mais seu dinamismo. A realidade ou alucinação não cabia mais em nada, a psicanálise e a sociologia tornaram-se ferramentas obsoletas. Não havia mais meio, qualquer ponto poderia ser o início e o fim. O conhecimento não evoluía como o iluminismo e o marxismo imaginavam...
Deleuze e sua concepção de filosofia, que se insurgiu contra onipotência do humanismo francês nos anos 60, principalmente, em oposição à sua simbiose com o marxismo feito por Sartre e Merleau-Ponty, foi um dos destaques das chamadas antiteorias pós-modernas. Herdeiro da crítica foucaultiana à concepção de sujeito fenomenológico, talvez nenhuma obra simbolize mais a multiplicidade do maio de 1968 do que o Anti-Édipo de Guattari e Deleuze.
A produção maquínica de conceitos da filosofia deleuzeana significou, ao mesmo tempo, a esperança e o pessimismo da pós-modernidade que transbordara com abundância naquele mês de 1968. Os anos 60 foram emblemáticos, tanto positiva quanto negativamente, para vários ramos de atividade humana e não foi diferente com relação às ditas ciência humanas.
As utopias modernas carregavam um clima de desilusão, a exemplo da decantada revolução que seria feita pelos operários, elas foram se tornando obsoletas, assim como seus enunciados do ponto de vista do saber não eram mais válidos diante da realidade múltipla e esquizofrênica do mundo que evidentemente já não podia ser apenas denominado de moderno. As técnicas disciplinares vigente, na modernidade não desapareceram no pós-guerra, mas foram se reconfigurando em dispositivos de controle social cada vez mais dinâmico que exigiam novas ferramentas de saber para compreendê-las.
O marxismo, grande baluarte da esquerda no mundo inteiro tornara-se um fascismo de esquerda na prática, o liberalismo não passava mais confiança depois da Crise de 1929, os partidos comunistas nos países capitalistas industrializados estavam paralisados no mundo do século XIX, disputando um jogo com as regras de um mundo que não existia mais, contra um capitalismo imperialista que não correspondia à nova reordenação econômica e que muito menos compreendia as novas possibilidades de sublevação nem via as brechas que o sistema deixava e quando percebia, ignorava-as por entenderem com recaídas reformistas.
Deleuze foi importante para ressaltar as falhas estratégicas dos discursos de esquerda, as impossibilidades de tomada de poder pela revolução, mas também foi relevante para uma reorientação da luta, da criação de novas regras para jogar o jogo do poder, para a insurreição, para os levantes, para as linhas de fuga da sociedade de controle.
Já que não se podia destruir nem o capitalismo nem o Estado[2], pelo menos tendo como base as velhas utopias e as posições defensivas em que se encontravam as forças revoltosas na sociedade de controle, era necessário criar uma nova máquina de guerra contra a burocracia tecnicista. Se não era mais possível afetar o sistema mortalmente, pelo menos, deveríamos encontrar as brechas e atravessá-lo. Contra a sociedade de controle, Deleuze propôs a máquina de guerra nômade. Contra as identidades criadas e impostas pelos dispositivos de controle, ele propôs a desterritorialização nômade. Contra o vício filosófico da lógica clássica ele criou a análise por diferenciação sem parâmetros de comparação a priori. [3]
[1] Cf. DIKENS, Charles. Duas Cidades.
[2] Para uma análise rápida das variadas reações da esquerda hoje à hegemonia do capitalismo global. Cf. ZIZEK, Slavoj. Resistir é Capitular. Revista Piauí 16, 2 janeiro 2008. A esquerda de hoje reage de maneira bastante variada à hegemonia do capitalismo global e ao seu complemento político, a democracia liberal. Pode, por exemplo, aceitar essa hegemonia, mas continuar a lutar por reformas dentro das suas regras (a social-democracia da Terceira Via). Ou pode aceitar que essa hegemonia não deixará de existir, mas ainda assim preconizar uma resistência a ela a partir dos seus “interstícios”. Ou aceitar a futilidade de toda luta, já que a hegemonia é tão abrangente que não há nada que se possa fazer, exceto esperar pela irrupção da “violência divina” – uma versão revolucionária do “só Deus pode nos salvar”, de Heidegger. Ou reconhecer a futilidade temporária da luta. Após o triunfo do capitalismo global não se renova, é defender o que ainda resta do Welfare State, confrontando os ocupantes do poder com reivindicações que eles não têm como atender. E, fora isso, nos refugiarmos nos estudos culturais, nos quais é possível prosseguir silenciosamente o trabalho de crítica. Ou enfatizar que o problema é mais profundo, e que o capitalismo global é, em última instância, um efeito dos princípios subjacentes da tecnologia, ou da “razão instrumental”. Ou postular que é possível minar o capitalismo global e o pode do Estado não por meio de um ataque direto, mas transferindo o foco da luta para as práticas cotidianas, com as quais se pode “construir um mundo novo”. Desse modo, as fundações do poder do capital e do Estado ficarão cada vez mais abaladas e, em algum momento, o Estado acabará\ desabando (o exemplo dessa visão é o movimento zapatista, no México). Ou enveredar pelo caminho “pós-moderno”, transferindo a ênfase da luta anticapitalista para as múltiplas formas de disputa político-ideológica pela hegemonia, enfatizando a importância da rearticulação do discurso. Ou apostar que é possível repetir, no nível pós-moderno, o gesto marxista clássico de incorporar a “negação” do capitalismo: com a ascensão contemporânea do “trabalho cognitivo”, a contradição entre a produção social e as relações capitalistas tornou-se mais aguda do que nunca, se4ndo possível pela primeira vez a “democracia absoluta” (essa seria a posição de Michael Hardt e Antonio Negri).

[3] Cf. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 5.

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