quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Sobre a Anarquia de Malatesta


"A Anarquia" de Malatesta é um escrito de propaganda política que procura responder a várias questões fundamentais do anarquismo e se defender das mais diversas críticas a que os anarquistas estavam submetidos. O que motivou Malatesta a escrever tal panfleto foi as problemáticas levantadas pelas discussões de alguns temas espinhosos e muito importantes para o socialismo, seja ele o anarco-comunismo evolucionista inspirado em Kropotkin, seja o anarco-comunismo organicista ao qual Malatesta se filiava ou mesmo o socialismo autoritário de vertente marxista.
O texto em si procura desmitificar alguns clichês que desqualificavam os anarquistas com alcunhas depreciativas do tipo revolucionários românticos, que estavam excessivamente esperançosos na bondade humana e totalmente utópicos quanto exequibilidade de seus ideais libertários.
Errico Malatesta esclarece alguns temas caros ao socialismo a partir da perspectiva anarco-comunista que valorizava o papel da organização operária no preparo da revolução e da própria criação comunista libertária no futuro. O autor começa por explicar o significado da noção de anarquia tão pouco entendida e também pouco estudada. Talvez, por isso, atacada por inúmeros preconceitos.
Malatesta insiste que a anarquia é uma sociedade sem governo e que isso, de modo algum deve significar bagunça, desordem ou falta de organização, pois o governo em si, não é necessário como muitos nos fazem pensar, ele é uma instituição que surge a partir da propriedade privada com a função de defendê-la, então, seu objetivo não é a organização da sociedade, mas a defesa do estabelecido.
Ao contrário do senso comum que pensa, por nascer em meio à dominação de classe, que o governo é que cria a sociedade civil, o que se vê, é o contrário, pois o governo é por ela criado e se aproveita vampirescamente das forças sociais para impor e exercer seu domínio.
Malatesta faz uma distinção entre governo e Estado, sendo este a forma que o governo se apresenta e aquele a coletividade dos governantes, com isso, quer deixar claro que os anarquistas não querem apenas abolir o Estado, descentralizando o governo, e sim abolir o próprio governo na forma de um Estado, ou seja lá a forma que ele assumir. Os anarquistas não se contentam em impor seus ideais à força, por coerção, para eles é fundamental a conduta moral, se a revolução anarquista acontecer, será pelo convencimento racional e afetivo, pelo exemplo da solidariedade.
É por isso que a liberdade é muito cara aos anarquistas inclusive na preparação cotidiana da revolução, por meio da propaganda e pelo exemplo. Esta, do ponto de vista da ética libertária, tem que ser feita pelos operários, a violência só é tolerada para abolir o monopólio do poder de Estado e o regime de propriedade privada, daí para frente o diálogo e a solidariedade deve imperar. Diferentemente dos liberais, a liberdade de um não termina na do outro, mas, ao contrário, a liberdade de um só é válida quando compartilhada em pé de igualdade com as dos outros. Não há liberdade sem igualdade de condições. A igualdade e o convívio solidário e fraterno são as condições para liberdade anarquista.
O parlamentarismo em certo sentido é o meio mais eficaz que a burguesia encontrou para exercer seu domínio, seu governo, enfim, obter o controle do Estado e manter em suas mãos o monopólio do poder, por trás de uma suposto direito de escolha que só serve para legitimar seus interesses.
Nesse sentido, Malatesta questiona: são eles eleitos pelo sufrágio universal? Mas então o único critério é o número que, certamente, não prova a equidade nem a razão, nem a capacidade. Serão aqueles que sabem enganar melhor a massa que serão eleitos, e a minoria, que pode ser a metade menos um, será sacrificada: e isso sem contar que a experiência demonstrou a impossibilidade de encontrar um mecanismo eleitoral pelo qual os eleitos sejam pelo menos os representantes reais da maioria.

Embora fique claro seu descontentamento pelo sistema parlamentar, Malatesta, que viveu encarcerado em sua própria casa durante o fascismo italiano, opta entre democracia liberal e ditadura, obviamente, pelo primeiro, porém, sem deixar de apontar o que, em sua opinião, trata-se, em última análise, de uma estratégia burguesa para legitimar seus interesses.
Ele deixa claro que o governo é na verdade uma sanguessuga da sociedade e que a organização desta não deve nada a ele. Assim, Malatesta, começa a delinear as estratégias de seu discurso e a rebater as rejeições aos ideais anarquistas. Tanto de liberais, que preferem deixar as coisas acontecerem por si mesmas, porque sabem que serão favoráveis à classe economicamente dominante, quanto de socialistas autoritários, defensores da idéia preconceituosa, que contaminou por séculos e séculos os trabalhadores, de que o governo era um mal necessário, inclusive para impor o socialismo por meio de uma ditadura do proletariado.
Para os anarquistas, o governo além de não ser necessário, ele é inútil e demonstra que até mesmo em uma sociedade capitalista as pessoas tendem a viverem melhores sem ele. O problema é que o povo de maneira geral tende a deixar que outros tomem a liderança de suas vidas, se eximem de escolherem seus próprios caminhos, de determinarem o rumo de suas próprias vidas, conquanto que os deixem em paz.
Os anarquistas lutam também contra essa letargia da sociedade que se deixa dominar pela disciplina e autoridade impostas ao preço de não se preocupar com isso. Para os anarquistas, pensa Malatesta, esse tipo de conduta deve ser mudado pelo convencimento, através da propaganda e da educação, para que os trabalhadores, responsáveis por toda a dinâmica e sustentação da sociedade, sejam também responsáveis por sua gestão. Sem essa conquista do coração das massas, não há e nem haverá revolução.
A democracia liberal é apenas uma outra maneira de opressão política, o anarquismo reconhece vários dispositivos entre os quais, aqueles que se fundam no privilégio político, no econômico, numa melhor educação, etc. A democracia representativa utiliza de vários dispositivos, mas o fim é o mesmo de quase todos os governos, o de proteger a propriedade privada e os privilégios de quem está no poder, com a vantagem para a burguesia, de que aparentemente, o povo pode escolher seu representante e de que este de fato irá representá-lo.
É nesse sentido que os anarquistas defendem a luta direta e a flexibilidade da estratégia de acordo com as circunstâncias. Mas embora, Malatesta reconheça a importância do instinto de solidariedade e de revolta, tão alardeados por coletivistas quanto por anarco-comunistas da linha de Kropotkin, sendo que este fundamentava a ética anarquista e a própria anarquia no apoio mútuo, um dos fatores da evolução humana, juntamente, com a seleção natural; o anarco-comunista italiano, por outro lado, não concebe outra alternativa que não seja a violência revolucionária e a criação de um partido que organize a classe para derrotar o governo capitalista. Tal partido não se confunde com o sentido que a burguesia lhe confere, não almeja ganhar eleições e nem ser o pseudo-representante do povo, mas instruir os indivíduos massificados ao lado deles que se forme uma classe consciente de seu papel e de suas possibilidades.
Malatesta, assim, diferentemente, da linha kropotkiana não acredita numa evolução social que culminaria numa sociedade anárquica. Apesar de confiar no desenvolvimento da sociedade e seu progresso técnico e cultural à ciência, isto segundo Malatesta não levaria a uma sociedade igualitária, simplesmente, por ser o mais razoável e ecologicamente eficiente (pois o planeta não estaria vivendo seus últimos séculos nesta espiral consumista suicida), diferentemente, ele dá ênfase à luta direta entre as classes, a uma revolução violenta contra o Estado e ante a propriedade privada. Por isso, mira em princípios éticos e em condutas morais que comporiam uma revolução ampla, que, ao contrário, do que o socialismo autoritário proclamava, não poderia, segundo Malatesta, ultrapassar certos limites e nem formar de antemão um conteúdo programático que fosse imposto à força a todos aqueles que fosse contrários, até mesmo por meio do debate, e nesse caso, deveria ser, legitimamente, na perspectiva dessa antiética, serem considerados contra-revolucionários.
Para o anarco-comunismo organicista de Malatesta, nem a inércia que concebia a anarquia como evolução inexorável da sociedade rumo ao comunismo, nem a revolução sem princípios éticos que tudo pode e tudo deve ser feito em prol de seu ideal, mesmo que o fim seja tão bom como é o caso do socialismo, seriam justificáveis. Em sua perspectiva organicista, os fins não justificam os meios, porque esses devem estar coerentes com o fim almejado. Não dá para criar uma sociedade igualitária e livre sem uma estratégia condizente com esses objetivos. Mesmo que por tal método, seja mais penoso e demorado, mas é preciso não provocar atitudes fascistas e nem criar totalitarismos a partir de uma revolução socialista, como a história já demonstrou ser possível. E ainda que tal estratégia não fosse vitoriosa, jamais poderia ser culpada de cometer barbaridades em nome da liberdade e, mesmo que não restasse mais nenhum anarquista no mundo, ainda assim, a ética libertária nos serviria de lição: o comunismo só pode ser alcançado por meios igualitários e livres.
A ação e o pensamento libertários se adequam aos fatos, as possibilidades de luta, muito mais que o socialismo autoritário que já vai à luta com um programa dogmático, com um receituário a seguir pelos revolucionários. Para Malatesta, a luta direta dos anarquistas pode se configurar conforme a realidade da guerra, pode constituir-se tanto numa sociedade de resistência, que cultive os ideais éticos de liberdade mesmo em um contexto fascista e opressor, como constituir-se numa formação de ataque que tente abolir a propriedade e o governo e formar uma sociedade autogestora, baseada na igualdade, na liberdade e na solidariedade entre os seus membros.

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